Há um século a sociedade vem
sendo trabalhada pelas ideias materialistas, reproduzidas sob todas as formas,
a traduzir-se na maioria das obras literárias e artísticas. A incredulidade
estava na moda e era de bom-tom exibir a negação de tudo, mesmo de Deus.
A vida presente, eis o positivo;
fora disto, tudo é quimera ou incerteza; vivamos, pois, o melhor possível,
porque, depois, não sabemos o que virá. Tal era o raciocínio dos que pretendiam
estar acima dos preconceitos e, por isso, se diziam espíritos fortes. É preciso
convir que era o maior número, dos que movimentavam a sociedade e tinham o
encargo de a conduzir e cujo exemplo necessariamente deveria ter grande
influência. O próprio clero sofria essa influência; a conduta, particular ou
pública, de muitos de seus membros, em completo desacordo com os seus ensinos e
os do Cristo, provava que não acreditavam no que pregavam, porque se tivessem
acreditado firmemente na vida futura e nos castigos, teriam desprezado menos os
interesses do Céu pelos da Terra.
Assim, tinham buscado todas as
bases das instituições humanas na ordem das coisas materiais, acabando por
reconhecer que faltava a essas instituições um sólido ponto de apoio, desde que
as que pareciam mais bem assentadas desabavam num dia de tempestade; que as
leis repressivas mascaravam os vícios, mas não tornavam melhores os homens.
Qual era este ponto de apoio? Eis a questão; mas buscavam, e alguns acabaram
por crer que Deus bem podia estar para alguma coisa no Universo. Depois alguns espíritos
fortes começaram a ter medo e, para não mais rir do futuro senão com os lábios,
diziam: Pretendem que tudo acaba com a morte; mas, em última análise, o que
sabem disso os que o afirmam? Afinal de contas, é apenas a sua opinião. Antes
de Cristóvão Colombo também se acreditava que nada houvesse além do oceano. E
se existisse, então, alguma coisa além do sepulcro?
Seria interessante sabê-lo,
porque, se houver algo, é preciso que todos passem por isto, já que todos
morreremos. Como se fica ali? Bem? Mal? A questão é importante e deve ser
considerada. Mas se sobrevivemos, certamente não será o nosso corpo. Temos, assim,
uma alma? Então a alma não seria uma quimera? Como será essa alma? De onde vem?
Para onde vai?
Daí uma vaga inquietação
apoderou-se dos mais fanfarrões defronte da morte; trataram de procurar, de
discutir; depois, reconhecendo que, fizessem o que fizessem, jamais estariam
completamente bem na Terra, por vezes até muito mal, lançaram as vistas e as
esperanças para o futuro. Todas as coisas extremas têm a sua reação, quando não
estão na verdade; só a verdade é imutável. As ideias materialistas haviam
chegado ao apogeu; então perceberam que não davam o que delas se esperava; que
deixavam o vazio no coração; que abriam um abismo insondável, do qual recuavam
com terror, como diante de um precipício; daí uma aspiração pelo desconhecido
e, consequentemente, uma inevitável reação para as ideias espiritualistas, como
única saída possível.
É tal reação que se manifesta
desde alguns anos; mas o homem chegou a um dos pontos culminantes da
inteligência. Ora, nessa idade em que a faculdade de compreender está adulta,
não mais pode ser conduzido como na infância ou na adolescência. O positivismo
da vida lhe ensinou a procurar, dizemos mais, tornou-lhe necessário o porquê e
o como de cada coisa, pois em nosso século matemático há necessidade de darmos
conta de tudo, de tudo calcular, tudo medir, para saber onde pomos o pé. Até na
abstração queremos a certeza, se não material, pelo menos moral; não basta
dizer se uma coisa é boa ou má, quer-se saber por que o é, e se se tem ou não
razão para prescrevê-la ou proibi-la; eis por que a fé cega não mais tem curso
em nosso século raciocinador.
Não se pede apenas que se tenha
fé; desejam-na, hoje sentem sua sede, porque é uma necessidade; querem, porém,
uma fé raciocinada. Discutir sua crença é uma exigência da época, à qual, bem ou
mal, há que se resignar.
As ideias espiritualistas
respondem bem às aspirações gerais, sendo preferidas ao cepticismo e à ideia do
nada, porque se sabe, instintivamente, que estão certas, mas não satisfazem
senão imperfeitamente, porque ainda deixam a alma na incerteza e são impotentes
para dar, por si sós, a solução de uma multidão de problemas. O simples
espiritualista está na posição de um homem que percebe o seu objetivo, mas
ainda não sabe qual o caminho que a ele conduz e encontra escolhos no percurso.
Eis por que, nestes últimos tempos, tão grande número de escritores e filósofos
trataram de sondar esses misteriosos segredos, porque muitos sistemas foram
criados visando a resolver inúmeros problemas que continuam sem solução. Sejam
esses sistemas racionais, sejam absurdos, nem por isso deixam de testemunhar as
tendências espiritualistas da época, das quais não mais se faz mistério, não se
procura ocultar e das quais, ao contrário se gloriam, como outrora se gloriavam
da sua incredulidade. Se nenhum desses sistemas chegou à verdade completa, é
incontestável que vários se aproximaram ou afloraram, e que a discussão que se
seguiu preparou o caminho, predispondo os espíritos para esse gênero de estudo.
