Por vezes pergunta-se se Deus
não teria podido criar os Espíritos perfeitos, para lhes poupar o mal e todas
as suas consequências.
Sem dúvida Deus o teria podido,
já que é Todo-Poderoso; e se não o fez é que, em sua soberana sabedoria, julgou
mais útil fosse de outro modo. Não compete ao homem perscrutar seus desígnios
e, ainda menos, julgar e condenar suas obras. Desde que não pode admitir Deus
sem o infinito das perfeições, sem a soberana bondade e a soberana justiça;
desde que tem sob os olhos, incessantemente, milhares de provas de sua
solicitude pelas criaturas, deve pensar que tal solicitude não poderia ter
falhado na criação dos Espíritos. Na Terra o homem é como a criança, cuja visão
limitada não vai além do estreito círculo do presente, e não pode julgar da
utilidade de certas coisas. Deve, pois, inclinar-se ante o que ainda está acima
de seu alcance. Todavia, tendo-lhe Deus dado a inteligência para se guiar, não
lhe é vedado procurar compreender, detendo-se humildemente no limite que não
pode transpor.
Sobre todas as coisas mantidas
no segredo de Deus, o homem não pode estabelecer senão sistemas mais ou menos prováveis.
Para julgar qual desses sistemas mais se aproxima da verdade, há um critério
seguro: os atributos essenciais da Divindade. Toda teoria, toda doutrina
filosófica ou religiosa que tendesse a destruir a mínima parte de um só desses
atributos pecaria pela base e estaria, por isto mesmo, eivada de erro. De onde se
segue que o sistema mais verdadeiro será aquele que melhor conciliar-se com
esses atributos.
Sendo Deus todo sabedoria e todo
bondade, não poderia ter criado o mal para contrabalançar o bem; se do mal tivesse
feito uma lei necessária, teria voluntariamente enfraquecido o poder do bem,
porquanto aquilo que é mau não pode senão alterar e enfraquecer o que é bom.
Ele estabeleceu leis que são inteiramente justas e boas; o homem seria
perfeitamente feliz se as observasse escrupulosamente; mas a menor infração a
essas leis causa uma perturbação cujo contragolpe experimenta; daí todas as suas
vicissitudes. É, pois, ele próprio, a causa do mal por sua desobediência às
leis de Deus. Deus o criou livre de escolher seu caminho; o que tomou o mau
caminho o fez por vontade própria e não pode acusar senão a si mesmo pelas consequências
para si decorrentes. Pela destinação da Terra, só vemos Espíritos desta categoria,
e é o que fez crer na necessidade do mal. Se pudéssemos abarcar o conjunto dos
mundos, veríamos que os Espíritos que permaneceram no bom caminho percorrem as
diversas fases de sua existência em condições completamente diferentes e que,
desde que o mal não é geral, não poderia ser indispensável. Mas resta sempre a
questão de saber por que Deus não criou os Espíritos perfeitos. Esta questão é
análoga a esta outra: Por que a criança não nasce totalmente desenvolvida, com
todas as aptidões, toda a experiência e todos os conhecimentos da idade viril?
Há uma lei geral que rege todos
os seres da Criação, animados e inanimados: a lei do progresso. Os Espíritos
são a ela submetidos pela força das coisas, sem o que a exceção teria perturbado
a harmonia geral e Deus quis dar-nos um exemplo sintetizado na progressão da
infância. Desde que o mal não existe como necessidade na ordem das coisas, pois
não é devido senão a Espíritos prevaricadores, a lei do progresso de modo algum
os obriga a passar por esta fieira para chegar ao bem; ela só os obriga a
passar pelo estado de inferioridade intelectual ou, por outras palavras, pela
infância espiritual. Criados simples e ignorantes e, por isto mesmo
imperfeitos, ou melhor, incompletos,
devem adquirir por si mesmos e por sua própria atividade a ciência e a experiência
que de início não podem ter. Se Deus os tivesse criado perfeitos, deveria tê-los
dotado, desde o instante de sua criação, com a universalidade dos
conhecimentos; tê-los-ia isentado de todo trabalho intelectual; mas, ao mesmo
tempo, lhes teria tirado a atividade que devem desenvolver para adquirir, e
pela qual concorrem, como encarnados e desencarnados, ao aperfeiçoamento
material dos mundos, trabalho que não incumbe mais aos Espíritos superiores, encarregados
somente de dirigir o aperfeiçoamento moral. Por sua própria inferioridade,
tornam-se uma engrenagem essencial à obra geral da Criação. Por outro lado, se
os tivesse criado infalíveis, isto é, isentos da possibilidade de fazer o mal,
eles fatalmente teriam sido impelidos ao bem, como mecânicos bem preparados que
fizessem automaticamente obras de precisão. Mas, então, não mais livre-arbítrio
e, por conseguinte, não mais independência; assemelhar-se-iam a esses homens
que nascem com a fortuna feita e se julgam dispensados de nada fazer. Submetendo-os
à lei do progresso facultativo, quis Deus que tivessem o mérito de suas obras,
a fim de terem direito à recompensa e desfrutarem a satisfação de haver
conquistado suas próprias posições.
