terça-feira, 26 de maio de 2020

O ESPIRITISMO SEGUNDO OS ESPÍRITAS[1]



Allan Kardec

Impresso em Bruxelas, o jornal hebdomadário político e financeiro Discussion não é uma dessas folhas levianas que, pelo fundo e pela forma, visam ao divertimento do público frívolo. É um jornal sério, acreditado principalmente no mundo financeiro e que se acha no seu undécimo ano[2]. Sob o título: “O Espiritismo segundo os espíritas”, o número de 31 de dezembro de 1865 contém o seguinte artigo:

Espíritas e Espiritismo são agora duas palavras bem conhecidas e frequentemente empregadas, conquanto fossem ainda ignoradas apenas há alguns meses. Entretanto, a maioria das pessoas que delas se servem está a perguntar o que exatamente significam, porque, embora cada um faça essa pergunta a si mesmo, ninguém a manifesta, pois todos querem passar por capazes de matar a charada.
Algumas vezes, contudo, a curiosidade intriga a ponto de trazer a pergunta aos lábios e, conforme o desejo, cada um vos esclarece.
Alguns pretendem que o Espiritismo é o truque do armário dos irmãos Davenport [vide artigo publicado neste blog sob o título IRMÃOS DAVENPORT, em 10/12/2018]; outros afirmam que não passa da magia e da feitiçaria de outrora, que querem reabilitar sob um novo nome. Segundo as comadres de todos os bairros, os espíritas entretêm conversas misteriosas com o diabo, com o qual fizeram um compromisso prévio. Enfim, lendo-se os jornais, fica-se sabendo que todos os espíritas são loucos ou, pelo menos, deixam-se iludir por certos charlatães chamados médiuns. Esses charlatães veem, com ou sem armário, dar representações a quem os queira pagar e, para tornar mais verossímil suas trapaças, dizem operar sob a influência oculta dos Espíritos de além-túmulo.
Eis o que eu tinha aprendido nestes últimos tempos. Considerando a discordância dessas respostas, resolvi, para me esclarecer, ir ver o diabo, ainda que me vencesse, ou me deixar enganar por um médium, mesmo que tivesse de perder a razão. Lembrei-me então, muito a propósito, de um amigo que suspeitava fosse espírita, e fui procurá-lo, a fim de me proporcionar meios de satisfazer a minha curiosidade.
Comuniquei-lhe as diversas opiniões que eu havia recolhido e expus o objetivo de minha visita. Mas meu amigo riu muito do que chamava a minha ingenuidade e me deu, mais ou menos, a seguinte explicação:

