Entre os argumentos que certas
pessoas contrapõem à doutrina da reencarnação, um há que merece ser examinado,
porque, à primeira vista, parece bastante especioso. Dizem que ela tenderia a
romper os laços de família, multiplicando-os; aquele que concentrasse sua
afeição sobre o pai deveria partilhá-la com tantos pais quantas tivessem sido
as encarnações. Como, então, uma vez no mundo dos Espíritos, se reconhecer no
meio dessa progenitura?
Por outro lado, em que se torna
a filiação dos antepassados, se aquele que crê descender em linha direta de
Hugo Capeto ou de Godofredo de Bulhões viveu várias vezes? Se, depois de ter
sido um grão-senhor, pode tornar-se um plebeu? Eis, assim, toda uma linhagem
derrubada!
A isto responderemos, para começar,
que de duas uma: ou é, ou não é. Se for, todas as recriminações pessoais não
impedirão que seja, porquanto Deus, para regular a ordem das coisas, não pede
conselho a ninguém, pois, de outro modo, cada um quereria que o mundo fosse
governado a seu talante. Quanto à multiplicidade dos laços de família, diremos
que certos pais não têm senão um filho, enquanto outros têm doze ou mais. Já se
pensou em acusar Deus de obrigá-los a dividir a afeição em várias partes? E
esses filhos, que por sua vez têm filhos, tudo isto não forma uma família
numerosa, cujo avô e bisavô se vangloria, em vez de lamentar-se? Vós, que
fazeis remontar vossa genealogia a cinco ou seis séculos, não deveríeis, uma
vez no mundo dos Espíritos, partilhar vossa afeição entre todos os vossos
ascendentes? Se vos atribuís uma dúzia de avós, muito bem! Tereis o dobro ou o
triplo – eis tudo. Tendes, pois, uma ideia muito acanhada dos vossos
sentimentos afetuosos, pois temeis que não sejam suficientes para amar a várias
pessoas! Tranquilizai-vos, porém. Vou provar que com a reencarnação vossa
afeição será menos dividida do que se não existisse. Com efeito, suponhamos que
na vossa genealogia contásseis cinquenta avós, igual número de ascendentes
diretos e colaterais, o que é pouco, se remontardes às cruzadas. Pela
reencarnação, é possível que alguns dentre eles tenham vindo várias vezes e,
assim, em lugar de cinquenta Espíritos que contáveis na Terra, só encontraríeis
a metade no outro mundo.
Passemos à questão da filiação.
Com o vosso sistema chegais a um resultado completamente diverso daquele que
esperais. Se não houver preexistência, anterioridade da alma, a alma ainda não
viveu; portanto, a vossa alma foi criada ao mesmo tempo em que o vosso corpo;
nesse estado de coisas, não tem nenhuma relação com nenhum dos vossos
antepassados. Suponhamos que descendeis em linha reta de Carlos Magno; o que há
de comum entre vós e ele?
Que foi o que vos transmitiu
intelectual e moralmente? Nada, absolutamente nada. Por que vos apegais a ele?
Por uma série de corpos que apodreceram todos, destruídos e dispersos, não há
razão para vos sentirdes orgulhosos. Com a preexistência da alma, ao contrário,
podeis ter tido com os vossos antepassados relações reais, sérias e mais
lisonjeiras para o amor-próprio. Portanto, sem a reencarnação existe apenas um
parentesco corporal, pela transmissão de moléculas orgânicas da mesma natureza
que a dos cavalos puro-sangue. Com a reencarnação há um parentesco espiritual.
Qual dos dois sistemas é melhor?
Por certo objetareis que com a
reencarnação um Espírito estranho pode introduzir-se na vossa linhagem e que,
em vez de nela contar apenas gentis-homens, se podem encontrar sapateiros. É
perfeitamente certo; mas isto não quer dizer nada. São Pedro não passava de um
pobre pescador. Não seria de uma casa bastante digna, a ponto de nos fazer
corar por tê-lo em nossa família?
