sexta-feira, 16 de março de 2018

Valetudinários[1]



Rogério Coelho


Existem muito perto de nós idosos relegados aos asilos pelos próprios familiares. A sociedade, que deveria substituir a família, nesses casos, não tem tempo, pois os saraus, festas e quejandos não têm fim. E as mãos, que deveriam acariciar os cabelos brancos e as mãos encarquilhadas dessas criaturas excluídas e entregues ao abandono cruel, estão sempre ocupadas em fazer nada nos salões das inutilidades.
Quando essas atitudes partem de criaturas que ignoram as mais comezinhas nuanças da caridade é desculpável, mas quando pessoas que se dizem cristãs, têm tempo e disposição para as futilidades sociais e sempre encontram dificuldades em cumprir seus compromissos morais, aí a coisa é diferente.
A quem muito recebeu muito será exigido!
É bem verdade que, muitas vezes, tais criaturas se valem dos sofismas e subterfúgios para tentar enganar a própria consciência, alegando uma causa beneficente para o encontro social.   Ora, quem já está acordado para a vida e liberto das peias e atavismos do homem velho não precisa mais desses expedientes e jamais perderia o precioso tempo da reencarnação para longas horas de conversas jogadas fora.
O mais doloroso é constatar que, em salões de festas bem próximos de asilos, o bulício da festa e os risos fáceis são ouvidos quase em uníssono com o pranto dos valetudinários excluídos.
Dizem os Espíritos Superiores que[2] o forte deve trabalhar para o fraco. Não tendo este família, a sociedade deve fazer às vezes desta. É a lei de caridade.
Mesmo que os velhinhos sejam bem cuidados pelos profissionais remunerados para tal, isso não dispensa o trabalho voluntário do cristão comprometido com o Cristo em favor dos segregados.
Nós não sabemos como será o dia de amanhã.  Quem pode garantir que não terminaremos os nossos dias terrestres internados em um asilo?  E aí será a vez do nosso pranto ser abafado pelo riso fátuo dos frequentadores dos salões de festas.
Idosos descartados não faltam como exemplo para todos nós!
A primeira visita que fazemos a um asilo é sempre um choque, em decorrência dos quadros dolorosos que vamos presenciar. Ali vemos a materialização da dor física e moral. Por isso, quando acariciamos uma daquelas cabecinhas brancas e quando aquecemos entre as nossas aquelas mãos frias e trêmulas, tal gesto tem a força de um bálsamo que mitiga por algum tempo aqueles quadros de dores pungentes, inclusive as dores da Alma.
Em nenhum salão de festa teremos a alegria em nosso coração que temos ao lograrmos extrair um sorriso daquelas bocas desdentadas. É impagável ver transmudarem-se aquelas lágrimas de tristeza e solidão em lágrimas de alegria e gratidão a escorrerem por aqueles rostos sulcados pelos sofrimentos e pelo abandono…
Espíritas! Vamos acordar para a vida e optar pelos planos do Cristo conjugando esforços em favor da implantação do Reino de Deus na Terra, começando pela união e fraternidade, vez que o Espiritismo postula clara e insofismavelmente que Fora da caridade não há salvação.
Ficamos particularmente chocados e sensibilizados pela situação dos idosos porque tivemos a felicidade de nascer numa família que sabia cuidar dos seus até à morte.
Vendo e sentindo as tristes e angustiantes situações de carência afetiva desses pobres idosos, avaliamos a urgente e enorme tarefa que nós Espíritas, conhecedores da Lei de Causa e Efeito, necessitamos empreender no sentido de esclarecer as famílias que os abandonam em asilos.
Reflitamos, finalmente, no conteúdo da página escrita pelo ínclito Codificador do Espiritismo[3]: O mandamento: “Honrai a vosso pai e a vossa mãe” é um corolário da lei geral de caridade e de amor ao próximo, visto que não pode amar o seu próximo aquele que não ama a seu pai e a sua mãe; mas, o termo “honrai” encerra um dever a mais para com eles: o da piedade filial. Quis Deus mostrar por essa forma que ao amor se devem juntar o respeito, as atenções, a submissão e a condescendência, o que envolve a obrigação de cumprir-se para com eles, de modo ainda mais rigoroso, tudo o que a caridade ordena relativamente ao próximo em geral. Esse dever se estende naturalmente às pessoas que fazem as vezes de pai e de mãe, as quais tanto maior mérito têm, quanto menos obrigatório é para elas o devotamento. (…)
