Allan Kardec
Impresso em Bruxelas, o jornal
hebdomadário político e financeiro Discussion
não é uma dessas folhas levianas que, pelo fundo e pela forma, visam ao
divertimento do público frívolo. É um jornal sério, acreditado principalmente
no mundo financeiro e que se acha no seu undécimo ano[2].
Sob o título: “O Espiritismo segundo os espíritas”, o número de 31 de dezembro
de 1865 contém o seguinte artigo:
Espíritas e Espiritismo são agora duas palavras bem conhecidas e frequentemente
empregadas, conquanto fossem ainda ignoradas apenas há alguns meses.
Entretanto, a maioria das pessoas que delas se servem está a perguntar o que
exatamente significam, porque, embora cada um faça essa pergunta a si mesmo, ninguém
a manifesta, pois todos querem passar por capazes de matar a charada.
Algumas vezes, contudo, a curiosidade intriga a ponto de trazer a
pergunta aos lábios e, conforme o desejo, cada um vos esclarece.
Alguns pretendem que o Espiritismo é o truque do armário dos irmãos
Davenport [vide artigo publicado
neste blog sob o título IRMÃOS DAVENPORT, em 10/12/2018]; outros afirmam que
não passa da magia e da feitiçaria de outrora, que querem reabilitar sob um
novo nome. Segundo as comadres de todos os bairros, os espíritas entretêm
conversas misteriosas com o diabo, com o qual fizeram um compromisso prévio.
Enfim, lendo-se os jornais, fica-se sabendo que todos os espíritas são loucos
ou, pelo menos, deixam-se iludir por certos charlatães chamados médiuns. Esses charlatães veem, com ou
sem armário, dar representações a quem os queira pagar e, para tornar mais
verossímil suas trapaças, dizem operar sob a influência oculta dos Espíritos de
além-túmulo.
Eis o que eu tinha aprendido nestes últimos tempos. Considerando a
discordância dessas respostas, resolvi, para me esclarecer, ir ver o diabo,
ainda que me vencesse, ou me deixar enganar por um médium, mesmo que tivesse de
perder a razão. Lembrei-me então, muito a propósito, de um amigo que suspeitava
fosse espírita, e fui procurá-lo, a fim de me proporcionar meios de satisfazer
a minha curiosidade.
Comuniquei-lhe as diversas opiniões que eu havia recolhido e expus o
objetivo de minha visita. Mas meu amigo riu muito do que chamava a minha
ingenuidade e me deu, mais ou menos, a seguinte explicação:
O
Espiritismo não é, como se crê vulgarmente, uma receita para fazer as mesas
dançar ou para executar truques de escamoteação, e é um equívoco que nisto cada
um queira encontrar o maravilhoso.
O
Espiritismo é uma Ciência ou, melhor dizendo, uma Filosofia espiritualista, que
ensina a moral.
Não é uma Religião, pois não tem dogmas, nem culto,
nem sacerdotes, nem artigos de fé; é mais que uma filosofia, porque sua
doutrina é estabelecida sobre a prova certa da imortalidade da alma. É para
fornecer esta prova que os espíritas evocam os Espíritos de além-túmulo.
Os
médiuns são dotados de uma faculdade natural, que os torna aptos a servir de
intermediários aos Espíritos e a produzir com eles os fenômenos que passam por
milagres ou por prestidigitação, aos olhos de quem quer que lhes ignore a explicação.
Mas a faculdade mediúnica não é privilégio exclusivo de certos indivíduos; é
inerente à espécie humana, embora cada um a possua em diferentes graus, ou sob
diferentes formas.
Assim,
para os que conhecem o Espiritismo, todas as maravilhas de que acusam esta
doutrina não passam de fenômenos de ordem física, isto é, de efeitos cuja causa
reside nas leis da Natureza.
Entretanto,
os Espíritos não se comunicam com os vivos unicamente com o objetivo de lhes
provar a sua existência: eles ditaram e desenvolvem todos os dias a filosofia
espiritualista.
Como
toda filosofia, esta tem o seu sistema, que consiste na revelação das leis que
regem o Universo e na solução de um grande número de problemas filosóficos,
diante dos quais, até agora, a Humanidade impotente foi obrigada a inclinar-se.
É assim
que o Espiritismo demonstra, entre outras coisas, a natureza da alma, seu
destino, a causa de nossa existência na Terra; desvenda o mistério da morte; dá
razão dos vícios e virtudes do homem; diz o que são o homem, o mundo, o Universo;
enfim, faz o quadro da harmonia universal etc.