O Espiritismo não é, como se crê vulgarmente, uma receita para fazer as mesas dançar ou para executar truques de escamoteação, e é um equívoco que nisto cada um queira encontrar o maravilhoso.
O Espiritismo é uma Ciência ou, melhor dizendo, uma Filosofia espiritualista, que ensina a moral.
 Não é uma Religião, pois não tem dogmas, nem culto, nem sacerdotes, nem artigos de fé; é mais que uma filosofia, porque sua doutrina é estabelecida sobre a prova certa da imortalidade da alma. É para fornecer esta prova que os espíritas evocam os Espíritos de além-túmulo.
Os médiuns são dotados de uma faculdade natural, que os torna aptos a servir de intermediários aos Espíritos e a produzir com eles os fenômenos que passam por milagres ou por prestidigitação, aos olhos de quem quer que lhes ignore a explicação. Mas a faculdade mediúnica não é privilégio exclusivo de certos indivíduos; é inerente à espécie humana, embora cada um a possua em diferentes graus, ou sob diferentes formas.
Assim, para os que conhecem o Espiritismo, todas as maravilhas de que acusam esta doutrina não passam de fenômenos de ordem física, isto é, de efeitos cuja causa reside nas leis da Natureza.
Entretanto, os Espíritos não se comunicam com os vivos unicamente com o objetivo de lhes provar a sua existência: eles ditaram e desenvolvem todos os dias a filosofia espiritualista.
Como toda filosofia, esta tem o seu sistema, que consiste na revelação das leis que regem o Universo e na solução de um grande número de problemas filosóficos, diante dos quais, até agora, a Humanidade impotente foi obrigada a inclinar-se.
É assim que o Espiritismo demonstra, entre outras coisas, a natureza da alma, seu destino, a causa de nossa existência na Terra; desvenda o mistério da morte; dá razão dos vícios e virtudes do homem; diz o que são o homem, o mundo, o Universo; enfim, faz o quadro da harmonia universal etc.
Este sistema repousa em provas lógicas e irrefutáveis que têm, elas próprias, por árbitro de sua verdade, fatos palpáveis e a mais pura razão. Assim, em todas as teorias que expõe, age como a Ciência e não avança um ponto senão quando o precedente esteja completamente certificado. O Espiritismo não impõe a confiança porque, para ser aceito, não precisa senão da autoridade do bom-senso.
Uma vez estabelecido este sistema, dele se deduz, como consequência imediata, um ensinamento moral.
Esta moral não é outra senão a moral cristã, a moral que está escrita no coração de todo ser humano; e é de todas as religiões e de todas as filosofias, pertencendo, por isso mesmo, a todos os homens. Mas, isenta de todo fanatismo, de toda superstição, de todo espírito de seita ou de escola, resplandece em toda a sua pureza.
É a esta pureza que ela deve toda a sua grandeza e toda a sua beleza, de sorte que é a primeira vez que a moral nos aparece revestida de um brilho tão majestoso e tão esplêndido.
O objetivo de toda moral é ser praticada; mas esta, sobretudo, considera tal condição como absoluta, porque chama espíritas não os que aceitam seus preceitos, mas os que põem as suas regras em ação.
Dizer quais são as suas doutrinas? Aqui não pretendo ensinar, já que o enunciado das máximas me conduziria, necessariamente, ao seu desenvolvimento.
Apenas direi que a moral espírita nos ensina a suportar a desgraça sem a desprezar, a fruir a felicidade sem a ela nos apegarmos; ela nos rebaixa sem nos humilhar, e nos eleva sem nos envaidecer; coloca-nos acima dos interesses materiais, sem por isto os marcar com o aviltamento, porque nos ensina, ao contrário, que todas as vantagens com que somos favorecidos são outras tantas forças que nos são confiadas e por cujo emprego somos responsáveis para conosco e para com os outros.
 Vem, então, a necessidade de especificar esta responsabilidade, as penas ligadas à infração do dever e as recompensas de que desfrutam os que obedeceram. Mas, também aí, as asserções não são tiradas senão dos fatos e podem verificar-se até a perfeita convicção.
Tal é esta filosofia, onde tudo é grande, porque aí tudo é simples; onde nada é obscuro, porque tudo é provado; onde tudo é simpático, porque cada questão interessa intimamente a cada um de nós.
Tal é esta ciência que, projetando viva luz sobre as trevas da razão, de repente desvenda os mistérios que julgávamos impenetráveis, recuando até o infinito o horizonte da inteligência.
Tal é esta doutrina, que pretende tornar felizes, melhorando-os, todos os que concordam em segui-la, e que, enfim, abre à Humanidade uma estrada segura para o progresso moral.
“Tal é, finalmente, a loucura de que estão acometidos os espíritas e a feitiçaria que praticam.”

Assim, sorrindo, terminou meu amigo que, a meu pedido, agendou um encontro para, juntos, participarmos de algumas reuniões espíritas onde, às experiências, se alia o ensino.
Voltando para casa, lembrei o que havia dito, concordando com todo o mundo, contra o Espiritismo, antes de nem sequer conhecer o significado desta palavra, e essa lembrança encheu-me de amarga confusão.
Então pensei que, malgrado os severos desmentidos infligidos ao orgulho humano pelas descobertas da ciência moderna, quase não pensávamos, na época de progresso em que vivemos, em tirar proveito dos ensinamentos da experiência; e que estas palavras escritas por Pascal, há duzentos anos, ainda por muitos séculos serão de rigorosa exatidão:
É uma doença natural ao homem crer que possui a verdade diretamente; é por isto que está sempre disposto a negar aquilo que lhe é incompreensível.
A. Briquel

Como se vê, o autor deste artigo quis apresentar o Espiritismo sob sua verdadeira luz, isento das distorções com que a crítica o constrange, numa palavra, tal como o admitem os espíritas, e sentimo-nos felizes ao dizer que o conseguiu perfeitamente. Com efeito, é impossível resumir a questão de maneira mais clara e precisa. Devemos, também, felicitar a direção do jornal que, com aquele espírito de imparcialidade que gostaríamos de ver em todos os que fazem profissão de liberalismo e se apresentam como apóstolos da liberdade de pensar, acolheu uma profissão de fé tão explícita.
Aliás, suas intenções a respeito do Espiritismo estão claramente formuladas no artigo seguinte, publicado no número de 28 de janeiro:

Como ouvimos falar do Espiritismo
“O artigo sobre o Espiritismo, publicado em nosso número de 31 de dezembro, provocou numerosas perguntas, com o fito de saber se nos propomos tratar posteriormente desta questão e se nos transformamos em seu porta-voz. A fim de evitar qualquer equívoco, torna-se necessária uma explicação categórica.

Eis nossa resposta:

O Discussion é um jornal aberto a todas as ideias progressistas. Ora, o progresso não pode ser feito senão pelas ideias novas que, de vez em quando, vêm mudar o curso das ideias preconceituosas. Repeli-las porque destroem aquelas em que fomos acalentados, é, aos nossos olhos, faltar à lógica. Sem nos tornarmos apologistas de todas as elucubrações do espírito humano, o que não seria mais racional, consideramos como um dever de imparcialidade pôr o público em condições de julgá-las. Para tanto, basta apresentá-las tais quais são, sem tomar, prematuramente, partido pró ou contra; porque, se forem falsas, não será a nossa adesão que as tornará justas, e se forem justas, nossa desaprovação não as tornará falsas. Em tudo, é a opinião pública e o futuro que se pronunciam em última instância. Contudo, para apreciar o lado forte e o fraco de uma ideia, é preciso conhecê-la em sua essência, e não tal qual a apresentam os interessados em combatê-la, no mais das vezes truncada e desfigurada. Se, pois, expusermos os princípios de uma teoria nova, não queremos que os seus autores ou os seus partidários possam censurar-nos por lhes fazermos dizer o contrário do que dizem. Agir assim não é assumir a sua responsabilidade: é dizer o que é e reservar a opinião de todo o mundo. Destacamos a ideia em toda a sua verdade. Se for boa, fará o seu caminho e nós lhe teremos aberto a porta; se for má, teremos fornecido os meios para ser julgada com conhecimento de causa.
É assim que procederemos em relação ao Espiritismo. Seja qual for a maneira de ver a seu respeito, ninguém pode esconder a extensão que ele tomou em alguns anos. Pelo número e pela qualidade de seus partidários conquistou lugar entre as opiniões aceitas. As tempestades que provoca a obstinação com que o combatem em certo meio são, para os menos clarividentes, o indício de que ele encerra algo de grave, já que causa perturbação em tanta gente. Que pensem dele o que quiserem; é, incontestavelmente, uma das grandes questões na ordem do dia. Assim, não seríamos consequentes com o nosso programa se o passássemos em silêncio. Nossos leitores têm o direito de pedir que lhes informemos o que é essa doutrina, que provoca tão grande celeuma; é nosso interesse satisfazê-los, e nosso dever fazê-lo com imparcialidade. Pouco lhes importa nossa opinião sobre a coisa; o que esperam de nós é um relato exato dos fatos e das atitudes de seus partidários, sobre os quais possam formar sua própria opinião. Como procederemos? É muito simples: iremos à própria fonte; faremos pelo Espiritismo o que fazemos pelas questões de política, de finanças, de ciência, de arte ou de literatura; ou seja, para isto encarregaremos homens especiais. As questões de Espiritismo serão, pois, tratadas por espíritas, como as de Arquitetura por arquitetos, a fim de que não nos qualifiquem de cegos discorrendo sobre as cores e que não nos apliquem estas palavras de Fígaro: Precisavam de um calculista e tomaram um dançarino.
Em suma, o Discussion não se arvora como órgão, nem como apóstolo do Espiritismo; abre a ele as suas colunas, como a todas as ideias novas, sem pretender impor essa opinião aos seus leitores, sempre livres de controlá-la, de aceitá-la ou de rejeitá-la.
Deixa aos seus redatores especiais inteira liberdade de discutir os princípios, cuja responsabilidade só eles assumem. Mas o que repelirá sempre, no interesse de sua própria dignidade, é a polêmica agressiva e pessoal.




[1] Revista Espírita – Fevereiro/1866 – Allan Kardec
[2] Redação em Bruxelas, 17, Montagne de Sion; Paris, 31, rue Bergère. – Preço para a França, 12 fr. por ano; 7 fr. por semestre. Cada número de oito páginas grande in-fólio: 25 centavos.

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