sábado, 5 de maio de 2018

Genealogia Espírita[1]





Entre os argumentos que certas pessoas contrapõem à doutrina da reencarnação, um há que merece ser examinado, porque, à primeira vista, parece bastante especioso. Dizem que ela tenderia a romper os laços de família, multiplicando-os; aquele que concentrasse sua afeição sobre o pai deveria partilhá-la com tantos pais quantas tivessem sido as encarnações. Como, então, uma vez no mundo dos Espíritos, se reconhecer no meio dessa progenitura?
Por outro lado, em que se torna a filiação dos antepassados, se aquele que crê descender em linha direta de Hugo Capeto ou de Godofredo de Bulhões viveu várias vezes? Se, depois de ter sido um grão-senhor, pode tornar-se um plebeu? Eis, assim, toda uma linhagem derrubada!
A isto responderemos, para começar, que de duas uma: ou é, ou não é. Se for, todas as recriminações pessoais não impedirão que seja, porquanto Deus, para regular a ordem das coisas, não pede conselho a ninguém, pois, de outro modo, cada um quereria que o mundo fosse governado a seu talante. Quanto à multiplicidade dos laços de família, diremos que certos pais não têm senão um filho, enquanto outros têm doze ou mais. Já se pensou em acusar Deus de obrigá-los a dividir a afeição em várias partes? E esses filhos, que por sua vez têm filhos, tudo isto não forma uma família numerosa, cujo avô e bisavô se vangloria, em vez de lamentar-se? Vós, que fazeis remontar vossa genealogia a cinco ou seis séculos, não deveríeis, uma vez no mundo dos Espíritos, partilhar vossa afeição entre todos os vossos ascendentes? Se vos atribuís uma dúzia de avós, muito bem! Tereis o dobro ou o triplo – eis tudo. Tendes, pois, uma ideia muito acanhada dos vossos sentimentos afetuosos, pois temeis que não sejam suficientes para amar a várias pessoas! Tranquilizai-vos, porém. Vou provar que com a reencarnação vossa afeição será menos dividida do que se não existisse. Com efeito, suponhamos que na vossa genealogia contásseis cinquenta avós, igual número de ascendentes diretos e colaterais, o que é pouco, se remontardes às cruzadas. Pela reencarnação, é possível que alguns dentre eles tenham vindo várias vezes e, assim, em lugar de cinquenta Espíritos que contáveis na Terra, só encontraríeis a metade no outro mundo.
Passemos à questão da filiação. Com o vosso sistema chegais a um resultado completamente diverso daquele que esperais. Se não houver preexistência, anterioridade da alma, a alma ainda não viveu; portanto, a vossa alma foi criada ao mesmo tempo em que o vosso corpo; nesse estado de coisas, não tem nenhuma relação com nenhum dos vossos antepassados. Suponhamos que descendeis em linha reta de Carlos Magno; o que há de comum entre vós e ele?
Que foi o que vos transmitiu intelectual e moralmente? Nada, absolutamente nada. Por que vos apegais a ele? Por uma série de corpos que apodreceram todos, destruídos e dispersos, não há razão para vos sentirdes orgulhosos. Com a preexistência da alma, ao contrário, podeis ter tido com os vossos antepassados relações reais, sérias e mais lisonjeiras para o amor-próprio. Portanto, sem a reencarnação existe apenas um parentesco corporal, pela transmissão de moléculas orgânicas da mesma natureza que a dos cavalos puro-sangue. Com a reencarnação há um parentesco espiritual. Qual dos dois sistemas é melhor?
Por certo objetareis que com a reencarnação um Espírito estranho pode introduzir-se na vossa linhagem e que, em vez de nela contar apenas gentis-homens, se podem encontrar sapateiros. É perfeitamente certo; mas isto não quer dizer nada. São Pedro não passava de um pobre pescador. Não seria de uma casa bastante digna, a ponto de nos fazer corar por tê-lo em nossa família?
