Um de nossos correspondentes de Varsóvia escreve-nos o
seguinte:
“... Ouso reclamar vossa atenção para um fato de tal forma
extraordinário que seria preciso colocá-lo na categoria do absurdo, se o
caráter da pessoa que me relatou não fosse uma garantia de sua realidade. Todos
nós, que do Espiritismo conhecemos tudo quanto foi tratado por vós tão
judiciosamente – o que significa que julgamos compreendê-lo bem – não encontramos
explicação para este fato; desse modo, entrego-o à vossa apreciação, rogando me
perdoeis o tempo que vos faço perder para lê-lo, caso não o julgueis digno de
um exame mais sério.
Eis do que se trata:
A pessoa de quem falei acima estava, em 1852, em Wilna,
cidade da Lituânia, na época assolada pela cólera. Sua filha, encantadora
menina de doze anos, era dotada de todas as qualidades que constituem as
naturezas superiores. Desde a mais tenra idade, fez-se notar por uma
inteligência excepcional, uma bondade de coração e uma candura verdadeiramente
angélicas. Em nossa região ela foi uma das primeiras a gozar da faculdade mediúnica,
sempre assistida por Espíritos de ordem bastante elevada. Muitas vezes, e sem
ser sonâmbula, tinha pressentimento do que ia acontecer, e o predizia sempre
com justeza. Estas informações não me parecem inúteis para julgar de sua
sinceridade.
Certa noite, tão logo as velas acabavam de ser apagadas, a
garota, ainda completamente desperta, viu erguer-se diante de seu leito a figura
lívida e sangrenta de uma velha, cuja simples visão a fez estremecer. A mulher
aproximou-se do leito da menina e lhe disse: Sou a cólera, e venho pedir-te um beijo; se me beijares, voltarei aos lugares
que deixei e a cidade ficará livre da minha presença.
A heroica menina não recuou diante do sacrifício: colou os
lábios sobre o rosto gelado e úmido da velha e a visão – se era visão – desapareceu.
Apavorada, a criança não se acalmou senão ao colo do pai, que, embora nada
compreendendo do caso, estava, no entanto, convencido de que a filha havia dito
a verdade; mas não falaram a ninguém. Por volta do meio-dia receberam a visita
de um médico, amigo da família: Venho
trazer-vos uma boa notícia – disse ele ‒; esta noite nenhum doente foi encaminhado ao hospital dos coléricos, que
acabo de visitar. E, com efeito, desde esse dia a cólera deixou de ceifar.
Cerca de três anos mais tarde, essa pessoa e sua família fizeram
outra viagem à mesma cidade. Durante sua estada a cólera reapareceu e as
vítimas já eram contadas por centenas, quando uma noite a mesma velha apareceu
junto ao leito da menina, sempre perfeitamente desperta, e lhe fez o mesmo
pedido, acrescentando que, se sua prece fosse atendida, dessa vez deixaria a
cidade para nunca mais voltar. Como da primeira vez, a jovem não recuou. Logo viu
abrir-se um sepulcro e se fechar sobre a mulher. A cólera acalmou-se como que
por milagre, não tendo sido do meu conhecimento que haja reaparecido em Wilna.
Era uma alucinação ou uma visão real? Ignoro-o. Tudo quanto posso garantir é
que não posso duvidar da sinceridade da mocinha e de seus pais”.
Realmente, o fato é muito
singular. Os incrédulos não deixarão de dizer que é uma alucinação; mas,
provavelmente, ser-lhes-ia mais difícil explicar esta coincidência com um fato
material, que nada podia deixar prever.
Uma primeira vez isto poderia
ser levado à conta do acaso, essa maneira tão cômoda de passar sobre aquilo que
não se compreende. Mas em duas ocasiões diferentes, em condições idênticas, era
mais extraordinário. Admitindo o fato da aparição, restava saber o que era essa
mulher. Era realmente o anjo exterminador da cólera? Estariam os flagelos
personificados em certos Espíritos, encarregados de provocá-los ou de fazê-los cessar?
Podia-se crer, vendo este desaparecer pela vontade dessa mulher? Mas, então,
por que se dirigia ela àquela garota, estranha à cidade, e de que maneira um
beijo desta podia ter tal influência?
Embora o Espiritismo já nos
tenha dado a chave de muitas coisas, ainda não disse a última palavra; no caso
de que se trata, a última hipótese nada tinha de positivamente absurda.
Confessamos que, inicialmente, nós nos inclinávamos para este lado, não vendo
no fato o caráter da verdadeira alucinação. Algumas palavras dos Espíritos
vieram derrubar a nossa suposição. Eis a explicação, muito simples e muito
lógica, dada por São Luís, na sessão da Sociedade, em 19 de abril de 1861.
– O fato que acaba de ser relatado parece muito autêntico.
A propósito, gostaríamos de obter algumas explicações. Primeiramente poderíeis
dizer quem é essa mulher que apareceu à menina e disse ser a cólera?
– Não era a cólera;
um flagelo material não reveste a aparência humana. Era um Espírito familiar da
menina, que assim experimentava sua fé, fazendo coincidir esta prova com o fim do
flagelo. Essa prova era salutar à criança que a sofria; idealizando-as, fortalecia
as virtudes em germes nesse ser protegido e abençoado. As naturezas de escol,
as que, vindo ao mundo, trazem a lembrança dos bens adquiridos, muitas vezes
recebem essas advertências, que seriam perigosas para uma alma não depurada e não
preparada, pelas migrações anteriores, aos grandes devotamentos do amor e da
fé.
– O Espírito familiar dessa jovem tinha bastante poder
para prever o futuro e o fim do flagelo?
– Os Espíritos são
os instrumentos da vontade divina e, muitas vezes, elevados à altura dos
mensageiros celestes.
– Os Espíritos não têm nenhuma ação sobre os flagelos,
como agentes produtores?
– Eles não têm
absolutamente nada com isto, assim como as árvores com o vento e os efeitos com
as causas.
Na previsão de respostas
conformes ao nosso primeiro pensamento, tínhamos preparado uma séria de
perguntas que, em consequência, se tornaram inúteis. Isto prova uma vez mais
que os médiuns não são o reflexo do pensamento de quem interroga. Não obstante,
devemos dizer que a respeito não tínhamos nenhuma opinião prévia. Em falta de
outra melhor, inclinávamos para a que havíamos emitido, porque não nos parecia
impossível. Contudo, sendo mais simples e mais racional a explicação dada pelo
Espírito, nós a julgamos infinitamente preferível.
Aliás, pode-se tirar do fato outra
instrução. O que aconteceu àquela mocinha deve ter-se produzido em outras circunstâncias
e, mesmo na Antiguidade, desde que os fenômenos espíritas são de todos os
tempos. Não seria uma das causas que levaram os Antigos a personificar e a ver
em cada coisa um gênio particular? Não pensamos que seja preciso buscar-lhe a
causa apenas no gênio poético, uma vez que se veem essas ideias em povos menos
avançados.
Suponhamos que um fato
semelhante a esse que relatamos se tivesse produzido num povo supersticioso e
bárbaro; não era preciso mais para acreditar na ideia de uma divindade malfazeja,
que não se podia apaziguar senão lhe sacrificando vítimas. Como já dissemos,
todos os deuses do paganismo não têm outra origem senão as manifestações
espíritas. O Cristianismo veio derrubar os seus altares, mas ao Espiritismo
estava reservado dar a conhecer a sua verdadeira natureza e lançar a luz sobre
os fenômenos desnaturados pela superstição, ou explorados pela cupidez.
[1] Revista Espírita – Maio/1861 – Allan Kardec
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