Jaci Régis
Deolindo Amorim nasceu no Estado
da Bahia, numa família pobre e católica. Foi presbiteriano fervoroso. Rompeu
com sua igreja e permaneceu muitos anos sem definição filosófica ou religiosa.
Em 1935 descobriu o Espiritismo.
A palavra descobriu é empregada no seu sentido de percepção totalizadora de
uma ideia. É, certamente, um exercício intelectual, mas ultrapassa esse
universo para penetrar no universo da apreensão do objeto.
Quando se descobre uma doutrina,
por exemplo, ela se incorpora a nossa estrutura mental, ao nosso modo de estar
no mundo.
Bem ao contrário de qualquer
recaída fanática, a descoberta é a forma de inserir-se no conteúdo, abrangendo,
pouco a pouco, não apenas os enunciados, as ideias, os conteúdos. É mais,
percebe-se os objetivos, divisa-se o rumo e a essência. Enquanto o adepto, o
estudioso permanece na superfície ou na profundidade da ideia, o descobridor se
integra, faz uma ligação definitiva com a doutrina. Foi o que aconteceu com
Deolindo Amorim.
Nascido a 23 de janeiro de 1908,
Deolindo mudou-se para o Rio de Janeiro. Radicado na antiga capital do Brasil,
tornou-se jornalista e, posteriormente funcionário público, tendo galgado
elevada posição funcional no Ministério da Fazenda.
Desde que descobriu a Doutrina
Espírita, tornou-se, progressiva e determinadamente, no baluarte pela definição
específica do que é o Espiritismo.
Conheci pessoalmente Deolindo
Amorim. Missivista atencioso, ele teceu comentários elogiosos à minha obra “Comportamento
Espírita”, na ocasião de seu lançamento. A dimensão de seu trabalho certamente
não cabe nos limites destas notas.
Sua figura simpática, serena,
não significava, entretanto, fraqueza ou acomodação. Polemizou com companheiros
de forma responsável e respeitosa. Prosseguiu seu caminho com coerência e
dignidade. Manteve posições firmes, mesmo contra amigos e situações.
Personalidade afetuosa, mostrou
uma determinação e uma estrutura de pensamento ímpares. Foi, ao longo de sua
vida, uma barreira positiva, definida, contra a corrupção do pensamento doutrinário.
Lutou sem descanso pelo bom entendimento da obra de Allan Kardec.
Creio que a figura ímpar de
Deolindo pode ser definida como o didata por excelência, o professor eficaz do
Espiritismo.
O Ativista
Deolindo não ficou na teoria.
Além de escrever livros, editar jornais, representar periódicos e enviar
artigos para muitos jornais e revistas, proferir conferências, tomou
iniciativas que marcaram o movimento espírita brasileiro.
Já em 1939 ele idealizou e
promoveu o I Congresso de Jornalistas e
Escritores Espíritas, realizado na cidade do Rio de Janeiro. Foi uma
reunião de intelectuais espíritas, semente de propostas posteriores. O momento
era crucial, o Espiritismo era perseguido pela Igreja e pela Polícia. A II
Grande Guerra estava iniciada.
Esteve ao lado de Leopoldo
Machado na promoção do I Congresso de
Mocidades e Juventudes Espíritas do Brasil e na criação do Conselho Consultivo de Mocidades Espíritas.
Foi parceiro fiel de Aurino
Souto, presidente da Liga Espírita do Brasil.
Finalmente, fundou em 7 de
dezembro de 1957 O Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), instituição
de grande influência no estudo e divulgação do Espiritismo, com sede no Rio de
Janeiro e que dirigiu até sua desencarnação.
Em Defesa do
Espiritismo
Um dos problemas mais emergentes
relativos ao bom entendimento da Doutrina Espírita foi a constante tentativa de
confundi-lo seja com a Umbanda, o Candomblé, com as religiões cristãs e
doutrinas espiritualistas. Principalmente com os cultos afro-católicos, as
confusões foram muito grandes. Hoje, talvez, esse aspecto esteja quase superado
mas já foi mais grave. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB) pretendeu
fazer uma divisão absurda: chamar de Espiritismo todas as práticas mediúnicas
ou semelhantes e de Doutrina Espírita, a obra de Kardec.
Em 1947 Deolindo publicou “Africanismo
e Espiritismo”, onde deixa clara a inexistência de ligações filosóficas,
práticas ou doutrinárias entre o Espiritismo e as correntes espiritualistas
apoiadas na cultura africana, trazida pelo escravos e que se converteram em
várias seitas de gosto popular.
