terça-feira, 20 de novembro de 2018

São Paulo, Precursor do Espiritismo[1]




A comunicação seguinte foi obtida em sessão da Sociedade de Paris, ocorrida em 9 de outubro de 1863:
Quantos dias se passaram, meus filhos, desde que tive a felicidade de entreter-me convosco! Assim, é com grata satisfação que me encontro no seio da minha cara Sociedade de Paris.
Com que vos entreterei hoje? A maior parte das questões morais foi tratada por penas hábeis; todavia, elas são de tal modo do meu domínio e o seu campo é tão vasto que ainda encontrarei alguns fragmentos de verdade para respigar. Quanto ao mais, mesmo que eu apenas repetisse o que outros já disseram, talvez apareçam alguns novos ensinamentos, porque as boas palavras, como as boas sementes, produzem sempre bons frutos.
Para nós, os livros santos são celeiros inesgotáveis, e o grande apóstolo Paulo, que por sua prédica poderosa tanto contribuiu para o estabelecimento do Cristianismo no passado, vos deixou monumentos escritos que servirão, não menos energicamente, à expansão do Espiritismo. Não ignoro que os vossos adversários religiosos invocam seu testemunho contra vós; mas, ficai certos, isto não impede que o ilustre iluminado de Damasco seja por vós e convosco. O sopro que corre em suas epístolas, a santa inspiração que anima os seus ensinos, longe de ser hostil à vossa doutrina, está, ao contrário, cheia de singulares previsões em vista do que acontece hoje. É assim que, na sua primeira epístola aos coríntios, ele ensina que, sem a caridade, não existe nenhum homem, ainda que fosse santo, profeta e transportasse montanhas, que se possa gabar de ser um verdadeiro discípulo de Nosso Senhor Jesus-Cristo. Como os espíritas, e antes dos espíritas, foi ele o primeiro a proclamar esta máxima que faz vossa glória: Fora da caridade não há salvação! Mas não é apenas por este único lado que ele se liga à doutrina que nós vos ensinamos e que hoje propagais. Com aquela sublime inteligência que lhe era própria, tinha previsto o que Deus reservava para o futuro e, notadamente, esta transformação, esta regeneração da fé cristã, que sois chamados a assentar profundamente no espírito moderno, já que descreve, na citada epístola, e de maneira indiscutível, as principais faculdades mediúnicas, por ele chamadas de dons abençoados do Espírito Santo.
Ah! Meus filhos, aquele santo doutor contempla, com uma amargura que não pode dissimular, o grau de aviltamento em que caiu a maior parte dos que falam em seu nome, e que proclamam, urbi et orbi, que outrora Deus deu à Terra toda a soma de verdades que esta era capaz de receber. Não obstante, o apóstolo tinha exclamado em seu tempo que só havia uma ciência e profecias imperfeitas. Ora, aquele que se lastimava de tal situação sabia, por isto mesmo, que essa ciência e essas profecias um dia se aperfeiçoariam. Não está aí a condenação absoluta de todos os que incriminam o progresso? O mais rude golpe aos que pretendem que o Cristo e os apóstolos, os Pais da Igreja e, sobretudo, os reverendos casuístas da Companhia de Jesus, deram à Terra toda a ciência religiosa e filosófica à qual ela tinha direito? Felizmente o próprio apóstolo teve o cuidado de os desmentir antecipadamente.
Meus caros filhos, para apreciar, no seu justo valor, os homens que vos combatem, não deveis senão estudar os argumentos de sua polêmica, suas palavras acerbas e os pesares que testemunham, como o reverendo Pailloux; que as fogueiras tenham sido extintas e que a Santa Inquisição não mais funcione ad majorem Dei glorium. Meus irmãos, tendes a caridade; eles, a intolerância, pelo que têm muito a lastimar-se. Eis por que vos convido a orar por esses pobres transviados, a fim de que o Espírito Santo, que eles tanto invocam, se digne, enfim, de lhes iluminar a consciência e o coração.
François-Nicolas Madeleine

A esta notável comunicação juntaremos as seguintes palavras de São Paulo, tiradas da primeira epístola aos Coríntios:
Mas alguém dirá: Como ressuscitarão os mortos? E com que corpo virão? Insensato! O que tu semeias não é vivificado, se primeiro não morrer. E, quando semeias, não semeias o corpo que há de nascer, mas o simples grão, como de trigo ou doutra qualquer semente. Mas Deus dá-lhe o corpo como quer e a cada semente, o seu próprio corpo. Nem toda carne é uma mesma carne; mas uma é carne dos homens, e outra, a carne dos animais, e outra, a das aves, e outra, a dos peixes.
 E há corpos celestes e corpos terrestres, mas uma é a glória dos celestes, e outra, a dos terrestres. Uma é a glória do Sol, e outra, a glória da Lua, e outra, a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de outra estrela.
Assim também a ressurreição dos mortos. Semeia-se o corpo em corrupção, ressuscitará em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, ressuscitará em glória. Semeia-se em fraqueza, ressuscitará com vigor. Semeia-se corpo animal, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo animal, há também corpo espiritual.
E, agora, digo isto, irmãos: que carne e sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herda a incorrupção. (São Paulo, 1ª epístola aos Coríntios, capítulo XV, versículos 35 a 44 e 50).

Que pode ser este corpo espiritual, que não é o corpo animal, senão o corpo fluídico, cuja existência é demonstrada pelo Espiritismo – o perispírito – de que a alma é revestida após a morte? Com a morte do corpo o Espírito entra em perturbação; por um instante perde a consciência de si mesmo; depois recupera o uso de suas faculdades e renasce para a vida inteligente; numa palavra, ressuscitará com o seu corpo espiritual.
O último parágrafo, relativo ao juízo final, contradiz positivamente a doutrina da ressurreição da carne, pois diz: “A carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus”. Assim, os mortos não ressuscitarão com sua carne e seu sangue, nem terão necessidade de reunir seus ossos dispersos, mas terão seu corpo celeste, que não é o corpo animal. Se o autor do Catecismo filosófico tivesse meditado bem o sentido destas palavras, teria evitado fazer o intrincado cálculo matemático a que se entregou, para provar que todos os homens mortos desde Adão, ressuscitando em carne e osso, com seus próprios corpos, poderiam caber perfeitamente no vale de Josafá, sem muito incômodo[2].
Assim, São Paulo estabeleceu em princípio e em teoria o que hoje ensina o Espiritismo sobre o estado do homem após a morte.
Mas São Paulo não foi o único a pressentir as verdades ensinadas pelo Espiritismo. A Bíblia, os Evangelhos, os apóstolos e os Pais da Igreja dele estão cheios, de sorte que condenar o Espiritismo é negar as próprias autoridades sobre as quais se apoia a religião. Atribuir todos os seus ensinamentos ao demônio é lançar o mesmo anátema sobre a maioria dos autores sacros. O Espiritismo, pois, não vem destruir, mas, ao contrário, restabelecer todas as coisas, isto é, restituir a cada coisa o seu verdadeiro sentido.




[1] Revista Espírita – Dezembro/1863 – Allan Kardec
[2] Catéchisme philosophique, pelo abade Feller, tomo III, página 83.

Nenhum comentário:

Postar um comentário