E, depois, entre esses antepassados de nomes famosos, todos terão tido uma conduta edificante, a nosso ver a única coisa de que, até certo ponto, nos poderíamos honrar, embora seu mérito nada tenha com o nosso? Que se perscrute a vida privada desses paladinos, desses grandes barões, que roubavam sem escrúpulos os transeuntes e que, em nossos dias, seriam pura e simplesmente levados à barra dos tribunais por seus grandes feitos; de certos grão-senhores, para quem a vida de um vilão não valia uma peça de caça, pois mandavam enforcar um homem por causa de um coelho? Tudo isto eram pecadilhos, que não manchavam brasões.
Mas, casar-se com pessoa de condição inferior, introduzir na família um sangue plebeu era um crime imperdoável. Ah! Por mais que se faça, quando soar a hora da partida – e soa para os grandes e para os pequenos – terão de deixar na Terra as roupas bordadas, e os pergaminhos de nada servirão diante do juiz supremo, que pronuncia essa sentença terrível: Aquele que se exaltar será humilhado! Se bastasse descender de qualquer grande homem para ter seu lugar previamente marcado no céu, a gente o compraria barato, porque à custa do mérito alheio. A reencarnação dá uma nobreza mais meritória, a única aceita por Deus, qual seja a de haver animado uma série de homens de bem. Felizes os que puderem depor aos pés do Eterno o tributo dos serviços prestados à Humanidade em cada uma de suas existências, porquanto a soma dos méritos será proporcional ao número de suas existências. Mas aquele que se prevalecer apenas da glória de seus antepassados, Deus dirá: Por que vós mesmos não vos ilustrastes?
Um outro sistema poderia, aparentemente, conciliar as exigências do amor-próprio com o princípio da não reencarnação: é aquele pelo qual o pai não transmitisse ao filho apenas o corpo, mas, também, uma porção de sua alma. Desse modo, se descendêsseis de Carlos Magno, vossa alma poderia ter seu tronco na dele. Muito bem! Vejamos, contudo, a que consequência chegamos. Em virtude de tal sistema, a alma de Carlos Magno teria o seu tronco na de seu pai e, assim, pouco a pouco chegaríamos a Adão. Se a alma de Adão é o tronco de todas as almas do gênero humano, as quais transmitem aos sucessores algumas porções de si mesma, as almas atuais resultariam de um fracionamento que ultrapassaria todas as subdivisões homeopáticas. Disso resultaria que a alma do pai comum deveria ser mais completa e mais inteira que a dos descendentes. Resultaria, ainda, que Deus teria criado apenas uma alma, que se subdividia ao infinito e, assim, cada um de nós não seria uma criação direta de Deus. Aliás, esse sistema deixaria um imenso problema a ser resolvido: o das aptidões especiais. Se o pai transmitisse ao filho os princípios de sua alma, transmitir-lhe-ia necessariamente suas virtudes e vícios, seus talentos e sua inépcia, como lhe transmite certas enfermidades congênitas. Como, então, explicar por que homens virtuosos ou de gênio têm filhos maus ou cretinos e vice-versa? Por que uma linhagem seria mesclada de bons e de maus? Dizei, ao contrário, que cada alma é individual, que tem existência própria e independente, que progride, em virtude de seu livre-arbítrio, por uma série de existências corporais, em cada uma das quais adquire algo de bom e deixa algo de mal, até que tenha atingido a perfeição, e tudo se explica, tudo se conforma à razão, à justiça de Deus, mesmo em proveito do amor-próprio.
