terça-feira, 28 de novembro de 2017

O Anjo da Cólera[1]

 

Um de nossos correspondentes de Varsóvia escreve-nos o seguinte:
“... Ouso reclamar vossa atenção para um fato de tal forma extraordinário que seria preciso colocá-lo na categoria do absurdo, se o caráter da pessoa que me relatou não fosse uma garantia de sua realidade. Todos nós, que do Espiritismo conhecemos tudo quanto foi tratado por vós tão judiciosamente – o que significa que julgamos compreendê-lo bem – não encontramos explicação para este fato; desse modo, entrego-o à vossa apreciação, rogando me perdoeis o tempo que vos faço perder para lê-lo, caso não o julgueis digno de um exame mais sério.
Eis do que se trata:
A pessoa de quem falei acima estava, em 1852, em Wilna, cidade da Lituânia, na época assolada pela cólera. Sua filha, encantadora menina de doze anos, era dotada de todas as qualidades que constituem as naturezas superiores. Desde a mais tenra idade, fez-se notar por uma inteligência excepcional, uma bondade de coração e uma candura verdadeiramente angélicas. Em nossa região ela foi uma das primeiras a gozar da faculdade mediúnica, sempre assistida por Espíritos de ordem bastante elevada. Muitas vezes, e sem ser sonâmbula, tinha pressentimento do que ia acontecer, e o predizia sempre com justeza. Estas informações não me parecem inúteis para julgar de sua sinceridade.
Certa noite, tão logo as velas acabavam de ser apagadas, a garota, ainda completamente desperta, viu erguer-se diante de seu leito a figura lívida e sangrenta de uma velha, cuja simples visão a fez estremecer. A mulher aproximou-se do leito da menina e lhe disse: Sou a cólera, e venho pedir-te um beijo; se me beijares, voltarei aos lugares que deixei e a cidade ficará livre da minha presença.
A heroica menina não recuou diante do sacrifício: colou os lábios sobre o rosto gelado e úmido da velha e a visão – se era visão – desapareceu. Apavorada, a criança não se acalmou senão ao colo do pai, que, embora nada compreendendo do caso, estava, no entanto, convencido de que a filha havia dito a verdade; mas não falaram a ninguém. Por volta do meio-dia receberam a visita de um médico, amigo da família: Venho trazer-vos uma boa notícia – disse ele ‒; esta noite nenhum doente foi encaminhado ao hospital dos coléricos, que acabo de visitar. E, com efeito, desde esse dia a cólera deixou de ceifar.
Cerca de três anos mais tarde, essa pessoa e sua família fizeram outra viagem à mesma cidade. Durante sua estada a cólera reapareceu e as vítimas já eram contadas por centenas, quando uma noite a mesma velha apareceu junto ao leito da menina, sempre perfeitamente desperta, e lhe fez o mesmo pedido, acrescentando que, se sua prece fosse atendida, dessa vez deixaria a cidade para nunca mais voltar. Como da primeira vez, a jovem não recuou. Logo viu abrir-se um sepulcro e se fechar sobre a mulher. A cólera acalmou-se como que por milagre, não tendo sido do meu conhecimento que haja reaparecido em Wilna. Era uma alucinação ou uma visão real? Ignoro-o. Tudo quanto posso garantir é que não posso duvidar da sinceridade da mocinha e de seus pais”.
 
Realmente, o fato é muito singular. Os incrédulos não deixarão de dizer que é uma alucinação; mas, provavelmente, ser-lhes-ia mais difícil explicar esta coincidência com um fato material, que nada podia deixar prever.
Uma primeira vez isto poderia ser levado à conta do acaso, essa maneira tão cômoda de passar sobre aquilo que não se compreende. Mas em duas ocasiões diferentes, em condições idênticas, era mais extraordinário. Admitindo o fato da aparição, restava saber o que era essa mulher. Era realmente o anjo exterminador da cólera? Estariam os flagelos personificados em certos Espíritos, encarregados de provocá-los ou de fazê-los cessar? Podia-se crer, vendo este desaparecer pela vontade dessa mulher? Mas, então, por que se dirigia ela àquela garota, estranha à cidade, e de que maneira um beijo desta podia ter tal influência?
Embora o Espiritismo já nos tenha dado a chave de muitas coisas, ainda não disse a última palavra; no caso de que se trata, a última hipótese nada tinha de positivamente absurda. Confessamos que, inicialmente, nós nos inclinávamos para este lado, não vendo no fato o caráter da verdadeira alucinação. Algumas palavras dos Espíritos vieram derrubar a nossa suposição. Eis a explicação, muito simples e muito lógica, dada por São Luís, na sessão da Sociedade, em 19 de abril de 1861.
– O fato que acaba de ser relatado parece muito autêntico. A propósito, gostaríamos de obter algumas explicações. Primeiramente poderíeis dizer quem é essa mulher que apareceu à menina e disse ser a cólera?
Não era a cólera; um flagelo material não reveste a aparência humana. Era um Espírito familiar da menina, que assim experimentava sua fé, fazendo coincidir esta prova com o fim do flagelo. Essa prova era salutar à criança que a sofria; idealizando-as, fortalecia as virtudes em germes nesse ser protegido e abençoado. As naturezas de escol, as que, vindo ao mundo, trazem a lembrança dos bens adquiridos, muitas vezes recebem essas advertências, que seriam perigosas para uma alma não depurada e não preparada, pelas migrações anteriores, aos grandes devotamentos do amor e da fé.
– O Espírito familiar dessa jovem tinha bastante poder para prever o futuro e o fim do flagelo?
Os Espíritos são os instrumentos da vontade divina e, muitas vezes, elevados à altura dos mensageiros celestes.
– Os Espíritos não têm nenhuma ação sobre os flagelos, como agentes produtores?
Eles não têm absolutamente nada com isto, assim como as árvores com o vento e os efeitos com as causas.
 
Na previsão de respostas conformes ao nosso primeiro pensamento, tínhamos preparado uma séria de perguntas que, em consequência, se tornaram inúteis. Isto prova uma vez mais que os médiuns não são o reflexo do pensamento de quem interroga. Não obstante, devemos dizer que a respeito não tínhamos nenhuma opinião prévia. Em falta de outra melhor, inclinávamos para a que havíamos emitido, porque não nos parecia impossível. Contudo, sendo mais simples e mais racional a explicação dada pelo Espírito, nós a julgamos infinitamente preferível.
Aliás, pode-se tirar do fato outra instrução. O que aconteceu àquela mocinha deve ter-se produzido em outras circunstâncias e, mesmo na Antiguidade, desde que os fenômenos espíritas são de todos os tempos. Não seria uma das causas que levaram os Antigos a personificar e a ver em cada coisa um gênio particular? Não pensamos que seja preciso buscar-lhe a causa apenas no gênio poético, uma vez que se veem essas ideias em povos menos avançados.
Suponhamos que um fato semelhante a esse que relatamos se tivesse produzido num povo supersticioso e bárbaro; não era preciso mais para acreditar na ideia de uma divindade malfazeja, que não se podia apaziguar senão lhe sacrificando vítimas. Como já dissemos, todos os deuses do paganismo não têm outra origem senão as manifestações espíritas. O Cristianismo veio derrubar os seus altares, mas ao Espiritismo estava reservado dar a conhecer a sua verdadeira natureza e lançar a luz sobre os fenômenos desnaturados pela superstição, ou explorados pela cupidez.




[1] Revista Espírita – Maio/1861 – Allan Kardec

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