Determinado a explanar,
didaticamente, as bases da doutrina de Allan Kardec, ele escreveu, “O
Espiritismo e os Problemas Humanos”, “O Espiritismo à Luz da Crítica”, em
resposta a um padre que escrevera livro atacando a Doutrina. “Espiritismo e
Criminologia”, oriundo de uma conferência no Instituto de Criminologia da
Universidade do Rio de Janeiro. Em 1958, lançou “O Espiritismo e as Doutrina
Espiritualistas”, onde não combate nenhuma corrente ou ideia espiritualista,
como a Teosofia, a Rosacruz, seitas de origem asiática ou africana.
Ele simplesmente define, separa,
identifica o que é o Espiritismo, mostrando a sua independência filosófica,
embora ressaltando eventuais coincidências de pontos filosóficos, devido à base
espiritualista desses movimentos.
O Didata da Doutrina
Deolindo não lançou teorias, nem
propôs ideias revolucionárias de atualização ou desenvolvimento da Doutrina.
Esmerou-se e o fez com absoluto sucesso, em definir o conteúdo, a abrangência,
o papel e o lugar do Espiritismo na sociedade e nas doutrinas espiritualistas.
Não se pense, todavia, que tenha
sido ortodoxo e conservador.
Nada disso. Foi uma mente aberta
ao novo, entendeu perfeitamente o sentido evolucionista do Espiritismo e
recusou-se a aceitar as ideias conservadoras, retrógradas.
Na Introdução de “O Espiritismo
e as Doutrina Espiritualistas” ele diz:
“Escrevemos este
trabalho com o sincero propósito de concorrer, embora despretensiosamente, para
que se esclareça cada vez mais a verdadeira posição do Espiritismo perante as
doutrinas e os cultos espiritualistas. Todas as doutrinas, como todos os credos,
sejam quais forem as suas origens, nos merecem o mais justo respeito. (...)
Devemos, porém, dizer claramente o que é e o que não é Espiritismo, para que
não haja confusão nem tomem corpo interpretações duvidosas.
E reafirma sua posição: “Repetimos que o Espiritismo é universalista, porque os fatos do
espírito são universais, os seus problemas têm o sentido da universalidade, mas
também é oportuno acentuar que o Espiritismo não é uma forma de sincretismo
doutrinário ou religioso, sem unidade nem consistência”.
Que é o Espiritismo, afinal?
Vejamos o que nos diz Allan Kardec: O
Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina
filosófica. Ciência de observação, sim, nem precisamos dizê-lo, porque tem
por objeto uma fenomenologia que já foi comprovada em experiências; doutrina
filosófica, realmente, porque, tendo por base experimental o fenômeno
mediúnico, faz inquirições sobre as causas e leis, deduzindo consequências que
incidem no domínio moral, da religião, da filosofia em si. Eis, em síntese, o
que é o Espiritismo.
Finalizando o excelente “O
Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas”, afirma que:
“Como doutrina essencialmente progressista,
recebe os enriquecimentos das ciências, como acompanha os fenômenos sociais e
culturais, sem perder, todavia, a sua integridade e as suas características.
Nenhuma religião,
nenhum culto espiritualista poderia absorvê-lo ou confundi-lo, a despeito da
existência de aspectos comuns, porque as suas concepções basilares, tendo consequências
científicas, filosóficas e religiosas, não permitem adaptações e concessões
arbitrárias. Desta proposição, consequentemente, chegamos à conclusão de que O
Espiritismo é uma doutrina que se basta a si mesma, sem empréstimos nem
acréscimos artificiais".
A Questão Religiosa
Sobre a questão religiosa no
Espiritismo, sua posição foi bem igual a de Kardec. Citando as palavras do
fundador, concluía que, como qualquer filosofia espiritualista, o Espiritismo
tinha consequências religiosas, mas de forma alguma se tornava uma religião
constituída.
Allan Kardec frisa
bem que o Espiritismo não é uma religião constituída. Não o fora nos primeiros
tempos, quando o seus delineamentos ainda estavam na fase de elaboração, nem o
seria hoje, com a experiência histórica de mais de um século, quando a Doutrina
já está definitivamente consolidada.
