(Extrato dos trabalhos da Sociedade Espírita de Paris)
Um rapaz de vinte e três anos, o
Sr. A..., de Paris, que se iniciou no Espiritismo há apenas dois meses, captou
o seu alcance com tal rapidez que, sem nada ter visto, o aceitou em todas as
suas consequências morais. Dirão que isto não é de admirar da parte de um
jovem, e não prova senão uma coisa: a leviandade e um entusiasmo irrefletido.
Seja. Mas prossigamos. Esse moço irrefletido, como ele próprio reconhece, tinha
um grande número de defeitos, dos quais o mais saliente era uma irresistível predisposição
para a cólera, desde a infância. Pela menor contrariedade, pelas causas mais
fúteis, quando entrava em casa e não encontrava imediatamente o que queria; se
uma coisa não estivesse no seu lugar habitual; se o que tivesse pedido não
estivesse pronto em um minuto, enfurecia-se e tudo quebrava. Era a tal ponto
que um dia, num paroxismo de cólera, explodindo contra a mãe, disse-lhe:
“Vai-te embora, ou eu te mato”! Depois, esgotado pela superexcitação, caía sem
consciência. Acrescente-se que nem os conselhos dos pais, nem as exortações da
religião tinham podido vencer esse caráter indomável, compensado, aliás, por
uma grande inteligência, uma instrução cuidadosa e os mais nobres sentimentos.
Dir-se-á que é o efeito de um
temperamento biliososanguíneonervoso; resultado do organismo e, por
conseguinte, arrastamento irresistível. Resulta desse sistema que se, em seus desvarios,
tivesse cometido um assassinato, seria perfeitamente desculpável, porque teria
resultado de um excesso de bile. Resulta ainda que, a menos que modificasse o
temperamento, que mudasse o estado normal do fígado e dos nervos, esse rapaz
estaria predestinado a todas as funestas consequências da cólera.
– Conheceis um remédio para tal estado patológico?
– Não, nenhum, a não ser que, com o tempo, a idade possa
atenuar a abundância de secreções mórbidas.
– Pois bem! O que não pode a Ciência, o Espiritismo o faz,
não pela ação do tempo e em consequência de um esforço contínuo, mas
instantaneamente.
Bastaram alguns dias para fazer
desse jovem um ser meigo e paciente. A certeza adquirida da vida futura, o
conhecimento do objetivo da vida terrestre, o sentimento da dignidade do homem,
revelada pelo livre-arbítrio, que o coloca acima do animal, a responsabilidade
daí decorrente, o pensamento de que a maior parte dos males terrenos é a consequência
de nossos atos, todas essas ideias, hauridas num estudo sério do Espiritismo,
produziram em seu cérebro uma súbita revolução; pareceu-lhe que um véu foi retirado
de seus olhos; a vida se lhe apresentou sob outra face.
Então, certo de que tinha em si
um ser inteligente, independente da matéria, disse de si para si:
“Este ser deve ter
uma vontade, ao passo que a matéria não a tem; portanto, ele pode dominar a matéria”.
Daí este outro raciocínio:
“O resultado de
minha cólera foi tornar-me doente e infeliz, e ela não me dá o que me falta;
logo é inútil, já que não estou mais adiantado. Ela me produz mal e nenhum bem
me dá em compensação; mais ainda: poderia impelir-me a atos repreensíveis,
criminosos talvez”.
Ele quis vencer, e venceu. Desde
então, mil ocasiões se apresentaram que, antes, o teriam enfurecido e ante as
quais ele ficou impassível e indiferente, para grande estupefação de sua mãe.
Sentia o sangue ferver e subir à cabeça, mas, por sua vontade, o fazia refluir,
forçando-o a descer.
Um milagre não teria feito
melhor. Mas o Espiritismo fez muitos outros, que nossa revista não bastaria
para registrar, se quiséssemos relatar todos os que são do nosso conhecimento pessoal,
atinentes a reformas morais dos mais inveterados hábitos.
Citamos este como um exemplo
notável do poder da vontade e, também, porque levanta um importante problema,
que só o Espiritismo pode resolver.
O Sr. A... perguntava-nos a
respeito se seu Espírito era responsável por sua violência, ou se apenas sofria
a influência da matéria. Eis a nossa resposta:
Vosso Espírito é de tal modo responsável que, quando o
quisestes seriamente, controlastes o movimento sanguíneo.
Assim, se o tivésseis querido antes, os acessos teriam
cessado mais cedo e não teríeis ameaçado vossa mãe. Além disso, quem é que se encoleriza?
O corpo ou o Espírito? Se os acessos viessem sem motivo, poder-se-ia crer que
eram provocados pelo afluxo sanguíneo; mas, fútil ou não, tinham por causa uma
contrariedade.
Ora, evidentemente não era o corpo que estava contrariado,
mas o Espírito, muito susceptível. Contrariado, o Espírito reagia sobre um sistema
orgânico irritável, que não teria sido provocado se tivesse ficado em repouso.
Façamos uma comparação. Tendes um cavalo fogoso; se souberdes governá-lo, ele
se submete; se o maltratardes, ele se enfurece e vos derruba. De quem a falta:
vossa ou do cavalo?
Para mim, é evidente que vosso Espírito é naturalmente irascível;
mas como cada um traz consigo o seu pecado original, isto é, um resto das
antigas inclinações, não é menos evidente que, em vossa precedente existência,
tivésseis sido um homem de extrema violência, e que provavelmente tereis pago
muito caro, talvez com a própria vida. Na erraticidade, vossas outras boas
qualidades vos ajudaram a compreender vossos erros; tomastes a resolução de vos
vencer e, para isto, lutar em uma nova existência. Mas se tivésseis escolhido
um corpo débil e linfático, vosso Espírito, não encontrando nenhuma
dificuldade, nada teria ganhado, o que para vós significaria ter de recomeçar.
Eis por que escolhestes um corpo bilioso, a fim de ter o mérito da luta. Agora
a vitória está alcançada.
Vencestes o inimigo do vosso repouso e nada pode entravar
o livre exercício de vossas boas qualidades. Quanto à facilidade com a qual aceitastes
e compreendestes o Espiritismo, ela se explica pela mesma causa: éreis espírita
há muito tempo; esta crença era inata em vós e o materialismo foi apenas o
resultado da falsa direção dada às vossas ideias. Abafada inicialmente, a ideia
espírita permaneceu em estado latente e bastou uma centelha para despertá-la.
Bendizei, pois, a Providência que permitiu que esta centelha chegasse em boa hora
para deter uma inclinação que talvez vos tivesse causado amargos desgostos, ao
passo que vos resta uma longa carreira a percorrer na estrada do bem.
Todas as filosofias se chocaram
contra esses mistérios da vida humana, que pareciam insondáveis até que o
Espiritismo lhes trouxe o seu facho. Em presença de tais fatos, ainda se pode perguntar
para que serve ele? Estamos no direito de bem augurar o futuro moral da
Humanidade quando ele for compreendido e praticado por todo o mundo.
[1] Revista
Espírita – Julho/1863 – Allan Kardec
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