Marcus Vinicius de Azevedo
Braga
1. A visão
beligerante
O escritor argentino Eugenio
Raúl Zaffaroni[2],
no estudo do punitivismo com uma das facetas do Direito Penal, traz como uma
das ideias centrais de suas pesquisas que o poder punitivo se construiu na
sociedade moderna como uma forma de tratamento hostil para os seres humanos
enquadrados em determinadas situações, negando-lhes a condição de pessoa, seus
direitos fundamentais, legitimando para estes o tratamento estigmatizante,
segregador. Um inimigo do Estado, em uma visão polarizada do mundo, que produz
um estado de guerra permanente, que gera medo e coalizão, mas uma união de
trincheira.
Essa visão do inimigo que deve
ser perseguido e exterminado não figura apenas no Direito Penal punitivista,
mas também surge no histórico religioso do fenômeno da Inquisição, como sistema
jurídico canônico para combater a heresia, esta que seria capitaneada por uma
entidade sobrenatural causadora de todo o mal, que agiria por meio de ardis e
tentações.
Modelos tão antigos, mas tão
atuais.
Muito ódio permeia essas
abordagens de questões religiosas e sociais, e olhando mais amiúde a literatura
espírita sobre o fenômeno da desobsessão (a oficial e a controversa), sejam os
livros mais técnico-procedimentais, sejam as obras mais romanceadas, figura por
vezes, de forma sutil ou ostensiva, uma visão dos espíritos sofredores como
inimigos a serem combatidos e expulsos.
Um superdimensionamento
conspiratório das organizações dos desencarnados em sofrimento, que é uma visão
recorrente no Movimento Espírita, presente também nas falas e práticas, nas
quais as pessoas revelam síndromes de perseguição nas quais atribuem suas
mazelas aos obsessores, ou ainda, taxam de obsediado qualquer um que apresente
opinião divergente do status quo.
Esse discurso de medo, que
lembra as histórias de súcubos e de bruxas da Idade Média, ou ainda, lendas
escapistas como o Boto no Brasil amazônico, alimentam uma visão teológica de
medo e de delegação das responsabilidades individuais, com medidas saneadoras
no sentido de se combater esse inimigo, que ainda que chamado de irmão, é visto
não como alguém, mas como algo.
Alimentam-se, assim, paranoias,
que abrem espaços, inclusive, para que as pessoas sejam vítimas da extorsão por
médiuns interesseiros, ou ainda, para que se comportem como soldados de uma
guerra sem sentido, buscando estratégias para atacar esse suposto inimigo,
motivados no trabalho de assistência espiritual por fatores estranhos à
essência dessas atividades.
2. Quem é o inimigo?
Essa visão do inimigo do bem, do
espiritismo, da casa, ou seja, “meu” inimigo, surge então na prática da
desobsessão nas casas espíritas, constituindo mais um atavismo, uma importação
de paradigmas de tempos inquisitoriais, ou de outras denominações religiosas,
que tem como foco o exterior, um mal alienígena que precisa ser expulso, ou
exorcizado, e que devemos orar e vigiar, em um binômio que poderia ser
traduzido como temer e se proteger.
Essa abordagem não adentra nas
relações que suportam o processo da obsessão, as paixões, os compromissos
passados, e traz tudo para uma visão de uma eterna labuta entre o bem e o mal,
como se existissem dois poderes rivais no governo do mundo, e que devêssemos
nos posicionar em relação a estes, em uma visão oriunda de uma época em que o
homem se encontrava ainda incapaz de, pela razão, penetrar a essência do Ser
supremo[3].
Uma matriz desumanizada e que difere em muito da visão da Doutrina Espírita dos
atributos de Deus, e do nosso papel na evolução, como encarnados e como
desencarnados.
Aí ouvem-se os discursos de que
temos que estar atentos, pois querem derrubar o nosso trabalho. Narrativas
mirabolantes de tramas que são feitas na espiritualidade para destruir
reuniões, parecendo, por vezes, que em nossas residências estaríamos tranquilos
e que basta nos filiarmos a um trabalho, para sermos objeto de uma perseguição
desenfreada.
Terminamos assim por enxergar os
espíritos desencarnados não como seres em evolução, como nós, mas como inimigos
que precisam ser combatidos. E nesse desiderato, nos arvoramos como cruzados
nas lutas contra as forças do mal das falanges desencarnadas. Esquecemos nossa
natureza, que somos todos filhos de Deus, e preferimos o comodismo de um
pensamento maniqueísta que busca bons e maus absolutos, indicando apenas a quem
devemos combater. O mundo é mais complexo que isso.
