quarta-feira, 8 de abril de 2020

A SANGRENTA HISTÓRIA DAS TRADUÇÕES DA BÍBLIA[1]



Harry Freedman[2] - BBC History Magazine - 27 maio 2019

Em 1427, o papa Martinho 5º ordenou que os ossos de John Wycliffe fossem exumados de seu túmulo, queimados e jogados em um rio. Wycliffe morrera havia 40 anos, mas a fúria causada por sua ofensa ainda permanecia viva.
John Wycliffe (1330-1384) foi um dos principais pensadores ingleses do século 14.
Teólogo de profissão, ele foi chamado para assessorar o Parlamento em suas negociações com Roma.
Naquela época, a igreja era todo-poderosa, e quanto mais contato Wycliffe tinha com Roma, mais indignado ele se sentia. Em sua visão, o papado estava envenenado por corrupção e interesses pessoais. E ele estava determinado a fazer algo sobre isso.
Wycliffe começou a publicar panfletos argumentando que, em vez de buscar riqueza e poder, a igreja deveria se preocupar com os pobres.
Em uma ocasião, descreveu o papa como "o anticristo, o sacerdote mundano de Roma e o mais amaldiçoado dos batedores de carteira".
Em 1377, o bispo de Londres exigiu que Wycliffe aparecesse perante sua corte para explicar as "coisas surpreendentes que brotaram de sua boca".
O julgamento de Wycliffe na Catedral de São Paulo, em Londres, ocorreu em 3 de fevereiro de 1377.
A audiência foi uma farsa do começo ao fim.
Tudo começou com uma briga violenta sobre se Wycliffe deveria sentar-se ou não. Juan de Gaunt, filho do rei e aliado de Wycliffe, reiterou que os acusados permanecessem sentados; já o bispo exigiu que ele se levantasse.
Quando o Papa ouviu falar sobre o fiasco do julgamento, emitiu uma bula [carta ou documento oficial papal] em que acusou Wycliffe de "vomitar do calabouço sujo de seu coração as mais perversas e condenáveis heresias".
Wycliffe foi acusado de heresia e colocado em prisão domiciliar. Mais tarde, acabou forçado a deixar seu posto como professor do Balliol College, em Oxford.

'Emancipação dos pobres'
Wycliffe dizia acreditar firmemente que a Bíblia deveria estar disponível para todos. Via a alfabetização como a chave para a emancipação dos pobres.
Naquela época, embora partes da Bíblia já tivessem sido traduzidas para o inglês, ainda não havia uma tradução completa do livro sagrado.
As pessoas comuns, que nem falavam latim nem podiam ler, só podiam aprender com o clero. E muito do que eles achavam que sabiam, ideias como o fogo do inferno e o purgatório, não faziam parte das Escrituras.
Assim, com a ajuda de seus assistentes, Wycliffe produziu uma Bíblia em inglês, durante 13 anos, começando em 1382.
Era inevitável que uma reação violenta eclodisse: em 1391, antes que a tradução da Bíblia fosse concluída, um projeto de lei foi apresentado ao Parlamento para proibir a Bíblia em inglês e prender qualquer pessoa que possuísse uma cópia do livro sagrado.
O projeto de lei não foi aprovado ‒ John de Gaunt cuidou disso no Parlamento ‒, mas a igreja retomou sua perseguição contra Wycliffe.
Mas Wycliffe havia morrido 7 anos antes, em 1384.
Sem alternativas, o melhor que podiam fazer era queimar os ossos [em 1427], de modo que seu túmulo não fosse reverenciado.
O arcebispo de Canterbury disse que Wycliffe tinha sido "aquele canalha pestilento, de memória condenável, sim, o precursor e discípulo do Anticristo que, além de sua maldade, inventou uma nova tradução das Escrituras em sua língua materna".

Jan Hus
Em 1402, Jan Hus, um recém-ordenado padre tcheco, foi designado para celebrar missas em Praga.
Inspirado pelos escritos de Wycliffe, que então circulavam pela Europa, Hus usou sua posição para fazer campanha pela reforma administrativa e pelo fim da corrupção na Igreja.
Como Wycliffe, Hus dizia acreditar que a reforma social só poderia ser alcançada por meio da alfabetização.
Sendo assim, dar às pessoas uma Bíblia escrita em tcheco, em vez de latim, se tornou imperativo.
Hus reuniu uma equipe de estudiosos e em 1416 surgiu a primeira Bíblia tcheca.
A publicação do livro foi considerada uma provocação direta àqueles que ele chamou de "os discípulos do anticristo" e a consequência era previsível: Hus foi preso por heresia.
O julgamento de Hus, que ocorreu na cidade de Constança (atual Alemanha), é um dos mais espetaculares da história.
A audiência teve a presença de quase todos os mandachuvas da Europa.
Um arcebispo chegou com 600 cavalos; 700 prostitutas ofereceram seus serviços; 500 pessoas se afogaram no lago; e o papa caiu da carruagem em cima da neve.
O entorno era tão apoteótico que a eventual condenação e execução brutal de Hus poderia ser considerada um anticlímax nesta história.
Hus foi condenado como herege e morreu queimado vivo.
Sua morte desencadeou uma revolta popular. Sacerdotes e igrejas foram atacados. Houve retaliação por parte das autoridades. Em poucos anos, a Boêmia entrou em guerra civil.
Tudo porque Jan Hus teve a coragem de traduzir a Bíblia.

