sábado, 18 de maio de 2019

ESPÍRITOS INCRÉDULOS E MATERIALISTAS[1]



(Sociedade Espírita de Paris, 27 de março de 1863)

Pergunta – Na evocação do Sr. Viennois, feita na última sessão, encontra-se esta frase: “Vossa prece comoveu muitos Espíritos levianos e incrédulos.” Como podem os Espíritos ser incrédulos? O meio em que se acham não é, para eles, a negação da incredulidade?
Pedimos aos Espíritos que quiserem comunicar-se, que tratem dessa questão, caso julguem conveniente.
Resposta – (Médium: Sr. d’Ambel). A explicação que me pedis não está escrita minuciosamente em vossas obras? Perguntais por que os Espíritos incrédulos ficaram comovidos. Mas vós mesmos não tendes dito que os Espíritos que se acham na erraticidade aí haviam entrado com suas aptidões, conhecimentos e maneira de ver passados? Meu Deus! Sou ainda muito incipiente para resolver a contento as questões espinhosas da doutrina. Não obstante posso, por experiência, a bem dizer recentemente adquirida, responder às questões de fatos. No mundo em que habitais, acreditava-se geralmente que a morte vem de repente modificar a opinião dos que se foram e que a venda da incredulidade é violentamente arrancada aos que na Terra negavam Deus. Aí está o erro, porque, para estes, a punição começa justamente em permanecerem na mesma incerteza relativamente ao Senhor de todas as coisas e a conservarem a mesma dúvida da Terra. Não, crede-me; a vista obscurecida da inteligência humana não percebe instantaneamente a luz. Procede-se na erraticidade ao menos com tanta prudência quanto na Terra; assim, não se deve projetar os raios de luz elétrica sobre os olhos dos doentes que se queira curar.
A passagem da vida terrestre à espiritual oferece, é certo, um período de confusão, de perturbação para a maioria dos que desencarnam. Alguns há, no entanto, que, desprendidos dos bens terrenos ainda em vida, realizam essa transição tão facilmente quanto uma pomba que se eleva no ar. É fácil perceberdes essa diferença examinando os hábitos dos viajantes que embarcam para atravessar os oceanos. Para alguns a viagem é um prazer; para a maioria um sofrimento, uma aflição que durará até o desembarque.
Pois bem! Ocorre o mesmo com quem viaja da Terra ao mundo dos Espíritos. Alguns se desprendem rapidamente, sem sofrimento e sem perturbação, ao passo que outros são submetidos ao mal da travessia etérea. Mas acontece isto: assim como os viajantes que tocam a terra, ao sair do navio, recuperam o equilíbrio e a saúde, também o Espírito que transpõe os obstáculos da morte acaba por se achar, como no ponto de partida, com a consciência limpa e clara de sua individualidade.
É, pois, certo, meu caro Sr. Kardec, que os incrédulos e os materialistas absolutos conservam sua opinião além do túmulo, até a hora em que a razão ou a graça tiver despertado em seu coração o pensamento verdadeiro, ali escondido. Por isso essa difusão de ideias nas manifestações e essa divergência nas comunicações dos Espíritos de além-túmulo; por isso alguns ditados impregnados de ateísmo ou de panteísmo.
Permiti-me, ao terminar, voltar às questões que me são pessoais. Agradeço-vos porque me evocastes; isto ajudou a me reconhecer. Agradeço também as consolações que dirigistes à minha mulher e vos peço continueis vossas boas exortações, a fim de sustentá-la nas provas que a esperam. Quanto a mim, estarei sempre junto a ela e a inspirarei.
Viennois

