Melissa Hogenboom - BBC
Future - 19 março 2018
No fim de 2015, uma mulher de 48
anos deu entrada na emergência de um hospital em Berna, na Suíça, com cortes
profundos que ela própria havia feito em seu peito. Alguns mediam até 7 cm de
profundidade.
Questionada pelos médicos, a
paciente deu uma resposta inusitada: seguira ordens diretas de Deus.
Tratava-se de um caso estranho,
mas não completamente incomum, de acordo com o psiquiatra Sebastian Walther,
que conheceu a mulher no hospital e relatou à BBC sobre o caso dela, sem
revelar sua real identidade ‒ a chamaremos aqui de Sarah.
Walther lembra que a paciente
dizia se sentir "abençoada" e que tinha ouvido vozes "por
horas". Eram, segundo o relato, mensagens "divinas" e
"engraçadas", apesar de terem resultado em ferimentos graves.
Os médicos decidiram, então,
realizar uma tomografia do cérebro da paciente e fizeram uma descoberta
surpreendente. Sarah tinha um tumor em uma área importante do órgão, que acabou
por afetar uma rede neurológica que atua no processamento do som.
Mais comum do que se
imagina
Embora a maioria de nós consiga
distinguir claramente sons externos e pensamentos internos, muitas pessoas
ouvem vozes ‒ com estimativas variando de 5% até 19% da população em geral.
Algumas são benignas. Mas outras, quando combinadas com problemas de saúde
mental, podem ser angustiantes. Esse era o tipo de voz que Sarah ouvia.
As alucinações auditivas, como
as que ela experimentou, mostram a fragilidade com que nosso cérebro processa a
entrada do som. O caso é um exemplo de como nossos processos perceptivos
funcionam e podem ser facilmente embaralhados.
O primeiro passo para resolver o
mistério do comportamento de Sarah consistiu em um mergulho em seu passado,
para investigar por quanto tempo ela havia experimentado sintomas parecidos aos
que relatava.
Seu interesse pela religião não
havia surgido do nada: Sarah tinha mostrado indícios de fundamentalismo religioso
desde os 13 anos de idade. Tais pensamentos retornariam ao longo de sua vida,
mas nunca foram muito duradouros.
Inicialmente, pensava-se que
Sarah era esquizofrênica. Mas suas alucinações auditivas não apresentam os
sintomas clássicos. Ela não se isolava de contextos sociais ou sofria de
depressão. "Isso não se aplicava a ela; seu caso era especial",
explica Walther.
Quando a tomografia revelou o
tumor de Sarah, Walther percebeu que sua rede de neurônios foi
"prejudicada" em uma área muito importante, afetando a maneira como
ela interpretava sons.
Tumor de avanço lento
O especialista diz acreditar que
o tumor possa ter surgido durante a adolescência, período no qual,
coincidentemente, teve início o interesse religioso de Sarah.
Ao estudar o histórico médico e
os sintomas da paciente, Walther observou que ela tinha tido apenas quatro
"períodos de sintomas" e que eles eram sempre os mesmos: Sarah ouvia
vozes divinas, se sentia extremamente religiosa e se integrava a grupos
religiosos. Mas esse interesse desaparecia logo após surgir, e ela não sentia
mais nada durante anos até o ciclo começar novamente.
Associando esses sintomas à
localização do tumor, o psiquiatra e seus colegas afirmam ser mais provável que
as alucinações delirantes de Sarah sejam resultado direto dele, embora os
sinais tenham aparecido de repente várias vezes ao longo de sua vida.
A explicação para isso,
acreditam os especialistas, é de que o tumor parece ser do tipo de crescimento
lento, aumentando gradualmente durante um longo período de tempo.
Eles acrescentam ainda que a
periodicidade com que os sintomas apareciam se deve ao fato de que o cérebro
talvez tenha se adaptado ao estresse causado pelo tumor.
"Portanto, pensamos ser
muito provável que o tumor tenha afetado periodicamente a rede, durante várias
semanas ou meses, período no qual a paciente experimentou tais sintomas",
diz Walther.
Além disso, o tumor era benigno
e não crescia de forma invasiva ou fora de controle, como ocorre com os
malignos.
Uma segunda tomografia cerebral
revelou que o tumor havia se estabilizado, mas, devido à sua localização, nem
cirurgia nem radiação eram possíveis.
Cérebro e
espiritualidade
A surpreendente conclusão de
Walther, publicada na revista científica Frontiers of Psychiatry
("Fronteiras da Psiquiatria"), se baseou no argumento de que o tumor
de Sarah invadiu áreas importantes para o som, enquanto lesões em áreas
próximas aumentaram os sentimentos de "autotranscendência"
semelhantes àqueles experimentados por Sarah.
Seu interesse em religião
claramente teve um papel central no que suas vozes lhe diziam para fazer.
Atipicamente, contudo, esse interesse em si também pode ter sido resultado do
tumor. Isso porque ele infiltrou o córtex auditivo no caminho ao lobo temporal ‒
uma área do cérebro que, quando afetada, está associada ao aumento dos níveis
de interesse espiritual nos pacientes com epilepsia do lobo temporal.