Sem a lei universal do
progresso, aplicada a todos os seres, outra teria sido a ordem de coisas a
estabelecer. Sem dúvida, Deus tinha a possibilidade. Por que não o fez? Teria
feito melhor se tivesse agido de outro modo? Nesta hipótese, ter-se-ia
enganado!
Ora, se Deus pôde enganar-se, é
que não é perfeito; se não é perfeito, não é Deus. Desde que não se o pode
conceber sem a perfeição infinita, deve-se concluir que o que fez é o melhor;
se ainda não estamos aptos a compreender os seus motivos, por certo o poderemos
mais tarde, num estado mais adiantado. Enquanto isto, se não podemos sondar as
causas, podemos observar os efeitos e reconhecer que tudo no Universo é regido
por leis harmônicas, cuja sabedoria e admirável previdência confundem o nosso
entendimento. Muito presunçoso, pois, seria aquele que pretendesse que Deus
deveria ter regulado o mundo de outra maneira, pois isto significaria que, em
seu lugar, teria feito melhor.
Tais são os Espíritos, cujo
orgulho e ingratidão Deus castiga, relegando-os a mundos inferiores, de onde só
sairão quando, baixando a cabeça sob a mão que os fere, reconhecerem o seu poder.
Deus não lhes impõe esse reconhecimento; quer que seja voluntário e fruto de
suas observações, razão por que os deixa livres e espera que, vencidos pelo
próprio mal que a si atraem, se voltem para Ele.
A isto respondem: “Compreende-se
que Deus não tenha criado os Espíritos perfeitos; mas, se julgou conveniente submetê-los
todos à lei do progresso, não teria podido, pelo menos, criá-los felizes, sem
os sujeitar a todas as misérias da vida? A rigor, compreende-se o sofrimento
para o homem, em vista de suas faltas; mas os animais também sofrem;
entredevoram-se; os grandes comem os pequenos. Há alguns cuja vida não passa de
longo martírio; como nós, têm o livre-arbítrio ou agiram de modo a receber o
castigo divino?”
Tal, ainda, a objeção que por
vezes fazem e à qual os argumentos acima podem servir de resposta. A despeito
disto, juntaremos algumas considerações.
Sobre o primeiro ponto diremos
que a felicidade completa é o resultado da perfeição. Já que as vicissitudes
originam-se da imperfeição, criar Espíritos perfeitamente felizes fora criá-los
perfeitos.
A questão dos animais exige
alguns desenvolvimentos.
É incontestável que eles têm um
princípio inteligente. De que natureza é este princípio? Que relações tem com o
do homem? É estacionário em cada espécie, ou progressivo ao passar de uma espécie
a outra? Qual o seu limite de progresso? Marcha paralelamente com o homem, ou é
o mesmo princípio que se elabora e ensaia a vida nas espécies inferiores para,
mais tarde, receber novas faculdades e sofrer a transformação humana? São outras
tantas questões até hoje insolúveis; e se o véu que cobre esse mistério ainda
não foi levantado pelos Espíritos, é porque seria prematuro: o homem ainda não
está maduro para receber toda a luz. É certo que vários Espíritos deram teorias
a respeito, mas nenhuma tem um caráter bastante autêntico para ser aceita como verdade
definitiva; assim, até nova ordem, não se pode considera-las senão como
sistemas individuais. Só a concordância pode dar-lhes a consagração, pois aí
está o único e verdadeiro controle do ensino dos Espíritos. Eis por que estamos
longe de aceitar como verdades irrecusáveis tudo quanto ensinam individualmente;
um princípio, seja qual for, para nós só adquire autenticidade pela universalidade
do ensinamento, isto é, por instruções idênticas, dadas em todos os lugares,
por médiuns estranhos entre si e que não sofram as mesmas influências,
notoriamente isentos de obsessões e assistidos por Espíritos bons e
esclarecidos. Por Espíritos esclarecidos deve entender-se os que provam sua superioridade
pela elevação do pensamento e pelo alto alcance de seus ensinos, jamais
entrando em contradição e não dizendo nada que a lógica mais rigorosa não possa
admitir. É assim que foram controladas as diversas partes da doutrina formulada
em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns. Tal não é ainda o
caso da questão dos animais, razão por que não tomamos uma decisão. Até constatação
mais séria, não se devem aceitar teorias que possam ser dadas a respeito, senão
com muita reserva, e esperar sua confirmação ou sua negação.