Pergunta – Compreende-se a incredulidade em certos Espíritos, mas não se compreenderia o materialismo, pois seu estado é um protesto contra o reino absoluto da matéria e o nada depois da morte.
Resposta – (Médium: Sr. d’Ambel). Apenas uma palavra: todos os corpos sólidos ou fluídicos pertencem à substância material; isto está bem demonstrado. Ora, os que em vida só admitiam um princípio na Natureza – a matéria – muitas vezes não percebem ainda, depois da morte, senão esse princípio único, absoluto. Se refletísseis nos pensamentos que os dominaram toda a vida, achá-los-íeis certos, ainda hoje, sob a inteira subjugação desses mesmos pensamentos. Outrora se consideravam como corpos sólidos; hoje se olham como corpos fluídicos: eis tudo.
Notai bem que eles se apercebem sob uma forma claramente circunscrita, conquanto vaporosa, idêntica à que tinham na Terra, em estado sólido ou humano, de tal sorte que não veem em seu novo estado senão uma transformação de seu ser, no qual não haviam pensado. Mas ficam convencidos de que é um encaminhamento para o fim a que chegarão, quando estiverem suficientemente desprendidos, para se diluírem no todo universal.
Nada mais obstinado do que um sábio; e eles persistem em pensar que, nem por ser demorado, esse fim é menos inevitável.
Uma das condições de sua cegueira moral é de aprisionar mais violentamente nos laços da materialidade e, conseguintemente, de impedi-los que se afastem das regiões terrestres ou similares à Terra. E, assim como a maioria dos desencarnados, cativos na carne, não pode perceber as formas vaporosas dos Espíritos que os cercam, também a opacidade do envoltório dos materialistas lhes impede a contemplação das entidades espirituais que se movem, tão belas e tão radiosas, nas altas esferas do império celeste.
Erasto

Outra – (Médium: Sr. A. Didier). A dúvida é a causa das penas e, muitas vezes, dos erros deste mundo. Ao contrário, o conhecimento do Espiritualismo causa as penas e os erros dos Espíritos.
Onde estaria o castigo se os Espíritos não reconhecessem seus erros senão como consequência da realidade penitenciária da outra vida? Onde estaria o seu castigo se sua alma e seu coração não sentissem todo o erro do cepticismo terreno e o nada da matéria? O Espírito vê o Espírito como a carne vê a carne; o erro do Espírito não é o erro da carne e o homem materialista que aqui duvidou não mais duvida lá em cima.
O suplício dos materialistas é lamentar as alegrias e satisfações terrestres, eles que ainda não podem compreender nem sentir as alegrias e as perfeições da alma. E vede o rebaixamento moral desses Espíritos que vivem completamente na esterilidade moral e física, lamentando esses bens que, momentaneamente, constituíram a sua alegria e atualmente constituem o seu suplício.
Agora, é verdade que sem ser materialista pela satisfação de suas paixões terrenas, pode-se sê-lo mais no campo das ideias e do espírito que nos atos da vida. É o que se chama de livres-pensadores e os que não ousam aprofundar as causas de sua existência. No outro mundo estes também serão punidos; nadam na verdade, mas não são por ela penetrados; seu orgulho abatido os faz sofrer e lamentam aqueles dias terrenos em que, ao menos, tinham liberdade de duvidar.
Lamennais

Observação – À primeira vista esta apreciação parece em contradição com a de Erasto. Este admite que certos Espíritos podem conservar as ideias materialistas, enquanto Lamennais pensa que essas ideias são apenas o pesar dos prazeres materiais, mas que tais Espíritos estão perfeitamente esclarecidos quanto ao seu estado espiritual. Os fatos parecem vir em apoio da opinião de Erasto. Desde que vemos Espíritos que, mesmo muito tempo depois da morte, ainda se julgam vivos, dedicam-se ou creem dedicar-se às ocupações terrenas, é que têm completa ilusão quanto à sua posição e não se dão conta absolutamente de seu estado espiritual.
Já que não se julgam mortos, não seria de admirar que tivessem conservado a ideia do nada após a morte, que para eles ainda não veio. Foi sem dúvida neste sentido que quis falar Erasto.
Resposta – Evidentemente eles têm a ideia do nada; mas é uma questão de tempo. Chega o momento em que no alto se rompe o véu e as ideias materialistas se tornam inaceitáveis. A resposta de Erasto assenta sobre fatos particulares e momentâneos; eu não falava senão de fatos gerais e definitivos.
Lamennais

Observação – A divergência era apenas aparente e só resultava do ponto de vista sob o qual cada um encarava a questão.
É bastante evidente que um Espírito não pode ficar perpetuamente materialista. Perguntava-se tão-somente se essa ideia seria necessariamente destruída logo após a morte. Ora, ambos os Espíritos estão de acordo quanto a este ponto e se pronunciam pela negativa. Acrescentemos que a persistência da dúvida sobre o futuro é um castigo para o Espírito incrédulo; é para ele uma tortura tanto mais pungente porque não tem as preocupações terrenas para distraí-lo.




[1] Revista Espírita – Maio/1863 – Allan Kardec

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