O tumor no cérebro de Sarah
também afetou outras áreas cerebrais ligadas à "forte
espiritualidade".
Evidentemente, como se trata de
um caso raro, é difícil determinar se o tumor foi a causa da religiosidade da
paciente.
Por outro lado, os pesquisadores
destacam que estudos já mostraram que estimular magneticamente áreas próximas
no cérebro também afeta a religiosidade e a espiritualidade.
Apesar de atípicos, existem
casos similares na literatura médica, embora nenhum idêntico ao de Sarah.
Em um deles, uma mulher
experimentou "hiper-religiosidade" como resultado de um tumor
cerebral fatal. Até então, a paciente, de 60 anos, nunca havia mostrado
interesse em religião e ouvido vozes.
Alberto Carmona-Bayonas, que
estudou o caso no Hospital Universitário Geral de Meseguer, na Espanha, explica
que o tumor estava localizado no lobo temporal direito da paciente. Segundo
ele, "há diversos exemplos na literatura médica sobre esse fenômeno,
especialmente em epilépticos."
Contudo, Carmona-Bayonas
enfatiza a diferença entre casos patológicos como esses e "crenças e
sentimentos de pessoas normais".
Sarah e a paciente cujo caso ele
estudou mostram algo já amplamente conhecido pelos médicos: o de que as
personalidades de pessoas com tumores cerebrais podem mudar, às vezes para
melhor. A intensidade dessa mudança vai depender, contudo, do tamanho da área
do cérebro tomada pelo tumor.
O caso de Sarah também se
destaca por outro motivo, o de que seu tumor cresceu muito devagar e ela
experimentou sintomas repetidas vezes. Como ele mudou ao longo do tempo, seu
interesse em religião também cresceu e diminuiu.
Além disso, quando uma parte
particular de seu cérebro (o tálamo) foi afetada, Sarah ouviu vozes. Embora os
remédios reduzissem essas alucinações, uma vez suprimidos, ela passou a
ouvi-las novamente.
Para entender como seu tumor
causou tais sintomas, precisamos entender como processamos o som.
'Voz interna'
A neurocientista Kristiina
Kompus, da Universidade de Bergen, na Noruega, vem tentando resolver o mistério
sobre por que algumas pessoas ouvem uma "voz interna" que consideram
verdadeira.
Uma das razões pelas quais as
alucinações auditivas soam tão reais se deve ao fato de que elas envolvem o
mesmo "caminho" cerebral pelo qual vozes reais e imaginárias são
processadas.
"Então, todas as áreas do
cérebro relacionadas ao processamento da fala e da audição parecem estar
intimamente envolvidas na produção dessas alucinações", diz Kompus.
As alucinações, portanto, nos
revelam a forma como nossa percepção funciona. O tálamo - área do cérebro de
Sarah prejudicada pelo tumor ‒ desempenha um papel inicial e fundamental no
processamento do som que ouvimos antes dele ser enviado a outras áreas do
cérebro para ser interpretado.
A informação sensorial que vemos
e ouvimos em torno de nós entra primeiro no tálamo ‒ pense nisso como uma
estação retransmissora que encaminha o que vemos e ouvimos ao córtex necessário
para a triagem.
Essa área tem, então, que
trabalhar intensamente para transformar tudo isso em informações que façam
sentido.
Ou seja, "baseando-se em
informações muito escassas que entram pelo nervo auditivo", explica
Kompus.
Sempre que a informação
apresenta algum tipo de ruído, ou ela não é confiável e não parece estar
correta, o cérebro "tem que confiar na adivinhação".
O caso de Sarah mostra que a
informação sensorial que recebemos do exterior responde por apenas uma pequena
parcela do que interpretamos em última análise. Em vez disso, muitas vezes
dependemos de expectativas e previsões. Se o nosso tálamo não estiver
funcionando como deveria, ora por estar comprometido ora por ser mais fino
(como é frequentemente o caso em indivíduos com esquizofrenia), não causa
surpresa que o resto do processamento auditivo seja afetado.
O conteúdo religioso das vozes
que Sarah ouvia poderia ser resultado de seu interesse anterior em religião,
uma vez que pessoas que ouvem vozes costumam, muitas vezes, escutar seu próprio
"discurso interno" em voz alta.
"Muitas vezes as
alucinações estão ligadas a assuntos que são importantes para um indivíduo em
particular", diz Kompus.
Ouvir vozes, explica Kompus, nem
sempre é uma consequência de um problema de saúde mental, mas vozes negativas
podem naturalmente fazer com que um indivíduo se sinta pior.
"Se" alguém
"constantemente lhe diz" que você é inútil, estúpido e deve se matar,
"não é de se admirar que os níveis de depressão e ansiedade piorem".
Ainda que Sarah mantenha sua fé,
as vozes angustiantes que ouve já não a incomodam. Ela aprendeu a conviver com
seu tumor, tem um trabalho estável e agora sabe que, se as vozes retornarem,
pode buscar ajuda.
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