terça-feira, 17 de março de 2020

DISCURSO DE VICTOR HUGO JUNTO AO TÚMULO DE UMA JOVEM[1]



Allan Kardec

Embora esta tocante oração fúnebre tenha sido publicada por diversos jornais, encontra lugar igualmente nesta revista, em razão da natureza dos pensamentos que encerra, cujo alcance todos poderão compreender. O jornal do qual a tomamos dá conta da cerimônia fúnebre nos seguintes termos:
Uma triste cerimônia reunia, quinta-feira última, uma multidão dolorosamente comovida no cemitério dos independentes, em Guernesey. Inumavam uma jovem, que a morte viera surpreender em meio às alegrias da família, e cuja irmã se casara dias antes. Era uma moçoila feliz, a quem um dos filhos do grande poeta, Sr. François Hugo, havia dedicado o décimo quarto volume de sua tradução de Shakespeare; ela morreu na véspera do lançamento desse volume.
Como acabamos de dizer, a assistência era numerosa nesses funerais, numerosa e simpática, e é com viva emoção, com lágrimas que a amizade derramava, que ela ouviu as palavras de adeus, pronunciadas sobre esse túmulo tão prematuramente aberto, pelo ilustre exilado de Guernesey, pelo próprio Victor Hugo.
Eis o discurso pronunciado pelo poeta:

Em algumas semanas ocupamo-nos de duas irmãs: casamos uma e sepultamos a outra. Eis o perpétuo tremor da vida.
Inclinemo-nos, meus irmãos, ante o severo destino.
 Inclinemo-nos com esperança. Nossos olhos não foram feitos para chorar, mas para ver; nosso coração não foi feito para sofrer, mas para crer. A fé numa outra existência nasce da faculdade de amar. Não o esqueçamos: nesta vida inquieta e apaziguada pelo amor, é o coração quem crê. O filho conta encontrar a seu pai; a mãe não consente em perder para sempre o filho. Esta recusa do nada é a grandeza do homem.
O coração não pode errar. A carne é um sonho; ela se dissipa. Se esse desaparecimento fosse o fim do homem, tiraria à nossa existência toda sanção. Não nos contentamos com esta fumaça que é a matéria; precisamos de uma certeza. Quem quer que ame, sabe e sente que nenhum dos pontos de apoio do homem está na Terra. Amar é viver além da vida. Sem esta fé, nenhum dom perfeito do coração seria possível; amar, que é o objetivo do homem, seria o seu suplício. O paraíso seria o inferno. Não! Digamos bem alto, a criatura amante exige a criatura imortal. O coração necessita da alma.
Há um coração neste féretro, e esse coração está vivo.
Neste momento ele escuta minhas palavras.
Emily de Putron era o doce orgulho de uma família respeitável e patriarcal. Seus amigos e parentes tinham por deleite sua graça e por festa seu sorriso. Ela era como uma flor de alegria a desabrochar na casa. Desde o berço era cercada de todas as ternuras; cresceu feliz e, recebendo felicidade, dava felicidade; amada, amava. Ela acaba de partir.
Para onde foi? Para a sombra? Não.
Nós é que estamos na sombra. Ela está na aurora.
Ela está na glória, na verdade, na realidade, na recompensa. Essas jovens mortas, que não fizeram nenhum mal na vida, são bem-vindas do túmulo, e sua cabeça se ergue suavemente fora da sepultura, para uma coroa misteriosa. Emily de Putron foi buscar no céu a serenidade suprema, complemento das existências inocentes. Ela se foi: juventude, para a eternidade; beleza, para o ideal; esperança, para a certeza; amor, para o infinito; pérola, para o oceano; Espírito, para Deus.
Vai, alma!
O prodígio desta grande partida celeste, que chamam morte, é que os que partem não se afastam. Estão num mundo de claridade, mas assistem, como testemunhas enternecidas, ao nosso mundo de trevas. Estão no alto, e muito perto. Ó, quem quer que sejais, que vistes desaparecer na tumba um ente querido, não vos julgueis abandonados por ele. Está sempre lá. Está ao vosso lado mais que nunca. A beleza da morte é a presença. Presença inexprimível das almas amadas, sorrindo aos nossos olhos em lágrimas. O ser chorado desapareceu, mas não partiu. Não mais percebemos o seu rosto suave... Os mortos são os invisíveis, mas não estão ausentes.
Rendamos justiça à morte. Não sejamos ingratos para com ela. Ela não é, como se diz, um aniquilamento, uma cilada. É um erro acreditar que tudo se perde na obscuridade desta fossa aberta. Aqui tudo reaparece. O túmulo é um lugar de restituição. Aqui a alma retoma o infinito; aqui ela readquire a sua plenitude; aqui entra na posse de sua misteriosa natureza; liberta-se do corpo, liberta-se da necessidade, liberta-se do fardo, liberta-se da fatalidade. A morte é a maior das liberdades. É, também, o maior dos progressos. A morte é a ascensão de tudo o que viveu em grau supremo. Ascensão fascinante e sagrada. Cada um recebe o seu aumento. Tudo se transfigura na luz e pela luz. Aquele que na Terra só foi honesto torna-se belo; o que foi apenas belo torna-se sublime; o que só foi sublime torna-se bom.
E agora, eu que falo, por que estou aqui? O que é que trago a esta fossa? Com que direito venho dirigir a palavra à morte? Quem sou eu? Nada. Engano-me, sou alguma coisa. Sou um proscrito. Exilado pela força ontem, exilado voluntário hoje. Um proscrito é um vencido, um caluniado, um perseguido, um ferido do destino, um deserdado da pátria. Um proscrito é um inocente sob o peso de uma maldição. Sua bênção deve ser boa. Eu abençoo este túmulo.
Abençoo o ser nobre e gracioso que está nesta fossa. No deserto encontram-se oásis; no exílio encontram-se almas. Emily de Putron foi uma dessas encantadoras almas encontradas.
Venho pagar-lhe a dívida do exílio consolado. Eu a abençoo na profundeza da sombra. Em nome das aflições sobre as quais ela resplandeceu docemente, em nome das provações do destino, para ela acabadas, para nós continuadas; em nome de tudo o que ela esperou outrora e de tudo o que obtém hoje, em nome de tudo o que ela amou, abençoo esta morte, abençoo-a na sua grandeza, na sua juventude, na sua ternura, na sua vida e na sua morte; abençoa na sua branca túnica sepulcral, na sua missão que deixa desolada, no seu caixão, que sua mãe encheu de flores e que Deus vai encher de estrelas!