Em geral, nunca haveria excesso
de prudência em relação a teorias novas, sobre as quais poderíamos ter ilusões.
Assim, quantas vimos, desde a
origem do Espiritismo que, entregues prematuramente à publicidade, só tiveram
uma existência efêmera! Assim será com todas as que apenas tiverem caráter individual
e não houverem passado pelo controle da concordância.
Em nossa posição, recebendo
comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados em diversos
pontos do globo, estamos em condições de ver os princípios sobre os quais houve
concordância. Foi esta observação que nos guiou até hoje e nos guiará
igualmente nos novos campos que o Espiritismo é chamado a explorar. É assim
que, desde algum tempo, notamos nas comunicações, vindas de vários lados, tanto
da França quanto do estrangeiro, uma tendência para entrarem numa via nova, por
meio de revelações de uma natureza toda especial. Essas revelações, dadas
muitas vezes em palavras veladas, passaram despercebidas por muitos dos que as
obtiveram; muitos outros se acreditaram os únicos a recebê-las; tomadas
isoladamente, para nós não teriam valor, mas a sua coincidência lhes dá alto
prestígio, devendo ser julgadas mais tarde, quando chegar o momento de serem
entregues à luz da publicidade.
Sem essa concordância, quem
poderia estar seguro de ter a verdade? A razão, a lógica, o raciocínio, sem
dúvida são os primeiros meios de controle que devem ser usados; em muitos casos
isto basta. Mas quando se trata de um princípio importante, da emissão de uma ideia
nova, haveria presunção em crer-se infalível na apreciação das coisas. É,
aliás, um dos caracteres distintivos da revelação nova o ser feita em toda
parte e ao mesmo tempo; assim ocorreu com as diversas partes da doutrina. Aí
está a experiência para provar que todas as teorias audaciosas, dadas por Espíritos
sistemáticos e pseudossábios, sempre foram isoladas e localizadas; nenhuma se
tornou geral nem pôde suportar o controle da concordância; várias, até, caíram
no ridículo, prova evidente de que não estavam com a verdade. O controle universal
é uma garantia para a futura unidade da doutrina.
Esta digressão afastou-nos um
pouco do assunto, mas era útil para dar a conhecer de que maneira procedemos,
no que respeita a teorias novas concernentes ao Espiritismo, que está longe de
haver dado a última palavra sobre todas as coisas. Não as emitimos senão depois
de terem recebido a sanção de que acabamos de falar, razão por que algumas
pessoas, um tanto impacientes, surpreendem-se com o nosso silêncio em certos
casos.
Como sabemos que cada coisa virá
a seu tempo, não cedemos a nenhuma pressão, venha de onde vier, pois conhecemos
a sorte dos que querem ir muito depressa e têm em si mesmos e em suas próprias
luzes uma excessiva confiança; não queremos colher um fruto antes que
amadureça, mas – tenham certeza – quando estiver maduro, não o deixaremos cair.
Estabelecido este ponto, pouco
nos resta dizer sobre a questão proposta, pois o ponto capital ainda não pôde
ser resolvido.
Está provado que os animais
sofrem. Mas é racional imputar esses sofrimentos à imprevidência do Criador ou
a uma falta de bondade de sua parte porque a causa escapa à nossa inteligência,
como a utilidade dos deveres e da disciplina escapa ao escolar? Ao lado desse
mal aparente não se vê brilhar a sua solicitude pelas mais ínfimas criaturas?
Não são os animais providos de meios de conservação apropriados ao ambiente em que
devem viver? Não se vê sua pelagem desenvolver-se mais ou menos, conforme o
clima? Seus órgãos de nutrição, suas armas ofensivas e defensivas
proporcionadas aos obstáculos a vencer e aos inimigos a combater? Em presença
de fatos tão multiplicados, cujas consequências só escapam ao olho do
materialista, há fundamento em dizer que não existe Providência para eles? Não,
certamente, embora nossa visão seja muito limitada para julgar a lei do
conjunto. Nosso ponto de vista, restrito ao pequeno círculo que nos rodeia, só
nos deixa ver irregularidades aparentes; mas, quando nos elevarmos, pelo
pensamento, acima do horizonte terreno, tais irregularidades se apagarão diante
da harmonia geral.