O qualificativo
constituída não exclui a ideia religiosa. Há muita diferença entre o culto
organizado e atos religiosos ou consequências religiosas. O Espiritismo tem,
indiscutivelmente, consequências religiosas, e muito profundas, mas a sua
esquematização, a sua índole e a sua conceituação básica não comportam qualquer
forma de culto material, nem, sacerdotes, nem chefes carismáticos... O
verdadeiro culto para o Espiritismo é o culto interior, é o sentimento, a
elevação do pensamento.
O fato de haver
Allan Kardec preferido não instituir nenhum sistema moral, porque lhe bastou a
moral cristã para o coroamento da doutrina por ele codificada, não quer dizer
que o Espiritismo concorde ou deva concordar com tudo quanto ensinam as
diversas religiões e denominações cristãs; muito menos seria possível
introduzir no Espiritismo práticas, dogmas e formas peculiares às religiões
oriundas do Cristianismo.
E, não é possível
reduzir o Espiritismo às limitações de uma seita cristã, assim como não se pode
concordar com a suposição corrente de que tudo seja a mesma coisa.
Tendo-se preocupado
fundamentalmente com a interpretação filosófica do fenômeno e suas consequências
na ordem moral, a Codificação do Espiritismo não cogitou, nem poderia cogitar,
de qualquer culto material, assim como não prescreve cerimônias de iniciação,
nem hierarquia sacerdotal.
Se reconhecida, como é obvio,
que o Espiritismo tem uma ligação estreita com a moral de Jesus, e consequentemente
com o Evangelho, deixa claro que essa foi uma decisão de Kardec e separa de
maneira muito clara o cristianismo do Espiritismo.
Pelo fato de aceitar a mensagem
do evangelho, afirmou, não significa que o Espiritismo aceita tudo do
cristianismo. Ele sempre foi contrário à confusão dos que tentam diluir o
Espiritismo seja com os cultos espiritualistas, seja com os rituais do cristianismo.
Repudiava o tudo é a mesma coisa, frase usada para justificar as deturpações
gritantes contra a identidade da doutrina.
É o Espiritismo que interpreta o evangelho , não é o evangelho que
interpreta o Espiritismo.
Reforço à
Intelectualidade
Como é comum no movimento
espírita, Deolindo foi muito criticado por optar pela cultura e pela
inteligência. Existiu, no Rio de Janeiro, a Faculdade Brasileira de Estudos
Psíquicos que ele não fundou, como às vezes se diz, mas a que pertenceu e foi
seu último presidente. Tornada insubsistente a continuidade da Faculdade, ele
promoveu a criação do Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB) fundado em
7 de dezembro de 1957 e por ele dirigido até sua desencarnação.
Quanto à questão da unificação
do movimento, Deolindo nunca aderiu à Federação Espírita Brasileira, tanto que
aliou-se à Liga Espírita do Brasil, entidade criada em 1927, por Aurino Souto e
da qual Deolindo foi o último 2º vice-presidente.
Em 1949, com o chamado Pacto
Áureo, a Liga Espírita do Brasil, que não tinha representatividade nacional,
deixou de existir, transformando-se numa entidade federativa estadual. Hoje,
depois de várias denominações, é a USERJ - União das Sociedades Espíritas do
Estado do Rio de Janeiro.
Deolindo foi contra o
acordo
Suas palavras sobre o assunto,
em 1949:
quando a Liga
aceitou o Acordo de 5 de outubro, acordo que se denominou depois, Pacto Áureo,
tomei posição contrária (..) votei contra a resolução, porque não concordei com
o modo pelo qual se firmara esse documento. E o fiz em voz alta, de pé, na Assembleia,
com mais doze companheiros que pensavam da mesma forma.
Admirava muito Léon Denis, de
quem disse: “Léon Denis pertence, com
inteira justiça, à galeria dos mais autênticos filósofos espíritas. Discípulo e
continuador de Allan Kardec, ninguém o foi, até hoje, com mais afeição e com
vigor intelectual”.
Mas seu respeito a sua
fidelidade ao pensamento de Allan Kardec foi não apenas exemplar, mas de um
tirocínio brilhante e uma defesa inteligente e atuante.
Em 24 de abril de 1984, aos 76
anos de vida terrena, desencarnou Deolindo Amorim, fechando um ciclo fecundo de
pensadores espíritas, dos quais, com justiça ele está num lugar privilegiado.
Todavia, mais do que nunca,
neste momento em que o Espiritismo precisa decidir seu próprio caminho, o
pensamento, a palavra e a postura de Deolindo Amorim são elementos
indispensáveis para entender, seguir e definir o futuro da Doutrina.
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