William Tyndale
Em relação à Bíblia inglesa, William Tyndale foi outro tradutor famoso que perdeu a vida por causa do livro sagrado.
Ele vivia na Inglaterra do século 16, governada pelo rei Henry VIII.
A tradução da Wycliffe ainda estava proibida e, embora as cópias dos manuscritos estivessem disponíveis no mercado negro, eram difíceis de encontrar e caras de adquirir. A maioria das pessoas ainda não tinha ideia do que a Bíblia realmente dizia.
Mas a impressão em papel estava se tornando mais comum, e Tyndale achou que era o momento certo para uma tradução acessível e atualizada.
Ele sabia que poderia criar uma. Tudo o que ele precisava era do financiamento e da bênção da igreja.
No entanto, rapidamente se deu conta de que ninguém em Londres estava disposto a ajudá-lo. Nem mesmo seu amigo, o bispo de Londres, Cuthbert Tunstall.
Mas o clima religioso parecia menos opressivo na Alemanha.
Lutero já havia traduzido a Bíblia para o alemão; a Reforma Protestante estava se acelerando e Tyndale achava que teria mais sucesso com seu projeto ali. Então, viajou a Colônia e começou a imprimi-la.
Sua iniciativa provou-se um erro. Colônia ainda estava sob o controle de um arcebispo leal a Roma.
Quando estava no meio da impressão do Evangelho de São Mateus, descobriu que as autoridades estavam prestes a invadir a gráfica. Rapidamente, pegou seus originais e fugiu.
Essa história se repetia várias vezes. Tyndale passou os anos seguintes esquivando-se de espiões ingleses e de agentes romanos.
Mas ele conseguiu concluir sua Bíblia e as cópias logo inundaram a Inglaterra ilegalmente, é claro.
O projeto estava completo, mas Tyndale era um homem marcado pelas autoridades. E ele não era o único.
O cardeal Wolsey estava fazendo campanha contra a Bíblia de Tyndale. Ninguém próximo a Tyndale estava a salvo.
Thomas Hitton, um padre que conheceu Tyndale na Europa, confessou ter contrabandeado duas cópias da Bíblia para a Inglaterra. Ele foi acusado de heresia e queimado vivo.
Um advogado que mal conhecia Tyndale, Thomas Bilney, também foi jogado nas chamas em 1531.
Richard Bayfield, um monge que havia sido um dos primeiros apoiadores de Tyndale, foi torturado incessantemente antes de ser amarrado à estaca e queimado. E um grupo de estudantes em Oxford foi confinado em uma masmorra, usada para armazenar peixes salgados, até a morte.
O fim de Tyndale não foi menos trágico.
Ele foi traído em 1535 por Henry Phillips, um jovem aristocrata que roubara o dinheiro do pai e o perdera em apostas.
Tyndale estava escondido em Antuérpia, sob a proteção quase diplomática da comunidade mercantil inglesa. Phillips tornou-se amigo de Tyndale e o convidou para jantar. Quando deixaram a casa do comerciante inglês juntos, Phillips fez um gesto a criminosos para que Tyndale fosse preso.
Foi o último momento de sua vida em liberdade.
Tyndale foi acusado de heresia em agosto de 1536 e queimado na fogueira algumas semanas depois.
Em Antuérpia, a cidade onde Tyndale acreditava estar seguro, Jacob van Liesveldt produziu uma Bíblia em holandês.
Como tantas outras traduções do século XVI, seu ato foi tanto político quanto religioso.
Sua Bíblia foi ilustrada com xilogravuras: na quinta edição, ele representou Satanás com a aparência de um monge católico, com pés de bode e um rosário.
Foi um passo longe demais.
Van Liesveldt foi preso, acusado de heresia e condenado à morte.

Uma era assassina
O século XVI foi, de longe, o período mais sangrento para os tradutores da Bíblia.
Mas as traduções sempre geraram ‒ e continuam a gerar ‒ fortes emoções.
Em 1960, a Reserva da Força Aérea dos EUA alertou os recrutas contra o uso da Versão Padrão Revisada, recém-publicada na época porque, segundo eles, 30 pessoas em seu comitê de tradução haviam sido "afiliadas às frentes comunistas".
Em 1961, o americano TS Eliot, um dos principais poetas do século XX, opôs-se à Nova Bíblia em inglês e escreveu que "assusta sua combinação do vulgar, do trivial e do pedante".
E tradutores da Bíblia ainda estão sendo mortos. Não necessariamente por causa da tradução do livro sagrado, mas por suas atividades como missionários cristãos.
Em 1993, Edmund Fabian foi assassinado na Papua Nova Guiné por um homem local que o ajudara a traduzir a Bíblia.
Em março de 2016, quatro tradutores da Bíblia que trabalhavam para uma organização evangélica dos EUA foram mortos por militantes em um local não revelado no Oriente Médio.
Traduzir a Bíblia pode parecer uma atividade inofensiva, mas a história mostra que não.




[2] O escritor britânico Harry Freedman é especializado em história da religião. É autor do livro The Murderous History of Bible Translations (A História Assassina das Traduções da Bíblia, em tradução livre).

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