O que mais choca nesta
observação localizada é a destruição de uns seres pelos outros. Já que Deus
prova a sua sabedoria e a sua bondade em tudo o que podemos compreender, forçoso
é admitir que a mesma sabedoria presida ao que não compreendemos. Aliás, só
exageramos a importância dessa destruição porque sempre a ligamos à matéria, consequência
do estreito ponto de vista em que se coloca o homem. Em definitivo, só se
destrói o envoltório; o princípio inteligente não é aniquilado; e o Espírito é
tão indiferente à perda de seu corpo, quanto o homem à de sua roupa. Esta
destruição dos invólucros temporários é necessária à formação e manutenção de
novos envoltórios, que se constituem com os mesmos elementos, sem que o
princípio inteligente seja atingido, quer nos animais, quer no homem.
Resta o sofrimento, que por
vezes leva à destruição desse envoltório. O Espiritismo nos ensina e prova que
o sofrimento no homem é útil ao seu avanço moral. Quem nos diz que o dos
animais também não tenha utilidade? Que não seja, na sua esfera e conforme
certa ordem de coisas, uma causa de progresso?
É verdade que isto não passa de
hipótese, mas ao menos se apoia nos atributos de Deus: a justiça e a bondade,
enquanto as outras são a sua negação.
Tendo a questão da criação dos
seres perfeitos sido debatida em sessão da Sociedade Espírita de Paris, o
Espírito Erasto ditou, a respeito, a seguinte comunicação:
SOBRE
A NÃO-PERFEIÇÃO DOS SERES CRIADOS
(Sociedade
Espírita de Paris, 5 de fevereiro de 1864 – Médium: Sr. d’Ambel)
Por que Deus não criou perfeitos todos os seres? Em virtude mesmo da
lei do progresso. É fácil compreender a economia desta lei. Aquele que marcha
está no movimento, isto é, na lei da atividade humana; aquele que não progride,
que por essência se acha estacionário, incontestavelmente não pertence à
gradação ou à hierarquia humanitária. Explico-me, e me compreendereis
facilmente. O homem que nasce numa posição mais ou menos elevada, acha em sua
situação nativa um dado estado de ser. Pois bem! Ele está certo de que se sua
vida inteira se passasse nessa condição de ser, sem que lhe tivesse trazido modificações
por sua ação ou pela de outrem, declararia que sua existência é monótona,
enfadonha, fatigante, numa palavra, insuportável. Acrescento que ele teria
perfeita razão, considerando-se que o bem só é bem relativamente ao que lhe é
inferior. Isto é tão certo que se puserdes o homem num paraíso terrestre, num paraíso
onde não se progrida mais, em dado tempo ele achará sua existência
insustentável e aquela morada um impiedoso inferno.
Daí resulta, de maneira absoluta, que a lei imutável dos mundos é o
progresso ou o movimento para frente, isto é, todo Espírito que é criado está
inevitavelmente submetido a essa grande e sublime lei da vida; consequentemente,
tal é a própria lei humana.
Só existe um ser perfeito e não pode existir senão um:
Deus! Ora, pedir ao Ser Supremo a criação de Espíritos perfeitos, seria
pedir-lhe que criasse algo semelhante e igual a Ele. Formular semelhante
proposição não será condená-la previamente? Ó homens! Por que perguntar sempre
a razão de ser de certas questões insolúveis ou acima do entendimento humano?
Lembrai-vos sempre de que só Deus pode ficar e viver na sua imobilidade gigantesca.
Ele é o suprassumo de todas as coisas, o alfa e o ômega de toda a vida. Ah! Crede,
meus filhos, jamais busqueis erguer o véu que cobre esse grandioso mistério,
que os maiores Espíritos da Criação não abordam sem estremecer. Quanto a mim,
humilde pioneiro da iniciação, tudo quanto vos posso afirmar é que a imobilidade
é um dos atributos de Deus, ou do Criador, e que o homem e tudo que é criado
têm, como atributo, a mobilidade.
Compreendei, se puderdes compreender, ou então esperai que chegue a
hora de uma explicação mais inteligível, isto é, mais ao alcance do vosso
entendimento.
Não trato senão desta parte da questão, pois apenas quis provar que não
tinha ficado estranho à vossa discussão. Sobre todo o resto, reporto-me ao que
foi dito, já que todos me pareceram da mesma opinião. Daqui a pouco falarei de
outros casos que foram assinalados (os casos de Poitiers).
Erasto
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