quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A MEADA[1]


 
Irmão X

 
‒ A conversação entre as duas jovens senhoras se desenvolvia no ônibus.
‒ Você não pode imaginar o meu amor por ele...
‒ Não posso concordar com você.
‒ Decerto que não me entende.
‒ Mas, Dulce, você chega a querer o Dionísio, tanto quanto ao marido?
‒ Não tanto, mas não consigo passar sem os dois.
‒ Meu Deus! Isso é coisa de casal sem filhos!...
‒ É possível...
‒ Você não acha isso estranho, inadmissível?
‒ Acho natural.
‒ Noto você demasiadamente apegada, não é justo...
‒ Sei que você não me compreende...
‒ Simplesmente não concordo.
‒ Mas Dionísio...
‒ Isso é uma psicose...
Dona Dulce e a amiga, no entanto, ignoravam que Dona Lequinha, vizinha de ambas, sentara-se perto e estava de ouvido atento, sem perder palavra.
De parada em parada. Cada uma volveu ao lar suburbano, mas Dona Lequinha, ao chegar em casa, começou a fantasiar... Bem que notara Dona Dulce acompanhada por um moço ao tomar o elétrico, aliás, pessoa de cativante presença.
Recordava-lhe as palavras derradeiras:
‒ Vá tranquila, amanhã telefonarei...
Cabeça quente, vasculhando novidades no ar, aguardou o esposo, colega de serviço do marido de Dona Dulce, e tão logo à mesa, a sós com ele para o jantar, surgiu novo diálogo:
‒ Você não imagina o que vi hoje...
‒ Diga, mulher...
‒ Dona Dulce, calcule você!... Dona Dulce, que sempre nos pareceu uma santa, está de aventuras...
‒ O quê?!...
‒ Vi com meus olhos... Um rapazão a seguia mostrando gestos de apaixonado e, por fim, no ônibus, ela própria se confessou a Dona Cecília... Chegou a dizer que não consegue viver sem o marido e sem o outro... Uma calamidade!
‒ Ah! Mas isso não fica assim, não! Júlio é meu colega e Júlio vai saber!...
A conversa transitou através de comentários escusos e, no dia imediato, pela manhã, na oficina, o amigo ouve do amigo o desabafo em tom sigiloso:
‒ Júlio, você me entende... Somos companheiros e não posso enganá-lo... O que vou dizer representa um sacrifício para mim, mas falo para seu bem... Seu nome é limpo demais para ser desrespeitado, como estou vendo... Não posso ficar calado por mais tempo...
‒ Sua mulher...
E o esposo escutou a denúncia, longamente cochichada, qual se lhe enterrassem afiada lâmina no peito.
Agradeceu, pálido...
Em seguida, pediu licença ao chefe para ir a casa, alegando um pretexto qualquer. No fundo, porém, ansiava por um entendimento com a esposa, aconselhá-la, saber o que havia de certo.
Deixou o serviço, no rumo do lar e, aí chegando, penetrou a sala, agoniado...
Estacou, de improviso.
A companheira falava, despreocupadamente, ao telefone, no quarto de dormir:
‒ Ah! Sim!... Não há problema. Hoje mesmo. Às três horas... Meu marido não pode saber.
Júlio retrocedeu, à maneira de cão espantado. Sob enorme excitação, tornou à rua. Logo após, notificou na oficina que se achava doente e pretendia medicar-se. Retornou a casa e tentou o almoço, em companhia da mulher que, em vão, procurou fazê-lo sorrir.
Acabrunhado, voltou a perambular pelas vias públicas e, poucos minutos depois das três da tarde, entrou sutilmente no lar... Aflito, mentalmente descontrolado, entreabriu devagarinho a porta do quarto e viu, agora positivamente aterrado, um rapaz em mangas de camisa, a inclinar-se sobre o seu próprio leito. De imaginação envenenada, concebeu a pior interpretação...
O pobre operário recusou em delírio e, à noite, foi encontrado morto num pequeno galpão dos fundos. Enforcara-se em desespero...
Só então, ao choro de Dona Dulce, o mexerico foi destrinçado.
Dionísio era apenas o belo gatinho angorá que a desolada senhora criava com estimação imensa; o moço que a seguira até o ônibus era o veterinário, a cujos cuidados profissionais confiara ela o animal doente; o telefonema era baseado na encomenda que Dona Dulce fizera de um colchão de molas, ao gosto moderno, para uma afetuosa surpresa ao marido, e o rapaz que se achava no aposento íntimo do casal era, nem mais nem menos, o empregado da casa de móveis que viera ajustar o colchão referido ao leito de grandes proporções.
A tragédia, porém, estava consumada e Dona Lequinha, diante do suicida exposto à visitação, comentou, baixinho, para a amiga de lado:
‒ Que homem precipitado! Morrer por uma bobagem! A gente fala certas coisas, só por falar!




[1] Estante da Vida – Francisco C. Xavier / Irmão X

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