Este
sistema repousa em provas lógicas e irrefutáveis que têm, elas próprias, por
árbitro de sua verdade, fatos palpáveis e a mais pura razão. Assim, em todas as
teorias que expõe, age como a Ciência e não avança um ponto senão quando o
precedente esteja completamente certificado. O Espiritismo não impõe a confiança
porque, para ser aceito, não precisa senão da autoridade do bom-senso.
Uma vez
estabelecido este sistema, dele se deduz, como consequência imediata, um
ensinamento moral.
Esta
moral não é outra senão a moral cristã, a moral que está escrita no coração de
todo ser humano; e é de todas as religiões e de todas as filosofias,
pertencendo, por isso mesmo, a todos os homens. Mas, isenta de todo fanatismo,
de toda superstição, de todo espírito de seita ou de escola, resplandece em toda
a sua pureza.
É a esta
pureza que ela deve toda a sua grandeza e toda a sua beleza, de sorte que é a
primeira vez que a moral nos aparece revestida de um brilho tão majestoso e tão
esplêndido.
O
objetivo de toda moral é ser praticada; mas esta, sobretudo, considera tal
condição como absoluta, porque chama espíritas não os que aceitam seus
preceitos, mas os que põem as suas regras em ação.
Dizer
quais são as suas doutrinas? Aqui não pretendo ensinar, já que o enunciado das
máximas me conduziria, necessariamente, ao seu desenvolvimento.
Apenas
direi que a moral espírita nos ensina a suportar a desgraça sem a desprezar, a
fruir a felicidade sem a ela nos apegarmos; ela nos rebaixa sem nos humilhar, e
nos eleva sem nos envaidecer; coloca-nos acima dos interesses materiais, sem
por isto os marcar com o aviltamento, porque nos ensina, ao contrário, que
todas as vantagens com que somos favorecidos são outras tantas forças que nos
são confiadas e por cujo emprego somos responsáveis para conosco e para com os
outros.
Vem, então, a necessidade de especificar esta responsabilidade,
as penas ligadas à infração do dever e as recompensas de que desfrutam os que
obedeceram. Mas, também aí, as asserções não são tiradas senão dos fatos e
podem verificar-se até a perfeita convicção.
Tal é
esta filosofia, onde tudo é grande, porque aí tudo é simples; onde nada é
obscuro, porque tudo é provado; onde tudo é simpático, porque cada questão
interessa intimamente a cada um de nós.
Tal é
esta ciência que, projetando viva luz sobre as trevas da razão, de repente
desvenda os mistérios que julgávamos impenetráveis, recuando até o infinito o horizonte
da inteligência.
Tal é
esta doutrina, que pretende tornar felizes, melhorando-os, todos os que
concordam em segui-la, e que, enfim, abre à Humanidade uma estrada segura para
o progresso moral.
“Tal é,
finalmente, a loucura de que estão acometidos os espíritas e a feitiçaria que
praticam.”
Assim, sorrindo, terminou meu amigo que, a meu pedido, agendou um
encontro para, juntos, participarmos de algumas reuniões espíritas onde, às
experiências, se alia o ensino.
Voltando para casa, lembrei o que havia dito, concordando com todo o
mundo, contra o Espiritismo, antes de nem sequer conhecer o significado desta
palavra, e essa lembrança encheu-me de amarga confusão.
Então pensei que, malgrado os severos desmentidos infligidos ao orgulho
humano pelas descobertas da ciência moderna, quase não pensávamos, na época de
progresso em que vivemos, em tirar proveito dos ensinamentos da experiência; e que
estas palavras escritas por Pascal, há duzentos anos, ainda por muitos séculos
serão de rigorosa exatidão:
É uma
doença natural ao homem crer que possui a verdade diretamente; é por isto que está
sempre disposto a negar aquilo que lhe é incompreensível.
A. Briquel
Como se vê, o
autor deste artigo quis apresentar o Espiritismo sob sua verdadeira luz, isento
das distorções com que a crítica o constrange, numa palavra, tal como o admitem
os espíritas, e sentimo-nos felizes ao dizer que o conseguiu perfeitamente. Com
efeito, é impossível resumir a questão de maneira mais clara e precisa.
Devemos, também, felicitar a direção do jornal que, com aquele espírito de
imparcialidade que gostaríamos de ver em todos os que fazem profissão de
liberalismo e se apresentam como apóstolos da liberdade de pensar, acolheu uma
profissão de fé tão explícita.