Idealizamos heróis, vilões, e
aventuras fantásticas, nas quais queremos arregimentar um exército e clamamos
por união, motivados pelo medo do que poderá nos acontecer se não encararmos
esse inimigo de forma coesa, como em uma organização militar, na busca de uma
vitória de Pirro.
O espírito sofredor, agindo
individualmente ou por meio de alguma organização, é um agente motivado por
interesses, forças, desejos, paixões, como nós, e se busca agir contra casas e
trabalhos, vociferando e ameaçando, merece de nós uma postura mais refletida,
mais amena, para além de se colocar como inimigo em uma guerra, na qual não
devemos nos alistar.
3. Quem é você?
Nesse sentido, a pergunta é qual
o nosso papel nessa prática de lidar com obsessores e obsediados em nossas
reuniões mediúnicas? Se focarmos em ardis, escaramuças e ainda, na busca da
vitória que não virá, pois não é uma batalha, nos afogaremos nessa lógica de
buscar o inimigo, e de expulsá-lo ou exterminá-lo, em um paradigma antigo,
ainda que por vezes fantasiados por palavras doces e cândidas.
A atividade do dialogador,
outrora chamado equivocadamente de doutrinador, não é uma tertúlia racional na
qual se impõe a um contendor as nossas verdades, ou de uma doutrina.
Assemelha-se muito mais a um esclarecimento ou acolhimento, do que um duelo
verbal. Não resgatamos vítimas de obsessores, e sim buscamos atender espíritos
que estão irmanados em um sofrimento mútuo, aparentemente vestidos de algozes e
vítimas.
Não somos soldados. Somos
vetores do amor.
Não podemos patrocinar visões
incoerentes com a mensagem de amor do espiritismo, em propostas que fortaleçam
o medo, a exteriorização das mazelas, relembrando a lição de Kardec[4],
que indica que: “No tocante ao Espírito obsessor, por mau que ele seja, é
necessário tratá-lo com serenidade, mas ao mesmo tempo com benevolência,
vencendo-o pelo bom procedimento, orando por ele”, ensinando-nos que a forma de
vencer essa guerra é não vê-la como um confronto. Não nos cabe jogar querosene
nessas fogueiras, e sim, água!
O problema não são os espíritos
sofredores, magos das sombras, e as suas diversas formas de organização que
apimentam a nossa imaginação, e sim como encaramos nas atividades mediúnicas
essas interações. Agiremos da mesma forma de outrora, como uma guerra fluídica,
energética, verbal, ou entenderemos que a nossa abordagem é que deve ser
diferente, pautada no amor, no exemplo, e no conhecimento de forma instrumental
que ajude aquele irmão a romper aquele ciclo?
Por óbvio, que quando o espírito
se manifesta na psicofonia com ameaças e bravatas, é normal que tenhamos medo,
mas é preciso compreender a lógica da causa e efeito trazida pelo espiritismo,
e ainda, que nosso papel ali não é de guerreiro que combate o inimigo ali
trazido, devendo dar respostas à altura, mas sim de um irmão pelo qual a
espiritualidade instrumentaliza o atendimento aquele outro irmão em humanidade,
e ainda aproveita aquela interação para ensinar lições profundas a todos que
participam da reunião.
4. Conclusão
O livro “O Céu e o Inferno”, de Allan Kardec, uma obra pouco lida, citada e
estudada, trata mais do que da Justiça Divina, e sim da quebra dos paradigmas
da teologia cristã, mostrando que o espiritismo enxerga essas relações
metafísicas de outra forma, consoante com a visão de um Deus justo e bom, e
ainda, das vidas sucessivas.
O fracasso dessa quebra de
paradigmas se reflete em práticas e discursos, e no caso discutido aqui, em nossa
visão dos espíritos sofredores e da abordagem dada na interação com estes.
A visão do obsessor inimigo, que
quer nos derrubar, mascara pela sua polarização as relações de nossas reuniões,
nem tão perfeitas e ungidas assim, e desses espíritos, desorientados e que
sustentam ameaças para esconder as suas fraquezas.
Fiéis à essência do pensamento
espírita, enxerguemos o amor como remédio que cura doentes na atividade de
obsessão, e não antagonismos que partidarizam grupos, e superestimam nós e
eles, quando na verdade somos todos viajores dessa longa estrada chamada
evolução.
[2] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal.
Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. (Coleção
Pensamento Criminológico).
[3] KARDEC, Allan. O
céu e o inferno. [tradução de Manuel Justiniano Quintão]. 61. ed. 1. imp.
(Edição Histórica) – Brasília: FEB, 2013.
[4] KARDEC, Allan. O
Livro dos Médiuns. Tradução da 2ª. edição francesa por J. Herculano Pires.
São Paulo – LAKE, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário