A destruição recíproca dos seres
vivos é, dentre as leis da Natureza, uma das que, à primeira vista, menos
parecem conciliar-se com a bondade de Deus. Pergunta-se por que teria Ele criado
a necessidade de os seres vivos mutuamente se destruírem, para se alimentarem
uns à custa dos outros.
Para quem apenas vê a matéria e
restringe à vida presente a sua visão, há de isso, com efeito, parecer uma imperfeição
na obra divina; daí a conclusão que tiram os incrédulos que, não sendo Deus
perfeito, não há Deus. É que, em geral os homens apreciam a perfeição de Deus
do ponto de vista humano; medindo-lhe a sabedoria pelo juízo que dela formam,
pensam que Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam.
Não lhes permitindo a curta
visão, de que dispõem, apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real
possa decorrer de um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado
em sua verdadeira essência, e o da grande lei de unidade, que constitui a
harmonia da Criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a
sabedoria providencial e a harmonia, exatamente onde apenas vê uma anomalia e
uma contradição. Dá-se com esta verdade o mesmo que se dá com uma imensidão de
outras; o homem não é apto a sondar certas profundezas senão quando seu
Espírito chega a um suficiente grau de maturidade.
A verdadeira vida, tanto do
animal como do homem, não está no invólucro corporal, do mesmo modo que não
está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo.
Esse princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe
cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o
Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte, mais lúcido
e mais apto. Que importa, pois, que o Espírito mude mais ou menos frequentemente
de envoltório?! Não deixa por isso de ser Espírito. É precisamente como se um
homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser
homem.
Por meio do incessante
espetáculo da destruição, ensina Deus aos homens o pouco caso que devem fazer
do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual, fazendo que a
desejem como uma compensação.
Objetar-se-á: não podia Deus
chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se
entre destruírem? Bem atrevido aquele que pretendesse penetrar os desígnios de
Deus! Desde que na sua obra tudo é sabedoria, devemos supor que esta não
existirá mais num ponto do que noutros; se não o compreendemos assim, devemos
atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, devemos tentar buscar-lhe a razão,
tomando por bússola este princípio: Deus
há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a sua
justiça e a sua sabedoria.
Uma primeira utilidade, que se
apresenta de tal destruição, utilidade, sem dúvida, puramente física, é esta:
os corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas, matérias
que só elas contêm os elementos nutritivos necessários à transformação deles.
Como instrumentos de ação para o princípio inteligente, precisando os corpos
ser constantemente renovados, a Providência faz que sirvam ao seu mútuo
entretenimento. Eis por que os seres se nutrem uns dos outros. Mas, então, é o
corpo que se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere. Fica
apenas despojado do seu envoltório.
Há também considerações morais
de ordem elevada.
É necessária a luta para o
desenvolvimento do Espírito.
Na luta é que ele exercita suas
faculdades. O que ataca em busca do alimento e o que se defende para conservar
a vida usam de habilidade e inteligência, aumentando, em consequência, suas
forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi o que o
mais forte ou o mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais;
ulteriormente, o Espírito, que não morreu, tomará outra.
Nos seres inferiores da Criação,
naqueles a quem ainda falta o senso moral, em os quais a inteligência ainda não
substituiu o instinto, a luta não pode ter por móvel senão a satisfação de uma necessidade
material. Ora, uma das mais imperiosas dessas necessidades é a da alimentação.
Eles, pois, lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou defender uma
presa, visto que nenhum móvel mais elevado os poderia estimular. É nesse
primeiro período que a alma se elabora e ensaia para a vida.
Quando a alma atingiu o grau de
maturidade necessário à sua transformação, recebe de Deus novas faculdades: o livre-arbítrio
e o senso moral, numa palavra a centelha divina, que dão novo curso às suas ideias
e a dotam de novas aptidões e percepções.
Mas as novas faculdades morais
de que é dotada só se desenvolvem gradualmente, pois nada é brusco na Natureza.
No homem, há um período de
transição em que ele mal se distingue do bruto. Nas primeiras idades, domina o
instinto animal e a luta ainda tem por móvel a satisfação das necessidades materiais.
Mais tarde, contrabalançam-se o instinto animal e o sentimento moral; luta
então o homem, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à sua
ambição, ao seu orgulho, à necessidade, que experimenta, de dominar. Para isso,
ainda lhe é preciso destruir.
Todavia, à medida que o senso
moral prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de
destruir, acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa. O homem ganha
horror ao sangue.
Contudo, a luta é sempre
necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegando a esse ponto,
que parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito. Só à custa de
muita atividade adquire conhecimento, experiência e se despoja dos últimos
vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que
era, se torna puramente intelectual. O homem luta contra as dificuldades, não
mais contra os seus semelhantes.
Nota – Como se vê, esta explicação se prende à grave questão do
futuro dos animais. Nós a trataremos proximamente e a fundo, porque nos parece
suficientemente elaborada e cremos que se pode, desde já, considerá-la como
resolvida em princípio, pela concordância do ensino.
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