terça-feira, 25 de junho de 2019

Conversas Familiares Além-Túmulo – Pierre Legay, o Grand-Pierrot[1]



 (Paris, 16 de agosto de 1864 – Médium: Sra. Delanne)

Pierre Legay era um rico cultivador um pouco interesseiro, falecido há dois anos e parente da Sra. Delanne. Era conhecido na região pela alcunha de Grand-Pierrot. A conversa seguinte mostra um dos ângulos mais interessantes do mundo invisível, o dos Espíritos que ainda se julgam vivos. Foi obtida pela Sra. Delanne, que a comunicou à Sociedade de Paris. O Espírito se exprime exatamente como o fazia em vida; a própria trivialidade da linguagem é uma prova de identidade. Tivemos de suprimir algumas expressões que lhe eram familiares, por causa de sua crueza.
Diz a Sra. Delanne:
Desde algum tempo ouvíamos batidas à nossa volta; presumindo que pudesse ser um Espírito, pedimos-lhe se desse a conhecer. Ele logo escreveu: Pierre Legay, cognominado Grand-Pierrot.
 – Eis-vos, então, em Paris, Grand-Pierrot, vós que tínheis tanta vontade de vir aqui?
 Estou aqui, meu caro amigo; vim só, já que ela veio sem mim. E, contudo, eu lhe dissera tanto que me prevenisse... Mas, enfim, aqui estou. Estava aborrecido, porque não me deram atenção.
Observação – O Espírito alude à mãe da Sra. Delanne, que desde algum tempo tinha vindo morar em Paris, na casa de sua filha. Ele a designa por um epíteto que lhe era habitual e que substituímos por ela.
 Sois vós que bateis à noite?
– Onde quereis que eu vá? Não posso deitar-me em frente à porta.
– Então vos deitais em nossa casa?
 – Mas, evidentemente. Ontem fui passear convosco (ver as iluminações). Vi tudo. Ah! Como aquilo é bonito! Ainda bem! Pode dizer-se que fizeram belas coisas. Asseguro-vos que estou muito contente; não lamento o meu dinheiro.
– Por que caminho viestes a Paris? Então pudestes abandonar as vossas paragens?
– Mas, com os diabos! Eu não posso cavar e estar aqui. Estou muito contente por ter vindo. Perguntais como vim; mas vim pela estrada de ferro.
– Com quem estáveis?
– Bem, palavra de honra! Eu não os conhecia.
– Quem vos deu o meu endereço? Dizei, também, de onde vinha a simpatia que tínheis por mim.
– Mas quando fui à casa dela (a mãe da Sra. Delanne) e não a encontrei, perguntei ao guarda onde ela estava. Ele me disse que estava aqui: então eu vim. E, depois, vede, meu amigo, gosto de vós porque sois um bom rapaz; agradastes-me, sois franco e eu gosto de todas essas crianças. Vede, quando se gosta dos parentes também se gosta das crianças.
– Dizei-me o nome da pessoa que guarda a casa de minha sogra, já que ela tem as chaves no bolso.
– Quem lá encontrei? Mas foi o pai Colbert, que me disse que ela lhe havia dito que prestasse atenção.
– Vedes aqui o meu sogro, papai Didelot?
 – Como quereis que o veja, se não está aqui? Sabeis perfeitamente que ele morreu.

