Discute-se a política que move os interesses gerais; discutem-se os
interesses privados; apaixona-se pelo ataque ou pela defesa das personalidades;
os sistemas têm partidários e detratores, mas as verdades morais, que são o pão
da alma, o pão da vida, são deixadas no pó acumulado pelos séculos.
Todos os aperfeiçoamentos são úteis aos olhos da multidão, salvo os da
alma.
J. J. Rousseau, Médium Sra.
Costel, Revista Espírita, Agosto de 1861.
"Dissertações e ensinos
espíritas” [2]
A economia, as eleições e os
embates políticos atuais nos convidam a meditar sobre conceitos como governo,
política e temas administrativos. O que o Espiritismo teria a dizer sobre o
assunto?
É evidente que o tema é complexo
e exige conhecimento especializado. A multiplicidade de interesses, crenças
filosóficas e de pensamento são tão grandes entre aqueles que se aproximam do
poder que é muito difícil dar uma resposta única a esses problemas. Assim,
ainda que houvesse acordo em relação aos princípios que devem nortear programas
de governo, existe discordância em relação à
maneira como tais princípios devem se organizar na administração, tendo em
vista os conflitos de interesse entre diversos grupos que pretendem realizar
essa organização.
Assim, é impossível a definição
de apenas uma maneira de governar. Por outro lado, ainda que os interesses
coincidissem, mas de forma desorganizada ‒ o que obviamente não ocorre ‒ o excesso
de ideias, de pontos de vista e heurísticas de organização do poder tornariam
novamente inviável qualquer solução simples. A julgar porém que muitas nações
conseguiram transitoriamente razoável estabilidade e aparente equidade social
(pelo menos do ponto de vista material), temos a certeza de que uma solução
próxima do ótimo também deve existir para um país tão complexo como o Brasil.
Mas, será que podemos usar o
Espiritismo para descobrir qual o melhor caminho a seguir em problemas
administrativos e políticos?
O propósito do
Espiritismo
Convencer intelectualmente a
alma humana[3]
da continuidade da vida após a morte, da progressão sem fim em todos os
sentidos e da necessidade de fraternidade com consequência desse destino final
é um dos objetivos do Espiritismo. Assim, em qualquer relacionamento que se
faça entre Espiritismo e tais assuntos, não se deve nunca perder de vista que o
Espiritismo jamais terá como objetivo
sugerir (e, muito menos ditar) orientações para governos e instituições por uma
questão de princípios próprios do Espiritismo. Entendemos que célula última da
sociedade (o indivíduo) deve inicialmente se convencer da importância dos
princípios universais do bem e da caridade como condição necessária para que
esses problemas administrativos sejam, de fato, resolvidos. Por isso, o foco
principal da Doutrina Espírita será, por enquanto, trabalhar no aprimoramento
do ser humano através de sua educação moral.
É evidente que a base de todo o
progresso, inclusive o material, está na evolução da alma. Primeiro porque se
ela for mais educada, terá seus apetites materiais reduzidos, o que permite o
compartilhamento de recurso entre todos. Segundo porque uma moral superior na
sociedade torna a vida de todos mais fácil, por melhorar as relações humanas
que também são a base para todas as trocas, inclusive aquelas que interessam
aos aspectos materiais da vida presente. De fato, tudo é mais fácil quando as
relações se dão entre almas verdadeiramente
educadas. Mas educação, para o Espiritismo, não é apenas conhecimento intelectual,
mas também dos valores infinitos que o ser deve cultuar de forma a se
harmonizar com seus semelhantes, com Deus e consigo mesmo.
Lembramos aqui o que Kardec já
afirmava ao nascente movimento espírita de sua época (que é plenamente válido
para o momento atual):
Devo ainda
assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os
espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que
é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo
título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis
cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando
se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões
apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral,
quanto esta for boa (Grifos nossos) [4].
Assim, além da relevante questão
de separação entre "religião e Estado", deve-se procurar também
afastar os assuntos espíritas de quaisquer influências de envolvimento com tais
questões irritantes, de forma que o
movimento espírita não se contamine com utopias
de natureza política promovida por grupos de interesses diversos. Jamais o
espírita deverá se deixar levar pelo "canto de sereia" daquilo que
nasceu fora do contexto espírita (e,
principalmente, com claras idealizações materialistas) e que com ele nada tenham a ver a não ser um vago
anseio pela melhoria da vida dos homens sem se especificar a que custo.
Ora, que se tenha tais anseios é
muito fácil de defender, pois é desejo compartilhado por qualquer um. Quem se
colocaria contra uma corrente de pensamento, doutrina ou partido que pretenda
melhorar as condições de vida dos cidadãos? Quem se oporia à redução das
injustiças sociais? Quem reprovaria a distribuição equitativa de riquezas?
Disso não segue que qualquer meio para se
atingir tal objetivo deva contar com o apoio de uma doutrina de caráter
moral e que prega a continuidade da vida após a morte com consequências claras
para vida futura. Além disso, como as reais intenções dos indivíduos não estão
disponíveis publicamente, não existem garantias quanto à credibilidade de seus
proponentes, ainda mais em uma época em que as pessoas guardam tão pouco apreço
pela verdade.
