terça-feira, 19 de novembro de 2019

O Espiritismo de Alto a Baixo da Escala[1]




Nada ensinamos de novo aos nossos irmãos em crença, nem aos nossos adversários, dizendo que o Espiritismo invade todas as camadas da sociedade. As duas cartas que aqui citamos têm por objetivo principal realçar a similitude de sentimentos que a doutrina suscita nos dois polos extremos da escala social, em indivíduos que não têm nenhum contato, que jamais vimos e que, no entanto, se encontram no mesmo terreno, sem outro guia a não ser a leitura das obras. Um é um dignitário do império russo, e o outro um simples pastor da Touraine.
Eis a primeira das cartas:

Senhor,
Desde 23 de outubro último formou-se em nossa cidade um grupo espírita sob a proteção do apóstolo São Pedro.
Considerando que sois nosso mestre em Espiritismo, julgo um dever, senhor, como presidente deste grupo, dar-vos esta informação.
O objetivo principal a que nos propomos é o alívio dos Espíritos sofredores, tanto encarnados quanto desencarnados.
Nossas reuniões ocorrem duas vezes por semana. Procuramos alcançar a unidade de pensamento e, para o conseguir, cada assistente, durante toda a sessão, guarda o mais recolhido silêncio.
A pergunta feita aos Espíritos é lida em voz alta e cada um de nós, mentalmente, pede ajuda a seu anjo da guarda, a fim de obter uma resposta verdadeira. Em nossas evocações tratamos, na maioria das vezes, com Espíritos de ordem inferior, Espíritos obsessores; e como conhecemos, por experiência, a eficácia da prece em comum, a ela quase sempre recorremos para esclarecer e aliviar esses infelizes. Nosso grupo possui muitos médiuns, mas, habitualmente, só dois ou três escrevem em cada sessão. Temos, além disso, um médium audiente e vidente, e um magnetizador. Prometem-nos um médium desenhista, mas, como jamais o vimos, não posso apreciar a sua faculdade. Nosso grupo já se compõe de quarenta membros.
Há várias outras reuniões espíritas em São Petersburgo, mas não possuem regulamentos. Nosso grupo é o primeiro a ser regularmente organizado e esperamos que, com a ajuda de Deus, nosso exemplo seja seguido.
Estimo muito poder dizer-vos que, enfim, apareceu a primeira brochura espírita na Rússia, impressa em São Petersburgo, com autorização da censura: é minha resposta a um artigo que o arcipreste Sr. Debolsky inseriu no jornal Radougaf (Arco-íris). Até agora nossa censura só permitia a publicação de artigos contra o Espiritismo, mas nunca a favor. Pensei que a melhor refutação fosse a tradução de vossa brochura “O Espiritismo” na sua expressão mais simples, que mandei inserir naquele jornal.
Permitiríeis, senhor, que eu vos enviasse as comunicações mais importantes que pudéssemos obter, sobretudo as que viessem em apoio da verdade e da sublimidade de nossa doutrina?
Quereis aceitar etc.
General A. de B...

A postura desse grupo, o objetivo de total caridade a que se propõem, são as melhores provas de que o ali o Espiritismo é compreendido em sua verdadeira essência e encarado por seu lado mais sério e mais eminentemente prático; nada de curiosidade, nada de perguntas inúteis, mas a aplicação da doutrina no que tem de mais elevado. Uma pessoa que muitas vezes assistiu a essas reuniões nos disse que a gente fica edificado com a gravidade, o recolhimento e o sentimento de verdadeira piedade que as presidem.
A carta seguinte não nos foi escrita, mas ao presidente de um dos grupos espíritas de Tours. Transcrevemo-la literalmente, salvo a ortografia, que foi corrigida:

Caro Sr. Rebondin e irmão em Deus,
Perdoai, caro senhor, se tomo a liberdade de vos escrever. Há muito tempo eu tinha a intenção de o fazer, para vos agradecer a boa acolhida que me destes o ano passado, proporcionando-me o prazer de assistir duas vezes às vossas sessões. Provavelmente não vos lembrais de mim; mas vou dizer-vos quem sou. Vim ver-vos com meu antigo patrão, Sr. T...; eu era seu pastor há onze anos; hoje ele acaba de se casar e os parentes de sua esposa, percebendo que eu me ocupava de Espiritismo – um estudo diabólico, segundo eles – tanto fizeram que ele se viu forçado a nos despedir. Sofri muito com esta separação, caro senhor, mas quero seguir as máximas de nossa santa doutrina; meu dever é orar por todos os infelizes que ofendem o divino Mestre de todos nós.
Tenho feito todos os esforços, desde que conheci a doutrina, para fazer adeptos; se encontrei obstáculos, tive a satisfação de ter levado muitas pessoas ao conhecimento do Espiritismo, que explica todas as provações que sofremos nesta Terra de amarguras e de misérias. Oh! Como é doce ser espírita e praticar suas virtudes! Para mim é minha única felicidade. Vós, caro senhor, o mais devotado à santa causa, espero que não me recusareis um lugar em vosso coração. Sou tão feliz por vos conhecer, acolhestes-me tão bem! Já fui duas vezes a Tours, com meus dois amigos que estudam o Espiritismo, com intenção de assistir às vossas sessões, mas fiquei sabendo que vossas reuniões não se realizavam mais aos domingos. Tende a bondade de me dizer se vos reunis sempre nesse dia e permiti que me reúna a vós, com os meus amigos, a fim de participarmos em nosso bem espiritual; dar-nos-íeis a maior felicidade. Conto com a vossa amizade, esperando o dia em que serei tão feliz por estarmos reunidos para praticar o amor e a caridade.
Do vosso amigo, que vos ama e saúda fraternalmente,

Pierre Houdée, pastor

Vê-se que não é preciso um diploma para compreender a doutrina. É que, malgrado seu elevado alcance, ela é tão clara e tão lógica que chega sem custo a todas as inteligências, condição sem a qual nenhuma ideia pode popularizar-se. Toca o coração: eis o seu maior segredo, e há um coração no peito do proletário, como no do grão-senhor. O grande, como o pequeno, tem suas dores, suas amarguras, suas chagas morais, para as quais pede bálsamo e consolações, que um e outro encontram na certeza do futuro, porque são iguais na dor e perante a morte, que tanto ferem o rico quanto o pobre. Duvidamos muito que consigam dar à doutrina do demônio e das chamas eternas bastante atrativo para a suplantar.
Esse mesmo pastor fazia muitas vezes, após a sua jornada de trabalho, duas léguas para ir a Tours assistir a uma reunião espírita, e outro tanto para retornar. Quando falamos do elevado alcance da Doutrina e das consolações que proporciona, falamos uma linguagem incompreendida para os que creem que o Espiritismo está inteiramente numa mesa que gira, ou num fenômeno mais ou menos autêntico, que reúne curiosos, mas que é perfeitamente entendido por quem quer que não se tenha detido na superfície nem dê ouvidos a boatos, e cujo número é grande.




[1] Revista Espírita – Junho/1865 – Allan Kardec

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