terça-feira, 17 de abril de 2018

UMA PAIXÃO DE ALÉM-TÚMULO[1]


Maximiliano V..., criança de doze anos, suicida-se por amor.



Lê-se no Siècle de 13 de janeiro de 1862:
“Maximiliano V..., rapazola de doze anos, morava com os pais à Rua des Cordiers e estava empregado como aprendiz numa tapeçaria. Esta criança tinha o hábito de ler romances folhetins.
Todos os momentos que podia escapulir do trabalho ele os dedicava à leitura, que lhe superexcitava a imaginação e lhe inspirava ideias acima de sua idade. Assim, imaginou sentir paixão por uma criatura que teve ocasião de ver algumas vezes, a qual estava longe de pensar que tivesse inspirado um tal sentimento.
Desesperado por não ver a realização dos sonhos provocados por suas leituras resolveu matar-se. Ontem, o porteiro da casa que o empregava encontrou-o sem vida num gabinete do terceiro andar, onde trabalhava sozinho. Enforcara-se numa corda que prendera numa viga com um enorme prego”.
As circunstâncias dessa morte, numa idade tão pouco avançada, deram a pensar que a evocação dessa criança poderia fornecer assunto para um ensino útil. Ela foi feita em sessão da Sociedade, ocorrida em 24 de janeiro último. (Médium: Sr. E. Vézy.)
Nesse fato há um difícil problema de moral, quase impossível de resolver pelos argumentos da filosofia ordinária e, ainda menos, da filosofia materialista. Pensam ter tudo explicado dizendo que era uma criança precoce. Mas isto não explica nada; é absolutamente como se dissessem que é dia, porque o Sol se levantou. De onde vem tal precocidade? Por que certas crianças ultrapassam a idade normal para o desenvolvimento das paixões e da inteligência? Eis uma das dificuldades contra as quais vêm se chocar todas as filosofias, porque suas soluções sempre deixam uma questão não resolvida e podemos sempre indagar o porquê do por quê. Admiti a preexistência da alma e o desenvolvimento anterior e tudo se explica da maneira mais natural. Com este princípio remontais à causa e à fonte de tudo.
1. [Ao guia espiritual do médium]. Poderíeis dizer-nos se podemos evocar o Espírito da criança a que nos referimos há pouco?
– Sim; eu o conduzirei, porque está sofrendo. Que a sua aparição em vosso meio sirva de exemplo e seja uma lição.
2. [A Maximiliano]. Tendes consciência de vossa situação?
 – Ainda não posso definir bem onde estou; há como que um véu sombrio à minha frente; falo, mas não sei como me ouvem e como falo. Contudo, já vejo aquilo que até a pouco era obscuro; sofria, mas desde agora me sinto aliviado.
3. Lembrai-vos bem das circunstâncias da vossa morte?
– Parecem muito vagas. Sei que me suicidara sem motivo. Entretanto, poeta numa outra encarnação, tinha uma espécie de intuição de minha vida passada; criava sonhos, quimeras; enfim, eu amava.
4. Como pudestes chegar a tal extremo?
– Acabo de responder.
5. É singular que uma criança de doze anos seja levada ao suicídio, sobretudo por um motivo como esse que vos impeliu.
– Sois extraordinários! Já não vos disse que, poeta numa outra encarnação, minhas faculdades tinham ficado mais amplas e mais desenvolvidas que nos outros? Oh! Ainda na noite em que me encontro agora vejo passar essa sílfide de meus sonhos na Terra, e é isto o castigo que Deus me inflige, de a ver bela e leviana como sempre, passar diante de mim e eu, ébrio de loucura e de amor, quero me atirar... Mas, ah! É como se estivesse preso a um anel de ferro... Chamo... Mas em vão; ela nem sequer vira a cabeça... Oh! Como sofro então!
6. Poderíeis descrever a sensação que experimentastes quando vos reconhecestes no mundo dos Espíritos?
– Oh! Sim, agora que estou em contato convosco. Meu corpo lá estava, inerte e frio e eu planava à sua volta; desfazia-me em lágrimas. Estais admirados das lágrimas de uma alma. Ah! Como são intensas e abrasadoras! Sim, eu chorava, porque acabava de reconhecer a enormidade de minha falta e a grandeza de Deus!... E, contudo, não tinha certeza de minha morte; pensava que meus olhos fossem abrir-se... Elvira! Chamava eu... Supondo vê-la... Ah! É que a amo desde muito tempo; amá-la-ei sempre... Que importa, se tiver de sofrer por toda a eternidade, se puder um dia possuí-la em outra encarnação!
7. Que sensação experimentais por estar aqui?
– Faz-me bem e mal ao mesmo tempo. Bem, porque sei que compartilhais de meu sofrimento; mal, porque, apesar de toda a vontade que tenho de vos agradar, aceitando as vossas preces, não posso, porque então deveria seguir um outro caminho, diferente daquele de meus sonhos.
8. Que podemos fazer que vos seja útil?
– Orar, visto que a prece é o orvalho divino que nos refresca o coração, a nós, pobres almas em pena e em sofrimento. Orar. No entanto, parece que se me arrancásseis do coração o próprio amor e o substituísseis pelo amor divino, então!... Não sei... Creio!... Vede! Neste instante eu choro... Pois bem!... Pois bem!... Orai por mim!
9. [Ao guia do médium]. Qual o grau de punição para este Espírito por se haver suicidado? Levando-se em conta sua idade, sua ação é tão condenável quanto a dos outros suicidas?
– A punição será terrível, porque foi mais culpado que os outros. Já possuía grandes faculdades: a força de amar a Deus de maneira poderosa e de fazer o bem. Os suicidas sofrem longos castigos e Deus pune ainda mais os que se matam com grandes ideias na mente e no coração.
10. Dissestes que a punição de Maximiliano V... Será terrível. Poderíeis dizer em que consistirá? Parece que ela já começou. Ser-lhe-á reservado mais do que já experimenta?
– Sem dúvida, pois sofre um fogo que o consome e o devora e que só cessará pelos esforços da prece e do arrependimento.