Existe uma distância imensa
entre os diversos métodos propostos para se chegar a esse estado de justiça e
aquilo que realmente deve ser feito, considerando-se a conjuntura presente da
sociedade, os inúmeros conflitos de interesse e a existência de indivíduos sem
escrúpulo que se apropriam desses anseios em benefício próprio. Dessa forma, o
leitor deve considerar as consequências para sua vida futura de seu engajamento
em ações eticamente inconsistentes e que prejudicam diretamente determinadas
pessoas em nome da "defesa de interesses" de outras. Por fim, deve
ainda considerar que o silêncio, omissão ou não ação diante de situações claramente
vexatórias e discriminantes também trará consequências futuras.
Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras. (Romanos 2:6)
Está vedado ao espírita sua
manifestação política? Obviamente que não, porém, o indivíduo que se diz
espírita deve procurar meditar sobre a consistência lógica de seu
posicionamento diante dos princípios imortalistas que diz defender. Se ele não
fizer isso, estará propagando por seus atos uma crença incoerente ou propaganda
falsa. O primeiro compromisso do espírita deve ser com a verdade.
Enquanto espera,
conseguisse ele corrigir um único defeito...
Sei que muitos podem se
decepcionar com essa conclusão bastante clara do pensamento espírita escorado
em seus princípios. A outros ela parecerá excessivamente utópica ou impraticável.
Convém revisar, entretanto, a resposta à questão 800 de "O Livro dos
Espíritos":
800. Não será de temer que o Espiritismo não consiga
triunfar da negligência dos homens e do seu apego às coisas materiais?
Conhece bem pouco os
homens quem imagine que uma causa qualquer os possa transformar como que por
encanto. As ideias só pouco a pouco se modificam, conforme os indivíduos, e
preciso é que algumas gerações passem, para que se apaguem totalmente os
vestígios dos velhos hábitos. A transformação, pois, somente com o tempo,
gradual e progressivamente, se pode operar. A cada geração uma parte do véu se
dissipa. O Espiritismo veio para rasgá-lo de alto a baixo; mas, enquanto
espera, conseguisse ele corrigir num homem apenas um único defeito que fosse e
já o haveria ajudado a dar um passo. Ter-lhe-ia feito, só com isso, grande
bem, pois esse primeiro passo lhe facilitará os outros. (Grifo nosso)2.
De onde se depreende que os
métodos usados pela lei Divina (que o Espiritismo toma como orientação da vida
do indivíduo) são bastante diferentes daqueles idealizados pelos encarnados que
têm pressa em mudar a situação atual com
base na crença de que a presente existência é a única que existe.
Não sabemos quando o estado
final de felicidade perene se concretizará, mas temos como certo que a proposta
de aprimoramento do ser por enquanto tem sido relegada ao "pó dos
séculos" pelo desprezo que o progresso material da civilização deu às
questões da alma, que sequer é considerada como a existir. Assim, muitos dos
métodos criados para se chegar a esse estado de justiça e equidade partem do
pressuposto que apenas os aspectos
materiais devem ser privilegiados, o que cria um conflito entre esses
objetivos e a realidade do destino final da alma humana que existe e sempre existirá. Que o progresso material deva ser conseguido
a qualquer custo não parece também ser um objetivo defensável, haja vista as
diversas consequências negativas desse progresso em outros sentidos (problemas
ambientais e climáticos, conflitos e desequilíbrios psicológicos vários etc.).
Os princípios espíritas estão
ligados a objetivos que talvez nunca se generalizem na superfície do Terra um
dia. Seu alvo é a vida paralela imortal do ser e claramente levariam a uma
rápida modificação das condições materiais e principalmente morais da vida na
Terra se eles fossem sistematicamente buscados. Como haveremos, porém, de
convencer aos não espíritas de sua excelência se nós, que dizemos neles
acreditar, agimos de forma inconsistente? É impossível ao espírita ‒ que tem
zelo por sua doutrina ‒ esquecer os aspectos imanentes da vida humana nas horas
em que ele é obrigado a decidir sobre todos os outros aspectos em sua presente
e transitória encarnação.
[3] Dizemos intelectualmente, porque, todos os dias,
milhares de pessoas entram em contato com o mundo invisível seja através de
suas atividades durante o sono ou de algum grau de mediunidade. Assim,
inconscientemente todos guardamos noção da sobrevivência e da vida maior. Além
disso outros tantos milhares partes para o mais além através da morte.
Entretanto, esse conhecimento ou lembrança permanece inconsciente na vigília
dos encarnados cujas crenças mais ligadas aos sentidos e ao aprendizado acabam
por dominar muito de suas decisões.
[4] Kardec A. "Cumprimentos de Ano Novo". Revue
Spirite, Fevereiro de 1862. (versão IPEAK www.ipeak.com). O artigo original em
Francês tem como título "Les souhaits de nouvel an: Réponse à l'adresse
des Spirites Lyonnais à l'occasion de la nouvelle année".
Nenhum comentário:
Postar um comentário