E, depois, entre esses
antepassados de nomes famosos, todos terão tido uma conduta edificante, a nosso
ver a única coisa de que, até certo ponto, nos poderíamos honrar, embora seu
mérito nada tenha com o nosso? Que se perscrute a vida privada desses
paladinos, desses grandes barões, que roubavam sem escrúpulos os transeuntes e
que, em nossos dias, seriam pura e simplesmente levados à barra dos tribunais
por seus grandes feitos; de certos grão-senhores, para quem a vida de um vilão
não valia uma peça de caça, pois mandavam enforcar um homem por causa de um
coelho? Tudo isto eram pecadilhos, que não manchavam brasões.
Mas, casar-se com pessoa de
condição inferior, introduzir na família um sangue plebeu era um crime
imperdoável. Ah! Por mais que se faça, quando soar a hora da partida – e soa
para os grandes e para os pequenos – terão de deixar na Terra as roupas
bordadas, e os pergaminhos de nada servirão diante do juiz supremo, que
pronuncia essa sentença terrível: Aquele que se exaltar será humilhado! Se
bastasse descender de qualquer grande homem para ter seu lugar previamente
marcado no céu, a gente o compraria barato, porque à custa do mérito alheio. A
reencarnação dá uma nobreza mais meritória, a única aceita por Deus, qual seja
a de haver animado uma série de homens de bem. Felizes os que puderem depor aos
pés do Eterno o tributo dos serviços prestados à Humanidade em cada uma de suas
existências, porquanto a soma dos méritos será proporcional ao número de suas
existências. Mas aquele que se prevalecer apenas da glória de seus
antepassados, Deus dirá: Por que vós mesmos não vos ilustrastes?
Um outro sistema poderia,
aparentemente, conciliar as exigências do amor-próprio com o princípio da não
reencarnação: é aquele pelo qual o pai não transmitisse ao filho apenas o
corpo, mas, também, uma porção de sua alma. Desse modo, se descendêsseis de
Carlos Magno, vossa alma poderia ter seu tronco na dele. Muito bem! Vejamos,
contudo, a que consequência chegamos. Em virtude de tal sistema, a alma de
Carlos Magno teria o seu tronco na de seu pai e, assim, pouco a pouco
chegaríamos a Adão. Se a alma de Adão é o tronco de todas as almas do gênero
humano, as quais transmitem aos sucessores algumas porções de si mesma, as
almas atuais resultariam de um fracionamento que ultrapassaria todas as
subdivisões homeopáticas. Disso resultaria que a alma do pai comum deveria ser
mais completa e mais inteira que a dos descendentes. Resultaria, ainda, que
Deus teria criado apenas uma alma, que se subdividia ao infinito e, assim, cada
um de nós não seria uma criação direta de Deus. Aliás, esse sistema deixaria um
imenso problema a ser resolvido: o das aptidões especiais. Se o pai
transmitisse ao filho os princípios de sua alma, transmitir-lhe-ia
necessariamente suas virtudes e vícios, seus talentos e sua inépcia, como lhe
transmite certas enfermidades congênitas. Como, então, explicar por que homens
virtuosos ou de gênio têm filhos maus ou cretinos e vice-versa? Por que uma
linhagem seria mesclada de bons e de maus? Dizei, ao contrário, que cada alma é
individual, que tem existência própria e independente, que progride, em virtude
de seu livre-arbítrio, por uma série de existências corporais, em cada uma das
quais adquire algo de bom e deixa algo de mal, até que tenha atingido a
perfeição, e tudo se explica, tudo se conforma à razão, à justiça de Deus,
mesmo em proveito do amor-próprio.
O Sr. Salgues (de Angers), de
quem falamos em nosso número anterior, não é partidário da reencarnação. Depois
do aparecimento de O Livro dos Espíritos escreveu-nos uma longa carta, na qual
combatia esta doutrina com argumentos baseados na sua incompatibilidade com os
laços de família. Nessa carta, datada de 18 de setembro de 1857, dá-nos a sua
genealogia, que remonta, sem interrupção, aos carolíngeos, e pergunta em que se
tornará essa gloriosa filiação com a mistura de Espíritos pela reencarnação.
