terça-feira, 7 de abril de 2020

UMA NOVA DESCOBERTA FOTOGRÁFICA[1]



Allan Kardec

Vários jornais relataram o seguinte fato:
O Sr. Badet, morto no dia 12 de novembro último, após uma enfermidade de três meses – diz o jornal “Union bourguignonne”, de Dijon – costumava, toda vez que lhe permitiam as forças, postar-se a uma janela do primeiro andar, com a cabeça constantemente voltada para o lado da rua, a fim de se distrair vendo os transeuntes que passavam. Há alguns dias a Sra. Peltret, cuja casa fica defronte da residência da viúva Badet, percebeu na vidraça dessa janela o próprio Sr. Badet, com seu boné de algodão, seu rosto emagrecido etc., enfim, tal qual o tinha visto durante sua doença.
Grande foi sua emoção, para dizer o mínimo. Não apenas chamou os vizinhos, cujo testemunho podia ser suspeito, mas também homens sérios, que perceberam bem distintamente a imagem do Sr. Badet na vidraça da janela em que tinha o costume de ficar. Tal imagem foi mostrada também à família do defunto, que imediatamente fez desaparecer o vidro.
Ficou, todavia, bem constatado que a vidraça tinha tomado a impressão do rosto do doente, que nela estava como que daguerreotipado[2], fenômeno que poderíamos explicar se, do lado oposto à janela, houvesse outra, por onde os raios solares pudessem ter chegado ao Sr. Badet; mas não havia nada: o quarto só tinha uma única janela. Tal é a verdade, nua e crua, sobre esse fato impressionante, cuja explicação deve ser deixada aos sábios.

Confessamos que, à leitura desse artigo, nosso primeiro impulso foi o de classificá-lo como vulgar, como se faz com as notícias apócrifas, a ele não ligando a menor importância. Poucos dias depois, o Sr. Jobard, de Bruxelas, assim nos escrevia:
À leitura do fato que se segue – daquele que acabamos de citar – passado em meu país, com um de meus parentes, dei de ombros ao ver o jornal que o relata remeter aos sábios a sua explicação, e essa valorosa família retirar a vidraça através da qual Badet olhava os transeuntes. Evocai-o para saber o que ele pensa disso.

Essa confirmação do fato, da parte de um homem do caráter do Sr. Jobard, cujos méritos e honorabilidade todos conhecem, além da circunstância particular de ser o herói um de seus parentes, não nos poderiam deixar dúvida quanto à sua veracidade. Conseguintemente, evocamos o Sr. Badet na sessão da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, no dia 15 de junho de 1858, terça-feira. Eis as explicações que se seguiram:
1. Rogo a Deus Todo-Poderoso permitir ao Espírito Badet, morto em Dijon a 11 de novembro último, que se comunique conosco.
– Estou aqui.
2. O fato que vos concerne e que acabamos de relembrar é verdadeiro?
– Sim, é verdadeiro.
3. Poderíeis dar-nos a sua explicação?
– Existem agentes físicos, por ora desconhecidos, que mais tarde se tornarão comuns. Trata-se de um fenômeno bastante simples, semelhante a uma fotografia, combinada com forças que ainda não descobristes.
4. Por vossas explicações poderíeis apressar o momento dessa descoberta?
– Bem que gostaria, mas isso é tarefa de outros Espíritos e do trabalho humano.
5. Poderíeis reproduzir, pela segunda vez, o mesmo fenômeno?
– Não fui eu quem o produziu, foram as condições físicas, das quais sou independente.
6. Pela vontade de quem, e com que finalidade se deu esse fato?
– Produziu-se quando eu era vivo, e independente da minha vontade; um estado particular da atmosfera o revelou depois.
Tendo-se estabelecido uma discussão entre os assistentes sobre as prováveis causas desse fenômeno, e sendo emitidas várias opiniões sem que ao Espírito fossem dirigidas outras perguntas, disse este espontaneamente: “E não levais em consideração a eletricidade e a galvanoplastia, que agem também sobre o perispírito”?
7. Foi-nos dito ultimamente que os Espíritos não têm olhos; ora, se essa imagem é a reprodução do perispírito, como foi possível reproduzir os órgãos da visão?
– O perispírito não é o Espírito; a aparência, ou perispírito tem olhos, mas o Espírito não os possui. Já vos disse bem, falando do perispírito, que eu estava vivo.

Observação – Enquanto aguardamos que essa nova descoberta se faça, lhe daremos o nome provisório de fotografia espontânea. Todos lamentarão que, por um sentimento difícil de compreender, tenham destruído a vidraça sobre a qual estava reproduzida a imagem do Sr. Badet; tão curioso monumento poderia facilitar as pesquisas e as observações próprias para o estudo da questão. Talvez tenham visto nessa imagem uma obra do demônio; em todo o caso, se o demônio tem algo a ver com esse assunto, é seguramente na destruição da vidraça, porque é inimigo do progresso.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A FOTOGRAFIA ESPONTÂNEA
Resulta das explicações acima que, em si mesmo, o fato não é sobrenatural, nem miraculoso. Quantos fenômenos estão no mesmo caso, que nos tempos de ignorância deverão ter ferido as imaginações por demais propensas ao maravilhoso! É, pois, um efeito puramente físico, que prenuncia um novo passo na ciência fotográfica.
Como se sabe, o perispírito é o envoltório semimaterial do Espírito; não é apenas depois da morte que o Espírito dele se acha revestido; durante a vida está unido ao corpo: é o laço entre o corpo e o Espírito. A morte é apenas a destruição do envoltório mais grosseiro; o Espírito conserva o segundo, que afeta a aparência do primeiro, como se dele tivesse guardado a impressão. Geralmente invisível, em certas circunstâncias o perispírito se condensa e, combinando-se com outros fluidos, torna-se perceptível à visão e, por vezes, até mesmo tangível; é ele que é visto nas aparições.
Sejam quais forem a sutileza e a imponderabilidade do perispírito, nem por isso deixa de ser uma espécie de matéria, cujas propriedades físicas nos são ainda desconhecidas. Desde que é matéria, pode agir sobre a matéria; essa ação é patente nos fenômenos magnéticos; acaba de revelar-se nos corpos inertes, pela impressão que a imagem do Sr. Badet deixou na vidraça. Essa impressão se deu quando estava vivo; conservou-se após sua morte, mas era invisível; foi necessário, ao que parece, a ação fortuita de um agente desconhecido, provavelmente atmosférico, para torná-la aparente.
Que haveria nisso de espantoso? Não é sabido que podemos, à vontade, fazer aparecer e desaparecer a imagem daguerreotipada?
Citamos isto como comparação, sem pretender estabelecer analogia de processos. Desse modo, seria o perispírito do Sr. Badet que, exteriorizando-se do corpo deste último, teria, com o passar do tempo e sob o império de circunstâncias desconhecidas, exercido uma verdadeira ação química sobre a substância vítrea, semelhante à da luz. Incontestavelmente, a luz e a eletricidade devem desempenhar um grande papel nesse fenômeno. Resta saber quais são os agentes e essas circunstâncias; é o que mais tarde provavelmente se saberá, e não será uma das descobertas menos curiosas dos tempos modernos.
Se é um fenômeno natural, dirão os que tudo negam, por que é a primeira vez que se produz? Por nossa vez, perguntar-lhes-emos por que as imagens daguerreotipadas só se fixaram depois de Daguerre, embora não tenha sido ele quem inventou a luz, nem tampouco as placas de cobre, nem a prata, nem os cloretos? Há muito tempo se conhecem os efeitos da câmara escura; uma circunstância fortuita favoreceu a via da fixação; depois, auxiliados pelo gênio, de perfeição em perfeição chegou-se às obras-primas que vemos hoje. Provavelmente será o mesmo fenômeno estranho que acaba de revelar-se; e quem sabe se ele já não se produziu e se não passou despercebido por falta de um observador atento? A reprodução de uma imagem sobre um vidro é um fato vulgar, mas a fixação dessa imagem em outras condições que não a da fotografia, o estado latente dessa imagem, sua reaparição depois, eis o que deve ser marcado nos fastos da Ciência. Se cremos nos Espíritos, devemos esperar muitas outras maravilhas, várias das quais nos são assinaladas por eles. Honra, pois, aos sábios suficientemente modestos para não acreditarem que a Natureza, para eles, já tenha virado a última página de seu livro.
Se esse fenômeno se produziu uma vez, deve poder reproduzir-se. É o que provavelmente ocorrerá quando dele tivermos a chave. Enquanto aguardamos, eis o que contava um dos membros da Sociedade, na sessão de que falamos:
Disse ele:
Eu habitava uma casa em Montrouge; estávamos no verão, o sol cintilava pela janela. Na mesa havia uma garrafa cheia d’água e, debaixo dela, uma pequena esteira; de repente, a esteira pegou fogo. Se alguém não estivesse lá, um incêndio poderia ter ocorrido sem que se lhe soubesse a causa. Tentei reproduzir o mesmo fenômeno centenas de vezes e jamais o consegui.

