Um Anjo da Guarda – Paris, 1863
Perguntais se é permitido
abrandar as vossas provas. Essa pergunta lembra estas outras: é permitido ao
que se afoga procurar salvar-se? E a quem espetou-se num espinho, retirá-lo? Ao
que está doente, chamar um médico?
As provas têm por fim exercitar
a inteligência, assim como a paciência e a resignação. Um homem pode nascer
numa posição penosa e difícil, precisamente para obrigá-lo a procurar os meios
de vencer as dificuldades.
Mérito consiste em suportar sem
murmurações as consequências dos males que não se podem evitar, em perseverar
na luta, em não se desesperar quando não se sai bem, e nunca em deixar as
coisas correrem, que seria antes preguiça que virtude.
Essa questão nos conduz
naturalmente a outra. Desde que Jesus disse: "Bem-aventurados os aflitos", há méritos em procurar as
aflições, agravando as provas por meio de sofrimentos voluntários? A isso
responderei muito claramente: sim, e um grande mérito, quando os sofrimentos e
as privações têm por fim o bem do próximo, porque se trata da caridade pelo
sacrifício; não, quando eles só têm por fim o bem próprio, porque se trata de
egoísmo pelo fanatismo.
Há uma grande distinção a fazer.
Quanto a vós, pessoalmente, contentai-vos com as provas que Deus vos manda, não
aumenteis a carga já por vezes bem pesada; aceitai-as sem queixas e com fé, eis
tudo o que Ele vos pede.
Não enfraqueçais o vosso corpo
com privações inúteis e macerações sem propósito, porque tendes necessidade de
todas as vossas forças, para cumprir vossa missão de trabalho na Terra.
Torturar voluntariamente, martirizar o vosso corpo, é infringir a lei de Deus,
que vos dá os meios de sustentá-lo e de fortalecê-lo. Debilitá-lo sem necessidade
é um verdadeiro suicídio. Usai, mas não abuseis: tal é a lei. O abuso das melhores
coisas traz as suas punições, pelas consequências inevitáveis.
Bem outra é a questão dos
sofrimentos que uma pessoa se impõe para aliviar o próximo. Se suportardes o
frio e a fome para agasalhar e alimentar aquele que necessita, e vosso corpo sofrer
com isso, eis um sacrifício que é abençoado por Deus.
Vós, que deixais vossos toucadores
perfumados para levar consolação aos aposentos infectos; que sujais vossas mãos
delicadas curando chagas; que vos privais do sono para velar à cabeceira de um
doente que é vosso irmão em Deus; vós enfim, que aplicais a vossa saúde na
prática das boas obras, tendes nisso o vosso cilício[2],
verdadeiro cilício de bênçãos, porque as alegrias do mundo não ressecaram o
vosso coração. Vós não adormecestes no seio das voluptuosidades enlanguescedoras
da fortuna, mas vos transformastes nos anjos consoladores dos pobres deserdados.
Mas vós que vos retirais do
mundo para evitar suas seduções e viver no isolamento, qual a vossa utilidade
na Terra? Onde está a vossa coragem nas provas, pois que fugis da luta e desertais
do combate? Se quiserdes um cilício, aplicai-o à vossa alma e não ao vosso corpo;
mortificai o vosso Espírito e não a vossa carne; fustigai-o vosso orgulho;
recebei as humilhações sem vos queixardes; machucai vosso amor-próprio;
insensibilizai-vos para a dor da injúria e da calúnia, mais pungente que a dor
física. Eis aí o verdadeiro cilício, cujas feridas vos serão contadas, porque
atestarão a vossa coragem, e a vossa submissão à vontade de Deus.
[1] O Evangelho
Segundo o Espiritismo – Capítulo V –
Bem Aventurados os Aflitos – Allan Kardec.
[2] Cilício era uma túnica, cinto ou cordão de crina, que se
trazia sobre a pele para mortificação ou penitência. Acessado em https://pt.wikipedia.org/wiki/Cil%C3%ADcio
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