A estas notáveis palavras não falta absolutamente senão a palavra Espiritismo. Elas não expressam somente uma crença vaga na alma e em sua sobrevivência; ainda menos o frio nada, sucedendo à atividade da vida, enterrando para sempre sob o seu manto de gelo o Espírito, a graça, a beleza, as qualidades do coração; também não é a alma abismada neste oceano do infinito, que se chama o todo universal; é bem o ser real, individual, presente em nosso meio, sorrindo aos que lhe são caros, vendo-os, escutando-os, falando-lhes pelo pensamento. Que de mais belo, de mais verdadeiro que estas palavras:
Amar é viver além da vida. Sem esta fé, nenhum dom perfeito do coração seria possível; amar, que é o objetivo do homem, seria o seu suplício. O paraíso seria o inferno. Não! Digamos bem alto, a criatura amante exige a criatura imortal. O coração necessita da alma.” Que ideia mais justa da morte, do que esta: “O prodígio desta grande partida celeste, que chamam morte, é que os que partem não se afastam. Estão num mundo de claridade, mas assistem, como testemunhas enternecidas, ao nosso mundo de trevas... Estão no alto, e muito perto. Ó, quem quer que sejais, que vistes desaparecer na tumba um ente querido, não vos julgueis abandonados por ele. Está sempre lá.
Está ao vosso lado mais que nunca. É um erro acreditar que tudo se perde na obscuridade desta fossa aberta. Aqui tudo reaparece. O túmulo é um lugar de restituição. Aqui a alma retoma o infinito; aqui ela readquire a sua plenitude.

Não é exatamente o que ensina o Espiritismo? Mas aos que pudessem julgar-se vítimas de uma ilusão, ele vem aliar à teoria a sanção do fato material, pela comunicação dos que partiram, com os que ficam. Que há, pois, de tão desarrazoado em crer que esses mesmos seres, que estão ao nosso lado com um corpo etéreo, possam entrar em relação conosco?
Ó vós, cépticos, que rides de nossas crenças, rides, então, dessas palavras do poeta-filósofo, cuja alta inteligência reconheceis! Direis que é um alucinado? Que é louco quando crê na manifestação dos Espíritos? É louco quem escreveu:
Tenhamos compaixão dos punidos. Ah! Que somos nós mesmos? Que sou eu, eu que vos falo? Que sois vós, vós que me escutais? De onde viemos? É bem certo que nada fizemos antes de nascer? A Terra não deixa de assemelhar-se a uma masmorra. Quem sabe se o homem não é um reincidente da justiça divina? Olhai a vida de perto; ela é feita assim para que se sinta a punição em toda parte. (Os Miseráveis, 7º volume, livro VII, capítulo 1º).

Não está aí a preexistência da alma, a reencarnação na Terra; a Terra mundo de expiação? (Vide a Imitação do Evangelho, números 27, 46, 47).
Vós que negais o futuro, que estranha satisfação é a vossa de vos comprazerdes ao pensamento do aniquilamento do vosso ser, daqueles a quem amastes! Oh! Tendes razão de temer a morte, porquanto, para vós, é o fim de todas as vossas esperanças.
Tendo sido lido o discurso acima na Sociedade de Paris, na sessão de 27 de janeiro de 1865, o Espírito da jovem Emily de Putron, que, por certo, o escutava e partilhava da emoção da assistência, manifestou-se espontaneamente pela Sra. Costel e ditou as seguintes palavras:
As palavras do poeta correram como um sopro sonoro sobre esta assembleia; fizeram estremecer os vossos Espíritos; evocaram minha alma, que ainda flutua incerta no éter infinito!
Ó, poeta, revelador da vida, bem conheces a morte, pois não coroas com ciprestes aqueles a quem choras, mas prendes às suas frontes as frágeis violetas da esperança! Passei rápida e ligeira, apenas aflorando as comoventes alegrias da vida; ao final do dia fui arrebatada sobre o trêmulo raio que morria no seio das ondas.
Ó minha mãe, minha irmã, minhas amigas, grande poeta! não choreis mais; ficai atentos! O murmúrio que roça os vossos ouvidos é o meu; o perfume da flor pendente é o meu suspiro. Misturo-me à grande vida para melhor penetrar o vosso amor. Somos eternos; o que não teve começo não pode acabar, e o teu gênio, ó poeta, semelhante ao rio que corre para o mar, encherá a eternidade com o poder que é força e amor!
Emily




[1] Revista Espírita – Fevereiro/1865 – Allan Kardec

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