Observação – Sofre um fogo que o consome e o devora. Não está aí a imagem do fogo do inferno, que nos é apresentado como um fogo material?

11. Há possibilidade de ser atenuada a sua punição?
– Sim: orando-se por ele, principalmente se Maximiliano se unir às vossas preces.
12. O objeto de sua paixão compartilha de seus sentimentos? Estarão esses dois seres destinados a unir-se um dia? Quais as condições de sua união e quais os obstáculos que agora a impedem?
– Os poetas amam as mulheres da Terra? Eles o acreditam por um dia, uma hora. O que eles amam é o ideal, uma quimera criada por sua ardente imaginação; amor que não pode ser satisfeito senão por Deus. Todos os poetas têm uma ficção no coração – a beleza ideal que eles acreditam ver passar na Terra; e quando encontram uma bela menina, que jamais deverão possuir, então dizem que a realidade tomou o lugar do sonho. Mas, se tocarem a realidade, cairão das regiões etéreas na matéria e, não mais reconhecendo o ser que sonhavam, criam outras quimeras.
13. [A Maximiliano]. Desejamos ainda fazer algumas perguntas, que talvez contribuam para que vos sintais mais aliviado. Em que época vivestes como poeta? Tivestes um nome conhecido?
– No reinado de Luís XV. Eu era pobre e desconhecido; amava a uma mulher, um anjo que vi passar num parque, num dia de primavera. Depois, só a revi em sonhos, e meus sonhos prometiam que eu a possuiria um dia.
14. O nome Elvira nos parece muito romântico, o que nos leva a pensar que se trate de um ser imaginário.
– Sim; era uma mulher. Sei seu nome porque um cavaleiro que passava perto dela a chamou Elvira. Ah! Era bem a mulher que minha imaginação havia sonhado. Eu a vejo ainda, sempre bela e encantadora. Ela é capaz de me fazer esquecer a Deus para vê-la e segui-la ainda.
15. Sofreis e podeis sofrer ainda muito tempo. De vós depende abreviar os vossos tormentos.
– Que me faz o sofrimento! Não podeis avaliar o que é um desejo insatisfeito. Meus desejos serão carnais? E, no entanto, eles me queimam, e as pulsações do coração, ao pensar nela, são mais fortes do que seriam se pensasse em Deus.
16. Nós vos lamentamos profundamente. Para trabalhar pelo vosso progresso é necessário que vos torneis útil e penseis mais em Deus do que o tendes feito. É preciso que soliciteis uma reencarnação com o único objetivo de reparar os erros e a inutilidade de vossas últimas existências. Não se diz que deveis esquecer a Elvira, mas pensar um pouco menos nela e um pouco mais em Deus, que pode abreviar os vossos tormentos se fizerdes o que for necessário. Secundaremos vossos esforços pelas nossas preces.
– Obrigado! Orai e tratai de arrancar Elvira de meu coração. Talvez um dia eu vos agradeça por isto.




[1] Revista Espírita – “Conversas Familiares de Além-Túmulo” ‒ Maio/1862 – Allan Kardec

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