Honrar a seu pai e a sua mãe não consiste apenas em respeitá-los; é também assisti-los na necessidade; é proporcionar-lhes repouso na velhice; é cercá-los de cuidados como eles fizeram conosco, na infância.
Sobretudo para com os pais sem recursos é que se demonstra a verdadeira piedade filial.  Obedecem a esse mandamento os que julgam fazer grande coisa porque dão a seus pais o estritamente necessário para não morrerem de fome, enquanto eles de nada se privam, atirando-os para os cômodos mais ínfimos da casa, apenas por não os deixarem na rua, reservando para si o que há de melhor, de mais confortável? Ainda bem quando não o fazem de má-vontade e não os obrigam a comprar caro o que lhes resta a viver, descarregando sobre eles o peso do governo da casa! Será então aos pais velhos e fracos que cabe servir a filhos jovens e fortes? Ter-lhes-á a mãe vendido o leite, quando os amamentava? Contou porventura suas vigílias, quando eles estavam doentes, os passos que deram para lhes obter o de que necessitavam? Não, os filhos não devem a seus pais pobres só o estritamente necessário, devem-lhes também, na medida do que puderem, os pequenos nadas supérfluos, as solicitudes, os cuidados amáveis, que são apenas os juros do que receberam, o pagamento de uma dívida sagrada. Unicamente essa é a piedade filial grata a Deus.
Ai, pois, daquele que olvida o que deve aos que o ampararam em sua fraqueza, que com a vida material lhe deram a vida moral, que muitas vezes se impuseram duras privações para lhe garantir o bem-estar.  Ai do ingrato: será punido com a ingratidão e o abandono; será ferido nas suas mais caras afeições, “algumas vezes já na existência atual”, mas com certeza noutra, em que sofrerá o que houver feito aos outros.
(…) Se a lei da caridade manda se pague o mal com o bem, se seja indulgente para as imperfeições de outrem, se não diga mal do próximo, se lhe esqueçam e perdoem os agravos, se ame até os inimigos, quão maiores não hão de ser essas obrigações, em se tratando de filhos para com os pais! Devem, pois, os filhos tomar como regra de conduta para com seus pais todos os preceitos de Jesus concernentes ao próximo e ter presente que todo procedimento censurável, com relação aos estranhos, ainda mais censurável se torna relativamente aos pais; e que o que talvez não passe de simples falta, no primeiro caso, pode ser considerado um crime, no segundo, porque, aqui, à falta de caridade se junta a ingratidão.
Conclama Meimei, através da psicografia de Francisco Cândido Xavier, sob o título “Luzes do Entardecer”: Conserva contigo os companheiros idosos, com a alegria de quem recebeu da vida o honroso encargo de reter, junto do coração, as luzes remanescentes do próprio grupo familiar. Reflete naqueles que te preservaram a existência ainda frágil, nos panos do berço, nos que te equilibraram os passos primeiros, nos que te afagaram os sonhos da meninice e naqueles outros que te auxiliaram a pronunciar o nome de Deus.
Já que atravessaram o caminho de muitos janeiros, pensa no heroísmo silencioso com que te ensinam a valorizar os tesouros do tempo, nas dificuldades que terão vencido para serem quem são, no suor que lhes alterou as linhas da face e nas lágrimas que lhes alvejaram os cabelos.
E quando, porventura, te mostrem azedume ou desencanto, escuta-lhes a palavra com bondade e paciência… Não estarão, decerto, a ferir-te e sim provavelmente algo murmurando contra dolorosas recordações de ofensas recebidas, que trancam no peito, a fim de não complicarem os dias dos seres que lhes são especialmente queridos!
Ama e respeita os companheiros idosos! São eles as vigas que te escoram o teto da experiência e as bases de que hoje te levantas para seres quem és…
Auxilia-os, quanto puderes, porquanto é possível que, nos dias finais da tua existência humana, venhas igualmente a conhecer o brilho e a sombra que assinalam no mundo, a hora do entardecer.




[2] KARDEK, Allan . O livro dos Espíritos. 88ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. pt. 3, cap. III, q. 685a
[3] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 125ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. cap. XIV, item 3.

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