Foi nestas circunstâncias,
eminentemente favoráveis, que chegou o Espiritismo; mais cedo, ter-se-ia
chocado contra o materialismo todo-poderoso; em tempo mais recuado, teria sido abafado
pelo fanatismo cego. Ele se apresenta no momento em que o fanatismo, morto pela
incredulidade que ele mesmo provocou, não mais lhe pode impor uma barreira
séria e em que se está fatigado do vazio deixado pelo materialismo; no momento
em que a reação espiritualista, provocada pelos próprios excessos do materialismo,
se apodera de todos os espíritos, quando se está à procura das grandes soluções
que interessam ao futuro da Humanidade. É, pois, neste momento que ele vem
resolver esses problemas, não por hipóteses, mas por provas efetivas, dando ao Espiritismo
o caráter positivo, único que convém à nossa época.
Nele se encontra o que se busca
e que não se encontrou alhures: eis por que o aceitam tão facilmente. Milhares
de órgãos lhe abriram e continuam abrindo caminho, semeando pouco a pouco as ideias
que ele professa. Não se deve crer que neste caso haja apenas obras sérias,
lidas por um pequeno número de eruditos! Notai quanto, sob uma forma leve, a do
romance ou do folhetim, abundam neste momento os pensamentos espíritas; por aí
penetram em toda parte, mesmo nos que nele menos pensam. São outros tantos
germes latentes que eclodem quando vier a grande luz, pois estarão familiarizados
com as ideias novas.
Um dos princípios mais
importantes do Espiritismo é, incontestavelmente, o da pluralidade das
existências corpóreas, isto é, da reencarnação, que os cépticos confundem, por
má-fé ou por ignorância, com o dogma da metempsicose. Sem este princípio nós nos
chocamos com tantas dificuldades insolúveis na ordem moral e psicológica, que
muitos filósofos modernos a ele foram conduzidos pela força do raciocínio, como
a uma lei necessária da Natureza; tais são Charles Fourier, Jean Reynaud e
muitos outros. Este princípio, hoje discutido abertamente por homens de grande
valor, sem que, por isto, sejam espíritas, tem clara tendência a introduzir-se
na filosofia moderna. Uma vez de posse dessa chave, a filosofia verá abrir-se à
sua frente horizontes novos e as dificuldades mais árduas serão aplainadas como
que por encanto. Ora, ele não pode deixar de chegar a isto; para aí será
conduzida pela força das coisas, porque a pluralidade das existências não é um
sistema, mas uma lei da Natureza, que ressalta da evidência dos fatos.
Sem ser tão claramente formulado
quanto em Fourier e Reynaud, nem apresentado como doutrina, o princípio da pluralidade
das existências agora se acha numa porção de escritores e, daí, em todas as
bocas, de modo que pode dizer-se que está na ordem do dia e tende a tomar lugar
entre as crenças vulgares, embora, em muitas, preceda o conhecimento do Espiritismo.
É uma consequência natural da reação espiritualista que se opera no momento, e
à qual o Espiritismo vem dar um poderoso impulso.
Para citações, teríamos
dificuldade na escolha. Limitar-nos-emos à passagem seguinte, de um dos últimos
romances da Sra. George Sand: Mademoiselle de La Quintinie, obra filosófica
notável, posta no index pela cúria romana, bem como a Revue des Deux Mondes,
que a publicou nos números de 1º e 15 de março, abril e maio de 1863.
Trata-se de um sacerdote muito
culpado, levado ao arrependimento, à reparação e à expiação terrestre pelos
severos conselhos de um leigo que, entre outras coisas, lhe diz:
Dizeis que passastes
a idade das paixões!... Não, porque entrais na das vinganças e perseguições.
Cuidado! Porém, seja qual for a vossa sorte entre nós, vereis claro um dia além
da sepultura; e como não creio mais nos castigos sem-fim, do que nas provas sem
fruto, eu vos anuncio que nós nos encontraremos num lugar qualquer, onde nos
entenderemos melhor e nos amaremos, em vez de nos combatermos. Mas, também como
vós, não creio na impunidade do mal e na eficácia do erro. Creio que expiareis
em outra existência o voluntário endurecimento do vosso coração, por meio de grandes
dilacerações do sentimento. No entanto, só vos cabe entrar na via direta da
felicidade progressiva, pois estou certo de que tudo pode ser resgatado desde
esta vida. A alma humana é dotada de magníficas forças de arrependimento e de
reabilitação. Isto não é contrário aos vossos dogmas, e vossa palavra de
contrição diz muito.
Num próximo artigo examinaremos
a obra do Sr. Renan sobre a vida de Jesus e mostraremos que, apesar das aparências
e sem que o autor o saiba, é ainda um produto da reação espiritualista. Por
mais que o materialismo proclame o nada, em vão sacode o círculo da lógica e da
consciência universal que o encerra; seus últimos gritos são abafados pela voz
que lhe grita dos quatro cantos do mundo: “Temos uma alma imortal”! Mas a quem aproveitará
a reação? É o que nos dirá um futuro não muito distante.
Enquanto se aguarda que falemos
da obra do Sr. Renan, recomendamos com insistência aos nossos leitores uma
pequena brochura, na qual a questão nos parece encarada de um ponto de vista
muito racional, e que contém observações muito judiciosas sobre esta delicada
questão. Seu título é: “Réflexions d’un orthodoxe de l’Église grecque sur la
Vie de Jésus”, par M. Renan. (Didier et Cie. Preço, 50 centavos).
[1] Revista
Espírita – Outubro/1863 – Allan Kardec
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