Dela extraímos a seguinte passagem: “Mas, então, para que serviriam os quadros
genealógicos? Tenho o meu, completo, regular: de um lado, desde os antepassados
de Carlos Magno e, do outro, desde a filha do emir Muza, um dos descendentes abássidas
de Maomé, décima geração, por seu casamento com Garcia, príncipe de Navarra,
pai, com ela, de Garcia Ximenes, rei de Navarra; e, enfim, essa genealogia
continuou, em razão de alianças, por soberanos de quase todas as cortes da
Europa, até a época de Afonso VI, rei de Castela, depois nas casas de
Comminges, de Lascaris Vintemille, de Montmorency, de Turenne e, finalmente,
dos condes e senhores Palhasse de Salgues, no Languedoc. Tudo isto se pode
constatar na Arte de verificar datas, os Beneditinos de Saint-Maur, no
Dicionário da nobreza da França, no Armorial, no padre Anselmo, Noreri, etc. Mas
se nos ligamos aos nossos pais somente pela matéria carnal, que recebeu o nosso
Espírito, não há em toda parte lacunas e notáveis soluções de continuidade? É
um caminho traçado na areia que se perde em milhares de direções. Que nos seja
então permitido crer que, se o Espírito não se transmite, a alma é para o homem
o que o aroma é para a flor. Ora, Swedenborg não diz nos Arcanos que nada se
perde na Natureza? e que o aroma das flores reproduz novas flores em outras
regiões, além daquela de onde saiu? É, pois, pela alma, que não é Espírito, que
talvez existisse uma cadeia semi-espiritual de gerações. Se tivesse agradado ao
meu Espírito saltar oito ou dez gerações de vez em quando, onde reconheceria
meus antepassados?”
Como se vê, o Sr. Salgues não se
apega senão à procedência do corpo. Mas como conciliar as relações de Espírito
a Espírito com a não-preexistência da alma? Se, nessa filiação, houvesse entre
eles relações necessárias, como o descendente de tantos soberanos seria hoje um
simples proprietário angevino? Aos olhos do mundo não seria uma retrogradação?
Não pomos em dúvida a autenticidade de sua genealogia, e o felicitamos por ela,
já que isso lhe dá prazer, mas diremos que o estimamos mais por suas virtudes
pessoais do que pelas de seus antepassados.
A autoridade de Swedenborg é
aqui muito contestável, quando atribui ao aroma a reprodução das flores. Este
óleo essencial, volátil, que lhe dá o aroma, jamais teve a faculdade
reprodutora, que reside unicamente no pólen. Falta justeza à comparação, porque
se a alma apenas se distingue, por seu perfume, sobre a alma que lhe sucede,
não a cria; contudo, deveria transmitir-lhe suas próprias qualidades e, nesta
hipótese, não vemos por que o descendente de Carlos Magno não teria enchido o
mundo com o brilho de suas ações, enquanto Napoleão não se apoiaria senão sobre
uma alma vulgar. Que se diga que Napoleão descende de Carlos Magno ou, melhor
ainda, que foi Carlos Magno, que veio no século dezenove continuar a obra
começada no oitavo, compreende-se; mas, com o princípio da unicidade da
existência nada liga Carlos Magno a seus descendentes, a não ser esse aroma,
transmitido pouco a pouco sobre almas não criadas. E, então, como explicar por
que, entre os seus descendentes, houve tantos homens nulos e indignos, e por
que Napoleão é um gênio maior do que os seus obscuros antepassados? Façam o que
quiserem: sem a reencarnação nós nos chocamos a cada passo contra dificuldades
insolúveis, que só a preexistência da alma resolve, de maneira ao mesmo tempo
simples, lógica e completa, visto dar a razão de tudo.
Uma outra questão é o fato
conhecido de que as famílias se abastardam e degeneram quando as alianças não
saem da linha direta. Dá-se nas raças humanas o mesmo que nas raças animais.
Por que, então, a necessidade de cruzamentos? Em que se torna a unidade do
tronco? Não há aí uma mistura de Espíritos, uma intrusão de Espíritos estranhos
à família? Um dia trataremos esta grave questão com todos os desenvolvimentos
que ela comporta.
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