Aliás, suas
intenções a respeito do Espiritismo estão claramente formuladas no artigo
seguinte, publicado no número de 28 de janeiro:
Como ouvimos falar do Espiritismo
“O artigo sobre o Espiritismo, publicado em nosso número de 31 de dezembro,
provocou numerosas perguntas, com o fito de saber se nos propomos tratar
posteriormente desta questão e se nos transformamos em seu porta-voz. A fim de
evitar qualquer equívoco, torna-se necessária uma explicação categórica.
Eis nossa
resposta:
O Discussion é um jornal aberto a todas as
ideias progressistas. Ora, o progresso não pode ser feito senão pelas ideias
novas que, de vez em quando, vêm mudar o curso das ideias preconceituosas.
Repeli-las porque destroem aquelas em que fomos acalentados, é, aos nossos
olhos, faltar à lógica. Sem nos tornarmos apologistas de todas as elucubrações
do espírito humano, o que não seria mais racional, consideramos como um dever
de imparcialidade pôr o público em condições de julgá-las. Para tanto, basta
apresentá-las tais quais são, sem tomar, prematuramente, partido pró ou contra;
porque, se forem falsas, não será a nossa adesão que as tornará justas, e se
forem justas, nossa desaprovação não as tornará falsas. Em tudo, é a opinião
pública e o futuro que se pronunciam em última instância. Contudo, para
apreciar o lado forte e o fraco de uma ideia, é preciso conhecê-la em sua
essência, e não tal qual a apresentam os interessados em combatê-la, no mais das
vezes truncada e desfigurada. Se, pois, expusermos os princípios de uma teoria
nova, não queremos que os seus autores ou os seus partidários possam
censurar-nos por lhes fazermos dizer o contrário do que dizem. Agir assim não é
assumir a sua responsabilidade: é dizer o que é e reservar a opinião de todo o mundo.
Destacamos a ideia em toda a sua verdade. Se for boa, fará o seu caminho e nós
lhe teremos aberto a porta; se for má, teremos fornecido os meios para ser
julgada com conhecimento de causa.
É assim que
procederemos em relação ao Espiritismo. Seja qual for a maneira de ver a seu
respeito, ninguém pode esconder a extensão que ele tomou em alguns anos. Pelo
número e pela qualidade de seus partidários conquistou lugar entre as opiniões
aceitas. As tempestades que provoca a obstinação com que o combatem em certo
meio são, para os menos clarividentes, o indício de que ele encerra algo de
grave, já que causa perturbação em tanta gente. Que pensem dele o que quiserem;
é, incontestavelmente, uma das grandes questões na ordem do dia. Assim, não
seríamos consequentes com o nosso programa se o passássemos em silêncio. Nossos
leitores têm o direito de pedir que lhes informemos o que é essa doutrina, que
provoca tão grande celeuma; é nosso interesse satisfazê-los, e nosso dever
fazê-lo com imparcialidade. Pouco lhes importa nossa opinião sobre a coisa; o
que esperam de nós é um relato exato dos fatos e das atitudes de seus
partidários, sobre os quais possam formar sua própria opinião. Como
procederemos? É muito simples: iremos à própria fonte; faremos pelo Espiritismo
o que fazemos pelas questões de política, de finanças, de ciência, de arte ou
de literatura; ou seja, para isto encarregaremos homens especiais. As questões
de Espiritismo serão, pois, tratadas por espíritas, como as de Arquitetura por
arquitetos, a fim de que não nos qualifiquem de cegos discorrendo sobre as
cores e que não nos apliquem estas palavras de Fígaro: Precisavam de um calculista e tomaram um dançarino.
Em suma, o Discussion não se arvora como órgão, nem
como apóstolo do Espiritismo; abre a ele as suas colunas, como a todas as ideias
novas, sem pretender impor essa opinião aos seus leitores, sempre livres de controlá-la,
de aceitá-la ou de rejeitá-la.
Deixa aos
seus redatores especiais inteira liberdade de discutir os princípios, cuja
responsabilidade só eles assumem. Mas o que repelirá sempre, no interesse de
sua própria dignidade, é a polêmica agressiva e pessoal.
[1] Revista Espírita
– Fevereiro/1866 – Allan Kardec
[2] Redação em Bruxelas, 17, Montagne de Sion; Paris, 31,
rue Bergère. – Preço para a França, 12 fr. por ano; 7 fr. por semestre. Cada
número de oito páginas grande in-fólio: 25 centavos.
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