Catherine[2],
que vive no Reino Unido, ficou grávida depois de ser estuprada por um homem que
ela considerava seu amigo. Neste texto, ela explica porque decidiu ter o bebê ‒
e conta como é difícil olhar nos olhos do filho.
Eu era uma mãe solteira com dois
filhos. Eu o conhecia (o estuprador). Éramos amigos há cerca de dois anos ‒ nos
conhecemos por meio de um amigo em comum e começamos uma amizade. Só uma
amizade normal, nada além disso.
Eu fui bastante clara com ele a
respeito do fato de que eu não estava buscando um novo relacionamento ‒ queria
ficar sozinha ‒ e estava satisfeita em sermos apenas amigos.
Eu estava na casa dele, e foi
como se uma ficha caísse. Eu senti ele se aproximar demais, de um jeito
desconfortável. Afastei-me e tentei empurrar ele para longe. Foi tudo muito
rápido.
Senti-me dominar completamente,
e simplesmente congelei. Num dado momento, parei de lutar. Travei, em vez de
lutar contra ele.
Ele não disse nada. Ele
literalmente se levantou, entrou no carro e saiu, sem dizer nada.
Eu fui andando para casa. Estava
ferida ‒ e só percebi o quanto tinha me machucado depois, pois na hora que
ocorre é como se você estivesse no piloto automático. Queria ir para o meu
próprio espaço.
Acho que, se você estiver em
condições físicas de andar, você vai. Você vai querer estar em um lugar onde se
sinta em casa.
Casas
Na época, eu costumava deixar
meus filhos com um amigo que morava perto de mim. Quando cheguei, minha casa
estava vazia e os meus filhos estavam dormindo no vizinho. O que foi... Um
alívio. Não disse nada a ninguém. Senti que seria julgada e que as pessoas
iriam me culpar por ter me colocado naquela situação, e que era tudo culpa
minha.
Eu senti que, como eu o
conhecia, aquilo não podia realmente ser considerado um estupro, como seria se
eu tivesse sido atacada no meio da rua por alguém. Não contei nada à polícia
por causa disso.
No dia seguinte, quis perguntar
a ele o porquê daquilo, o que provavelmente soa bizarro. Ele disse que tinha
tido um "apagão". Não negou o que aconteceu, mas disse que não se
lembrava por ter apagado. Mas nunca disse que não era verdade.
E eu nem reagi. Sempre fui muito
focada nos meus filhos, e acho que acabei voltando minha atenção para eles.
Quando Catherine
descobriu que estava grávida, contou ao estuprador
Eu disse que estava grávida e
disse que o filho era dele. Esperava que ele dissesse: "não é, não".
Não esperava que ele reconhecesse o filho. Ele nunca reconheceu as circunstâncias
da concepção (o estupro), mas também nunca negou que o filho fosse dele.
Eu nunca considerei a
possibilidade de abortar. Eu sabia que era uma opção. Nunca fui anti-aborto ou
"pró-vida". Acho que é uma escolha de cada uma. Mas, pessoalmente,
achei que o ato de tirar o bebê fosse na realidade piorar as coisas. Senti que
seria mais difícil viver com o aborto do que com as dificuldades provocadas por
mais um filho que eu não estava esperando, mesmo que eu já tivesse outras duas
crianças para cuidar.
É bastante egoísta, na
realidade. Não estava pensando na vida do bebê. Não foi uma consideração moral
de não matar a criança. Levei em conta o que faria mais mal para mim. Seria
mais difícil continuar vivendo com o estupro e com o aborto em seguida do que
com um estupro e um bebê.
Eu não tenho família vivendo
perto de mim. No parquinho, onde levo as crianças para brincar, as pessoas me
julgavam quando perceberam que eu estava grávida de novo, mesmo sendo solteira,
sem dar qualquer explicação de como tinha ficado grávida.
Roupas de criança no
varal
Dava para perceber as pessoas me
encarando e falando pelas minhas costas. Meu vizinho tinha filhos da mesma
idade que eu, e ouvia as conversas na escola deles. Foi muito difícil não
contar para as pessoas que eu tinha sido estuprada.
Ao mesmo tempo, a outra opção
era um encontro casual, algo com o qual eu também não queria ser associada ‒
mas era o mal menor. Pode-se dizer que era a opção mais fácil: deixar as
pessoas acreditar no que elas quisessem.
Também não queria que os meus
filhos fossem pré-julgados, que tivessem essa marca associada a eles. Se as
pessoas soubessem (do estupro), isto poderia afetar a forma como elas
interagiam com os meus filhos.
O que me permitiu lidar com isto
foi o fato de que eu sempre protegi meu filho. Se não fosse por isto, seria
impossível de lidar. Ele foi a única coisa positiva que resultou do que
ocorreu.
Quando eu o peguei no colo pela
primeira vez, a coisa mais chocante pra mim é que ele tinha os olhos do pai.
Foi um choque. E ainda é a coisa mais difícil de lidar até hoje.
Conforme ele crescia, os olhos
ficavam ainda mais parecidos (com os do pai). E uma das coisas que eu mais me
lembro do estupro ‒ não acho que seja incomum ‒ eram os olhos. Ambos (pai e
filho) tem um olhar muito forte. É uma característica bem marcante.
Posso jurar que não teve nenhum
impacto na minha ligação com o meu filho a forma como ele foi concebido.
Certamente não de forma consciente. A única coisa que eu tenho que repetir para
mim mesma é que o meu filho não tem nada a ver com o estupro, quando eu olho
nos olhos dele ou noto algum maneirismo típico do pai. E isso funciona como um
gatilho, às vezes. A reação é física.
Eu amo meu filho, desde o
momento em que ele nasceu.
Olhos por toda parte
Ele não costuma perguntar sobre
o pai. O assunto já apareceu quando a escola resolveu fazer uma atividade sobre
as famílias dos alunos. Pediram a ele que trouxesse fotografias do pai - e é
claro que eu não posso fazer isso. Nesse tipo de ocasião eu tive que explicar a
ele o que aconteceu.
Só comecei a contar para as
pessoas o que aconteceu nos últimos anos. Fiquei sem falar sobre isto durante
muitos anos. Só falo para pessoas que eu já conheço, que já têm uma relação com
o meu filho, e que não vão ser influenciadas por isso.
Catherine diz que
nunca se arrependeu de ter tido o filho
Seria desafiador de qualquer
forma. Coloque o filho para adoção, e vai ficar pensando nisso pelo resto da
vida. Sua vida também será impactada se você decidir interromper a gravidez. Se
decidir ter a criança, também haverá impacto. Sempre será um dano, um dano
imenso. E como reduzir isso?
Depende de você e do seu filho.
Seria muito ruim se eu tivesse tido a criança e não tivesse tido condições de
lidar com ela e com esse passado. Se eu não tivesse tido condições de dar o
amor, a proteção e o sustento que ele precisa. Seria um segundo erro.
Às vezes é muito solitário, é
muito difícil. Mas a coisa mais importante, da minha perspectiva, é que eu
consegui transformar algo negativo (o estupro) em algo positivo, que é o meu
filho.
Qualquer uma das três opções
seria muito difícil. Mas pelo menos eu consegui algo incrível para mim.
Funcionou para mim. Para mim. Não quer dizer que vá funcionar para todo mundo.
[2] O nome foi mudado para proteger a identidade da
entrevistada. Catherine não é brasileira e o crime não ocorreu no Brasil. Aqui,
a legislação e a jurisprudência garantem o direito ao aborto em casos de
estupro, riscos de morte para a mulher ou anencefalia do feto.
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