quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

NA VINHA DO SENHOR[1]


 

Instalado na casa modesta que seria, mais tarde, em Jerusalém, o primeiro santuário dos apóstolos, Simão Pedro refletia...
Recordava Jesus, em torno de quem havia sempre abençoado trabalho a fazer.
Queria ação, suspirava por tarefas a realizar e, por isso, orava com fervor.
Quanto mais ardentes se lhe derramavam as lágrimas, com as quais suplicava do céu a graça de servir, eis que o Mestre lhe surge à frente, tão compassivo e sereno como nos dias inolvidáveis em que se banhavam juntos na mesma luz das margens do Tiberíades...
Senhor! – implorou Simão – aspiro a estender-te as bênçãos gloriosas!... Deixei o lago para seguir-te! Disseste que nos farias pescadores de almas!... Quero testemunhar a divina missão do teu Evangelho de amor e luz!...
E porque o celeste visitante estivesse a fitá-lo em silêncio, Pedro acrescentou com a voz encharcada de pranto:
Quando enviarás teu serviço às nossas mãos?
Entreabriram-se de manso os lábios divinos e o apóstolo escutou, enquanto Jesus se fazia novamente invisível:
Amanhã... amanhã...
O antigo pescador, mais encorajado, esperou o dia seguinte.
Aguardando o mandato do Eterno Benfeitor, devotou-se à limpeza doméstica, desde o nascer do sol, enfeitando a sala singela com rosas orvalhadas do amanhecer.
Enlevado em doce expectativa, justamente quando se dispunha à refeição matutina, ensurdecedora algazarra atinge-lhe os ouvidos.
A porta singela, sob murros violentos, deixa passar um homem seminu, de angustiada expressão, enquanto lá fora bramem soldados e populares, sitiando o reduto.
O recém-chegado contempla Simão e roga-lhe socorro.
Tem lágrimas nos olhos e o coração lhe bate descompassado no peito.
O anfitrião reconhece-o.
É Joachaz, o malfeitor.
De longo tempo, vem sendo procurado pelos agentes da ordem.
Exasperado, Pedro responde, firme:
Socorrer-te por quê? Não passas de ladrão contumaz...
E, de ouvidos moucos à rogativa, convoca os varapaus, entregando o infeliz, que, de imediato, foi posto a ferros, a caminho do cárcere.
Satisfeito consigo mesmo, o apóstolo colocava a esperança na obra que seria concedido fazer, quando, logo após, perfumada liteira lhe entregou à presença triste mulher de faces maceradas a contrastarem com a seda custosa em que buscava luzir.
Pedro identificou-a. Era Júlia, linda grego-romana que em Jerusalém se fazia estranha flor de prazer.
Estava doente, cansada. Implorava remédio e roteiro espiritual.
O dono da casa, porém, gritou resoluto:
Aqui, não! O teu lugar é na praça pública, onde todos te possam lançar em rosto o desprezo e a ironia...
A infortunada criatura afastou-se, enxugando os olhos, e Pedro, contente de si próprio, continuou esperando a missão do dia.
Algo aflito, ao entardecer, notou que alguém batia, insistente, à porta.
Abriu, pressuroso, caindo-lhe aos pés o corpo inchado de Jarim, o bêbado sistemático, semiconsciente, pedia refúgio contra a malta de jovens cruéis que o apedrejavam.
Pedro não vacilou.
Borracho! Infame! – vociferou, revoltado – não ofendas o recinto do Mestre com o teu vômito!...
E, quase a pontapés, expulsou-o sem piedade.
Caiu a noite imensa sobre a cidade em extrema secura.
Desapontado, ao repetir as últimas preces, Simão meditava diante de tocha bruxuleante, quando o Mestre querido se destacou da névoa...
Ah! Senhor! – clamou Pedro, chorando – aguardei todo o dia, sem que me enviasses a prometida tarefa!...
Como não? – disse o Mestre, em tom de amargura. – Por três vezes roguei-te hoje cooperação sem que me ouvisses...
E ante a memória do companheiro que recordava e compreendia tardiamente, Jesus continuou:
De manhã, enviei-te Joachaz, desventurado irmão nosso mergulhado no crime, que o ajudasses a renovar a própria existência, mas devolveste-o à prisão... Depois do meio-dia, entreguei-te Júnia, pobre irmã dementada e doente, para que a medicasses e esclarecesses, em meu nome: contudo, condenaste-a ao vilipêndio e ao sarcasmo... À noitinha, mandei-te Jarim, desditoso companheiro que o vício ensandece; no entanto, arremeteste contra ele os próprios pés...
Senhor! – soluçou o apóstolo – grande é a minha ignorância e eu não sabia... Compadece-te de mim e ajuda-me com a tua orientação!...
Jesus afagou-lhe a cabeça trêmula e falou, generoso:
Pedro, quando quiseres ouvir-me, lembra-te de que o Evangelho tem a minha palavra...
Simão estendeu-lhe os braços, desejando retê-lo junto do coração, mas o Cristo Sublime como que se ocultava na sombra, escapando-lhe à afetuosa carícia...
Foi então que o ex-pescador de Cafarnaum, cambaleando, buscou os apontamentos que trazia consigo e, abrindo-os ao acaso, encontrou o Versículo 12, do Capítulo 9 das anotações de Mateus, em que o Mestre da Vida assevera, convincente:
‒ “Os sãos não precisam de médico, mas sim os doentes”.




[1] Contos desta e doutra vida – Irmão X / Francisco C. Xavier

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