O Sr. Salgues (de Angers), de quem falamos em nosso número anterior, não é partidário da reencarnação. Depois do aparecimento de O Livro dos Espíritos escreveu-nos uma longa carta, na qual combatia esta doutrina com argumentos baseados na sua incompatibilidade com os laços de família. Nessa carta, datada de 18 de setembro de 1857, dá-nos a sua genealogia, que remonta, sem interrupção, aos carolíngeos, e pergunta em que se tornará essa gloriosa filiação com a mistura de Espíritos pela reencarnação. Dela extraímos a seguinte passagem: “Mas, então, para que serviriam os quadros genealógicos? Tenho o meu, completo, regular: de um lado, desde os antepassados de Carlos Magno e, do outro, desde a filha do emir Muza, um dos descendentes abássidas de Maomé, décima geração, por seu casamento com Garcia, príncipe de Navarra, pai, com ela, de Garcia Ximenes, rei de Navarra; e, enfim, essa genealogia continuou, em razão de alianças, por soberanos de quase todas as cortes da Europa, até a época de Afonso VI, rei de Castela, depois nas casas de Comminges, de Lascaris Vintemille, de Montmorency, de Turenne e, finalmente, dos condes e senhores Palhasse de Salgues, no Languedoc. Tudo isto se pode constatar na Arte de verificar datas, os Beneditinos de Saint-Maur, no Dicionário da nobreza da França, no Armorial, no padre Anselmo, Noreri, etc. Mas se nos ligamos aos nossos pais somente pela matéria carnal, que recebeu o nosso Espírito, não há em toda parte lacunas e notáveis soluções de continuidade? É um caminho traçado na areia que se perde em milhares de direções. Que nos seja então permitido crer que, se o Espírito não se transmite, a alma é para o homem o que o aroma é para a flor. Ora, Swedenborg não diz nos Arcanos que nada se perde na Natureza? e que o aroma das flores reproduz novas flores em outras regiões, além daquela de onde saiu? É, pois, pela alma, que não é Espírito, que talvez existisse uma cadeia semi-espiritual de gerações. Se tivesse agradado ao meu Espírito saltar oito ou dez gerações de vez em quando, onde reconheceria meus antepassados?”
Como se vê, o Sr. Salgues não se apega senão à procedência do corpo. Mas como conciliar as relações de Espírito a Espírito com a não-preexistência da alma? Se, nessa filiação, houvesse entre eles relações necessárias, como o descendente de tantos soberanos seria hoje um simples proprietário angevino? Aos olhos do mundo não seria uma retrogradação? Não pomos em dúvida a autenticidade de sua genealogia, e o felicitamos por ela, já que isso lhe dá prazer, mas diremos que o estimamos mais por suas virtudes pessoais do que pelas de seus antepassados.
A autoridade de Swedenborg é aqui muito contestável, quando atribui ao aroma a reprodução das flores. Este óleo essencial, volátil, que lhe dá o aroma, jamais teve a faculdade reprodutora, que reside unicamente no pólen. Falta justeza à comparação, porque se a alma apenas se distingue, por seu perfume, sobre a alma que lhe sucede, não a cria; contudo, deveria transmitir-lhe suas próprias qualidades e, nesta hipótese, não vemos por que o descendente de Carlos Magno não teria enchido o mundo com o brilho de suas ações, enquanto Napoleão não se apoiaria senão sobre uma alma vulgar. Que se diga que Napoleão descende de Carlos Magno ou, melhor ainda, que foi Carlos Magno, que veio no século dezenove continuar a obra começada no oitavo, compreende-se; mas, com o princípio da unicidade da existência nada liga Carlos Magno a seus descendentes, a não ser esse aroma, transmitido pouco a pouco sobre almas não criadas. E, então, como explicar por que, entre os seus descendentes, houve tantos homens nulos e indignos, e por que Napoleão é um gênio maior do que os seus obscuros antepassados? Façam o que quiserem: sem a reencarnação nós nos chocamos a cada passo contra dificuldades insolúveis, que só a preexistência da alma resolve, de maneira ao mesmo tempo simples, lógica e completa, visto dar a razão de tudo.
Uma outra questão é o fato conhecido de que as famílias se abastardam e degeneram quando as alianças não saem da linha direta. Dá-se nas raças humanas o mesmo que nas raças animais. Por que, então, a necessidade de cruzamentos? Em que se torna a unidade do tronco? Não há aí uma mistura de Espíritos, uma intrusão de Espíritos estranhos à família? Um dia trataremos esta grave questão com todos os desenvolvimentos que ela comporta.




[1] Revista Espírita – Março/1862 – Allan Kardec

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