(2ª conversa, 18 de agosto de 1864)
Tendo ido passar o dia em Châtillon, o Sr. e a Sra. Delanne ali fizeram a evocação de Pierre Legay.
– Então, viestes a Châtillon?
– Mas eu vou sigo por toda parte.
– Como viestes aqui?
– Sois engraçados! Vim na vossa viatura.
– Não vos vi pagar a passagem!
– Subi com Marianne e depois vossa mulher. Pensei que a tínheis pago. Estava na parte superior; nada me pediram. Não pagastes? Por que o condutor não reclamou?
– Quanto custou a passagem de trem de Ligny a Paris?
– Na estrada de ferro não é a mesma coisa. Fui a pé de Tréveray a Ligny; depois tomei o comboio e paguei ao condutor.
– Foi mesmo ao condutor que pagastes?
– A quem queríeis que eu tivesse pago? Mas, meu primo, então acreditais que eu não tenha dinheiro? Há muito tempo havia reservado dinheiro para vir. Não é por eu não ter pago a passagem que devem pensar que não tenho dinheiro. Sem isto eu não teria vindo.
– Mas não me respondestes quanto gastastes no percurso em estrada de ferro de Nançois-le-Petit até Paris.
– Mas, b... Paguei como os outros. Dei 20 francos e me devolveram 3 francos e sessenta centavos. Vede quanto é.
Observação – A soma de 16 fr. e 40 c. é, de fato, a marcada no guia de preços da estrada de ferro, o que ignorava o casal Delanne.
– Quanto tempo levastes na estrada de ferro de Nançois a Paris?
– Tanto quanto os outros. Não fizeram a locomotiva funcionar mais depressa para mim do que para os demais. Aliás, eu não podia achar o tempo longo; jamais tinha viajado de trem e pensava que Paris era muito mais longe. O que me espanta mais é essa velhaca (a sogra do Sr. D...), que aí vem tantas vezes. Por Deus! Estou contente de poder correr convosco. Apenas muitas vezes não respondeis. Compreendo: vossos negócios vos sobrecarregam muito. Ontem não ousei regressar convosco pela manhã (a casa comercial onde o Sr. D... está empregado) e fui visitar o cemitério de Montmartre, creio; não é assim que o chamais? Precisais dizer-me os nomes para que possa contá-los quando lá voltar. (Com efeito, o Sr. e a Sra. Delanne tinham ido pela manhã ao cemitério de Montmartre).
– Visto que nada vos prende à região, pensais em partir logo?
– Só depois de ter visto tudo, já que estou aqui. E, depois, palavra de honra, eles bem podem mexer um pouco os outros (seus filhos); farão como quiserem. Quando eu não estiver mais aqui, terão de passar sem mim. Que dizeis, primo?
– O que achais do vinho de Paris? E da comida?
– Não é melhor do que aquele que vos fiz beber (O Espírito faz alusão a uma circunstância em que fez o Sr. D... beber vinho engarrafado há vinte e cinco anos); contudo não é mau. Quanto à comida, tanto faz; muitas vezes como pão ao vosso lado. Não gosto de sujar um prato; não vale a pena, quando não estamos habituados. Por que fazer cerimônias?
– Então onde dormis? Não notei vosso leito.
– Chegando, Marianne foi a um quarto escuro; pensei que fosse para mim; deitei-me lá. Falei várias vezes a todos.
– Em vossa idade, não temeis ser atropelado nas ruas de Paris?
– Ah! Meu primo, o que mais me aborrece são esses tais de carros; por isso, não deixo as calçadas.
– Há quanto tempo estais em Paris?
– Sabeis perfeitamente que cheguei quinta-feira última; creio que há oito dias.
– Como não vi vossa mala, se precisardes de roupa branca não vos constrangeis.
– Tomei duas camisas; é o bastante; quando estiverem sujas, eu voltarei para casa; gostaria de não vos incomodar.
– Quereis dizer o que vos disse o pai Colbert antes de vossa partida para Paris?
– Ele está na casa de Marianne há um bom tempo. Vendendo-a, quis ainda ficar por lá. Diz que não perturba, pois a guarda.
– Dissestes ontem que não víeis meu sogro Didelot, porque ele morreu. Como, então, vedes tão bem o pai Colbert, que também está morto há pelo menos trinta anos?
– Ah! Perguntais o que ignoro; não havia refletido nisto. O que é certo é que ele lá está bem tranquilo; mais não vos posso dizer.
Observação – O pai Colbert era o antigo proprietário da casa da mãe da Sra. Delanne. Parece que desde sua morte ficou na casa, da qual se constituiu guarda, e que, também ele, se julga ainda vivo. Assim, esses dois Espíritos, Colbert e Pierre Legay, se veem e conversam como se ainda pertencessem a este mundo, não se dando conta de sua situação.