A causa física da combustão é bem conhecida: a garrafa produziu o efeito de um vidro ardente. Mas por que não se pôde repetir a experiência? É que, independentemente da garrafa d’água, houve o concurso de circunstâncias que operavam de modo excepcional a concentração dos raios solares: talvez o estado da atmosfera, dos vapores, da água, a eletricidade etc., e provavelmente tudo isso, em certas proporções requeridas; daí a dificuldade de reproduzir-se exatamente as mesmas condições e a inutilidade das tentativas para se chegar a um efeito semelhante.
Eis, pois, um fenômeno inteiramente do domínio da física, do qual conhecemos o princípio, mas que, entretanto, não podemos repetir à vontade. Acorrerá à mente do céptico mais empedernido negar o fato? Seguramente não. Por que, então, negam esses mesmos cépticos a realidade dos fenômenos espíritas – falamos das manifestações em geral – simplesmente por não as poderem manipular à vontade? Não admitir que fora daquilo que conhecemos possa haver agentes novos, regidos por leis especiais; negar esses agentes, porque não obedecem às leis que conhecemos, é dar prova de bem pouca lógica e revelar um espírito por demais limitado.
Voltemos à imagem do Sr. Badet. Como nosso colega e sua garrafa, certamente se farão numerosas tentativas infrutíferas, antes de obter qualquer êxito, até que um acaso feliz, ou o esforço de um gênio poderoso, possa dar a chave do mistério. Então, isso se transformará provavelmente numa arte nova, de que se enriquecerá a indústria. Desde já podemos ouvir numerosas pessoas dizerem: mas há um meio bem mais simples de termos essa chave: por que não a pedem aos Espíritos? É o caso de realçar um erro em que cai a maior parte dos que julgam a ciência espírita sem a conhecer.
Lembremos, primeiramente, deste princípio fundamental: os Espíritos, ao contrário do que se pensava outrora, longe estão de tudo saber.
Dá-nos a escala espírita a medida de sua capacidade e moralidade, e diariamente a experiência confirma nossas observações a esse respeito. Os Espíritos, pois, nem tudo sabem, em muitos aspectos sendo bastante inferiores a certos homens: eis o que não podemos jamais perder de vista. O Espírito Badet, autor involuntário do fenômeno de que nos ocupamos, por suas respostas demonstra uma certa elevação, mas não uma grande superioridade; ele próprio reconhece sua falta de habilidade para dar uma explicação completa; como dissera, isso é “tarefa de outros Espíritos e do trabalho humano”. Estas últimas palavras encerram todo um ensinamento. De fato, seria bastante cômodo não ter senão que interrogar os Espíritos para fazermos as mais extraordinárias descobertas; onde, então, estaria o mérito dos inventores, se mão oculta lhes viesse facilitar a tarefa e poupar-lhes o trabalho de pesquisa? Por certo, mais de uma pessoa não teria escrúpulo de registrar uma patente de invenção em seu nome pessoal, sem mencionar o verdadeiro inventor. Acrescentemos que semelhantes perguntas são feitas visando sempre a interesses e na esperança de fortuna fácil, coisas pessimamente recomendadas junto aos Espíritos bons; aliás, eles não se prestam jamais a servir como instrumento de tráfico. O homem deve ter a sua iniciativa, sem o que será reduzido à condição de máquina; deve aperfeiçoar-se pelo trabalho: é uma das condições de sua existência terrestre. É necessário, também, que cada coisa venha a seu tempo e pelos meios que apraz a Deus empregar, pois os Espíritos não podem desviar os caminhos da Providência. Querer forçar a ordem estabelecida é colocar-se à mercê dos Espíritos zombeteiros que lisonjeiam a ambição, a cupidez e a vaidade, para depois se rirem das decepções que causam. Muito pouco escrupulosos de sua natureza, dizem tudo o que se quer, dão todas as receitas que se lhes pede e, se necessário, as apoiarão em fórmulas científicas, sem se importarem ao menos se terão o valor das receitas dos charlatães. Iludem-se, pois, todos aqueles que acreditavam pudessem os Espíritos abrir-lhes minas de ouro: sua missão é mais séria. “Trabalhai, esforçai-vos; eis o que de fato precisais”, disse um célebre moralista, do qual em breve daremos uma notável conversa de além-túmulo. A essa sábia máxima, a Doutrina Espírita acrescenta:
É a estes que os Espíritos sérios vêm auxiliar, pelas ideias que lhes sugerem ou por conselhos diretos, e não aos preguiçosos, que desejam gozar sem nada fazer, nem aos ambiciosos, que querem ter mérito sem esforço. Ajuda-te e o céu te ajudará.




[1] Revista Espírita – Julho/1858 – Allan Kardec
[2] Descrição .exatíssima.

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