terça-feira, 16 de julho de 2019

Evocação de um Surdo-Mudo Encarnado[1]




O Sr. Rul, membro da Sociedade de Paris, transmite-nos o fato que se segue. Disse ele:
Em 1862 conheci um jovem surdo-mudo de doze ou treze anos. Desejoso de fazer uma observação, perguntei aos meus guias protetores se me seria possível evocá-lo. Como a resposta fosse afirmativa, fiz o rapaz vir ao meu quarto e o instalei numa poltrona, com um prato de uvas, que ele se pôs a chupar com ardor.
Por meu lado, sentei-me a uma mesa. Orei e fiz a evocação, como de costume. Ao cabo de alguns instantes minha mão tremeu e escrevi: “Eis-me aqui”.
Olhei o menino: estava imóvel, os olhos fechados, calmo, adormecido, com o prato sobre os joelhos; cessara de comer. Dirigi-lhe as seguintes perguntas:
Onde estás agora?
Em vosso quarto, em vossa poltrona.
Queres dizer por que és surdo-mudo de nascença?
É uma expiação de meus crimes passados.
Que crimes cometeste?
Fui parricida.
Podes dizer se tua mãe, a quem amas tão ternamente, não teria sido, como teu pai ou tua mãe, na existência de que falas, o objeto do crime que cometeste?
Em vão esperei a resposta; minha mão ficou imóvel.
Levantei de novo os olhos para o menino; acabava de despertar e comia as uvas com apetite. Tendo, então, pedido aos guias que me explicassem o que acabava de se passar, foi-me respondido:  Ele deu as informações que desejavas e Deus não permitiu que te desse outras.
Não sei como os partidários da comunicação exclusiva dos demônios nos explicariam o fato. Para mim, conclui que, desde que Deus por vezes nos permite evocar um Espírito encarnado, permite-nos igualmente em relação aos desencarnados, quando o fazemos com o espírito de caridade.

Observação – Por nosso lado, faremos uma outra observação a respeito. Aqui, a prova de identidade resulta do sono provocado pela evocação, e da cessação da escrita no momento de despertar. Quanto ao silêncio guardado sobre a última pergunta, prova a utilidade do véu lançado sobre o passado. Com efeito, suponhamos que a mãe atual desse menino tenha sido sua vítima em outra existência, e que este tenha querido reparar seus erros pela afeição que lhe testemunha; a mãe não seria dolorosamente afetada se soubesse que o filho foi seu assassino? Sua ternura por ele não seria alterada? Foi-lhe permitido revelar a causa de sua enfermidade como assunto de instrução, a fim de nos dar uma prova a mais de que as aflições daqui têm uma causa anterior, quando tal causa não esteja na vida atual, e que assim tudo é conforme a justiça; mas o resto era inútil e poderia ter chegado aos ouvidos da mãe. Por isto os Espíritos o despertaram, no momento em que, talvez, fosse responder. Mais tarde explicaremos a diferença que existe entre a posição desse menino e a de Valentine, do relato precedente.
Além disso, o fato prova um ponto capital: não é somente depois da morte que o Espírito recobra a lembrança de seu passado. Pode dizer-se que não a perde jamais, mesmo na encarnação, porquanto, durante o sono do corpo, quando goza de certa liberdade, o Espírito tem consciência de seus atos anteriores; sabe por que sofre, e que sofre justamente; a lembrança não se apaga senão durante a vida exterior de relação. Mas, em falta de uma lembrança precisa, que lhe poderia ser penosa e prejudicar suas relações sociais, haure novas forças nos instantes de emancipação da alma, se os soube aproveitar.
Deve-se concluir do fato que todos os surdos-mudos tenham sido parricidas? Seria uma consequência absurda, porque a justiça de Deus não está circunscrita em limites absolutos, como a justiça humana. Outros exemplos provam que esta enfermidade resulta, por vezes, do mau uso que o indivíduo tenha feito da faculdade da palavra. Pois que! Exclamarão, será justa uma mesma expiação para duas faltas tão diferentes na sua gravidade? Mas os que assim raciocinam ignoram que a mesma falta oferece infinitos graus de culpabilidade, e que Deus mede a responsabilidade pelas circunstâncias? Aliás, quem sabe se esse menino, supondo seu crime sem escusas, não sofreu duro castigo no mundo dos Espíritos, e seu arrependimento e desejo de reparar não reduziram a expiação terrena a uma simples enfermidade? Admitindo, a título de hipótese, já que o ignoramos, que sua mãe atual tenha sido sua vítima, caso não conservasse para com ela a resolução tomada de reparar sua falta pela ternura, por certo o esperaria um castigo mais terrível, seja no mundo dos Espíritos, seja em nova existência. A justiça de Deus nunca falha e, por ser às vezes tardia, nada perde por esperar; mas Deus, em sua bondade, jamais condena de maneira irremissível, e sempre deixa aberta a porta do arrependimento. Se o culpado demora a aproveitá-lo, sofrerá por mais tempo. Assim, dele sempre depende abreviar os seus sofrimentos. A duração do castigo é proporcional à duração do endurecimento. É assim que a justiça de Deus se concilia com sua bondade e seu amor por suas criaturas.




[1] Revista Espírita – Janeiro/1865 – Allan Kardec

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