(3ª conversa, 19 de agosto de 1864)
– [Ao guia espiritual do médium]. Gostaríamos que désseis algumas instruções a respeito do Espírito Legay, e dizer-nos se já é tempo de fazer que compreenda sua verdadeira situação.
– Sim, meus filhos, desde ontem ele está perturbado, por causa de vossas perguntas; tudo para ele é confuso quando quer saber, pois ainda não reclama a proteção de seu anjo-da-guarda.
– [A Legay]. Estais aqui?
– Sim, meu primo, mas tudo isto é muito estranho. Não sei o que isto quer dizer. Não te vás sem mim, Marianne.
– Refletistes no que pedimos que ontem dissésseis a respeito do pai Colbert, que vistes vivo, quando, na verdade, ele está morto?
– Não posso saber como isto acontece. Apenas já ouvi dizer que havia aparições. Por Deus! Creio que ele é um dos tais. Digam, contudo, o que quiserem: eu o vi perfeitamente. Mas estou cansado; preciso de um pouco de tranquilidade.
– Credes em Deus e fazeis vossas preces diárias?
– Juro que sim; se isto não faz bem, não me pode fazer mal.
– Credes na imortalidade da alma?
– Oh! Isto é diferente. Não posso pronunciar-me sobre isto; duvido.
– Se eu vos desse uma prova da imortalidade da alma, acreditaríeis?
– Oh! Então os parisienses conhecem tudo? Só peço isto. Como fareis?
– [Ao guia do médium]. Podemos fazer a evocação do pai Colbert, para lhe provar que está morto?
– Não precisa ir tão depressa; trazei-o de volta suavemente. Depois este outro Espírito vos fatigará muito esta noite.
– [A Legay]. Onde estais colocado, que não vos vejo?
– Não me vedes?! Ah! Isto é demais! Então estais cego?
– Dai-vos conta da maneira por que nos falais, já que fazeis minha mulher escrever?
– Eu? Juro que não.
Várias perguntas novas foram dirigidas ao Espírito e ficaram sem resposta. Evocaram seu anjo-da-guarda, e um dos guias do médium respondeu o que se segue:
Meus amigos, sou eu que venho responder, pois o anjo-da-guarda deste pobre Espírito não está com ele; só virá quando ele próprio o chamar e rogar ao Senhor que lhe conceda a luz. Posto ainda estivesse sob o império da matéria e não quisesse escutar a voz de seu anjo-da-guarda, este se afastou dele, já que teimava em ficar estacionário. Com efeito, não era ele que te fazia escrever; falava como de hábito, persuadido de que o escutáveis; mas era seu Espírito familiar que te conduzia a mão. Para ele, conversava com teu marido; tu escrevias e tudo isto lhe parecia muito natural. Mas as vossas últimas perguntas e vossos pensamentos o levaram a Tréveray; está perturbado; orai por ele e mais tarde o chamareis; ele voltará depressa. Orai por ele; nós oraremos convosco.
Já vimos alguns exemplos de Espíritos que se julgavam ainda vivos. Pierre Legay nos mostra essa fase da vida dos Espíritos da mais característica maneira. Os que se acham neste caso parecem ser mais numerosos do que se pensa; em vez de constituírem exceção, de oferecerem uma variedade no castigo, seria quase uma regra, um estado normal para os Espíritos de certa categoria. Assim, teríamos à nossa volta não só os Espíritos que têm consciência da vida espiritual, mas uma multidão de outros que, a bem dizer, vivem uma vida semimaterial, se julgam ainda neste mundo, continuam a vagar ou pensam consagrar-se às suas ocupações terrenas. Entretanto, seria um equívoco assimilá-los em tudo aos encarnados, porque se nota em suas atitudes e em suas ideias algo de vago e de incerto, que não é peculiar à vida corporal; é um estado intermediário, que nos dá a explicação de certos efeitos nas manifestações espontâneas e de certas crenças antigas e modernas.
Um fenômeno que pode parecer mais bizarro e não deixa de fazer sorrir os incrédulos é o dos objetos materiais que o Espírito julga possuir. Compreende-se que Pierre Legay se imagine subindo no trem, porque a estrada de ferro é uma coisa real, existe; mas compreende-se menos que ele creia ter dinheiro e pago a sua passagem.
Esse fenômeno encontra sua solução nas propriedades do fluido perispiritual e na teoria das criações fluídicas, princípio importante que dá a chave de muitos mistérios do mundo invisível.
Seja pela vontade, seja pelo pensamento, o Espírito opera no fluido perispiritual, que não passa de uma concentração do fluido cósmico ou elemento universal, uma transformação parcial que produz o objeto que deseja. Tal objeto é para nós uma aparência, mas para o Espírito é uma realidade. É assim que um Espírito, desencarnado recentemente, um dia apresentou-se numa reunião espírita a um médium vidente, com um cachimbo na boca, fumando. À observação que lhe fizeram, de que aquilo não era conveniente, respondeu: Que quereis! Tenho de tal modo o hábito de fumar que não posso dispensar meu cachimbo. O que era mais singular é que o cachimbo soltava fumaça; não, naturalmente, para os assistentes, mas para o vidente.
Tudo deve estar em harmonia no mundo espiritual, como no mundo material; aos homens corporais, são precisos objetos materiais; aos Espíritos, cujo corpo é fluídico, são necessários objetos fluídicos; os objetos materiais não lhes serviriam, assim como os objetos fluídicos não serviriam aos homens corporais. Querendo fumar, o Espírito fumador criaria um cachimbo que, para ele, tinha a realidade de um cachimbo de barro. Legay queria dinheiro para pagar a passagem: seu pensamento criou a soma necessária. Para ele há realmente dinheiro, mas os homens não poderiam contentar-se com a moeda dos Espíritos. Assim se explicam as vestimentas com que se cobrem à vontade, as insígnias que usam, as diferentes aparências que podem assumir etc.
As propriedades curativas dadas ao fluído pela vontade também se explicam por esta transformação. O fluido modificado age sobre o perispírito que lhe é similar e esse perispírito, intermediário entre o princípio material e o princípio espiritual, reage sobre a economia, na qual representa importante papel, embora ainda desconhecido pela Ciência.
Há, pois, o mundo corporal visível com os objetos materiais, e o mundo fluídico, invisível para nós, com os objetos fluídicos. É de notar que os Espíritos de ordem inferior e pouco esclarecidos operam essas criações sem se darem conta da maneira por que neles se produz tais efeitos; eles não o podem explicar, como um ignorante da Terra é incapaz de explicar o mecanismo da visão, nem um camponês dizer como cresce o trigo.
As formações fluídicas ligam-se a um princípio geral, que será ulteriormente objeto de um desenvolvimento completo, quando tiver sido suficientemente elaborado.
O estado dos Espíritos na situação de Pierre Legay levanta várias questões. A que categoria pertencem precisamente os Espíritos que ainda se julgam vivos? A que se deve esta particularidade? A uma falta de desenvolvimento intelectual e moral? Muitos que são inferiores dão-se conta perfeitamente de seu estado e a maior parte dos que temos visto nesta situação não é dos mais atrasados. É uma punição? Talvez o seja para alguns, como para Simon Louvet, do Havre, o suicida da torre de Francisco I que, durante cinco anos, estava na apreensão da queda [vide: François-Simon Louvet, do Havre, publicado neste blog em 15.06.2019]; mas muitos outros não são infelizes e não sofrem.




[1] Revista Espírita – Novembro/1864 – Allan Kardec

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