Irmão X
Indaga você das razões que
induzem o Divino Poder a conservar uma pobre jovem, vestida de chagas, num
catre humilde, relegada à assistência pública. E acrescenta: "Por que
motivo expor uma infeliz menina a semelhante flagelação? Não haverá
misericórdia para os seres que se arrastam na pobreza, quando há tantos sinais
de socorro celeste, na casa dos felizes, aquinhoados pelo conhecimento superior
e pela mesa farta"?
Não fora a reencarnação, chave
do crescimento espiritual e do soerguimento redentor para todas as esferas da
vida terrestre, e as suas perguntas seriam realmente irrespondíveis.
Entretanto, meu amigo, a
existência humana, em seus fundamentos, obedece aos comezinhos princípios de
lógica e harmonia que prevalecem na sementeira vulgar. Enquanto não cultivarmos
a gleba planetária, em toda a sua extensão, seremos defrontados pela terra desventurada,
aqui ou ali, povoada de serpentes traiçoeiras ou vitimada por imensas feridas de
erosão. Se não plantamos com acerto, não colheremos irrepreensivelmente, e, se
nos despreocupamos da vegetação daninha ou inútil, viveremos incomodados pelos
cipoais e pelos espinheiros de toda sorte.
Espanta-se você, ante a dor, mas
não se reporta aos débitos contraídos. Vê a cinza e não recorda o incêndio que
a produziu.
Em matéria de compromissos não
resgatados e de sofrimentos que os seguem, somos surpreendidos pelos
remanescentes de nossos velhos delitos, à maneira do crente em desespero,
constrangido a recolher os pedaços dos próprios ídolos, que o tempo esfacelou em
sua marcha invariável.
É a Lei que se cumpre,
harmoniosa e calma. E não me diga que há desequilíbrios nos processos em que
funciona, porque, na atualidade do mundo, temos a considerar a questão da
"massa" e o problema do "resíduo".
A evolução garante novos
panoramas ao direito, mas ainda explodem guerras pela hegemonia da força; a
ciência resolveu os enigmas da alimentação, entretanto, ainda há quem morre de
fome pelas úlceras do duodeno; a liberdade triunfou sobre a escravidão, contudo,
ainda existem milhões de encarcerados na superfície da Terra, e, se é
indubitável que o duelo e o envenenamento fugiram dos costumes tribais nos
povos mais cultos, as mortes violentas e deploráveis continuam, aos milhares
por ano, na própria engrenagem da maquinaria do progresso.
Tenho reencontrado amigos de
outras eras que, endividados perante os tribunais da justiça Divina pelas
fogueiras que atearam no passado às vítimas do seu desafeto, padecem hoje o "fogo
selvagem" na intimidade da organização fisiológica, em que retornaram à
experiência física, porque a vanguarda moral do mundo não mais tolera a
perseguição religiosa ou a desvairada tirania política, e tenho desfrutado a
reaproximação com inolvidáveis companheiros do pretérito que, habituados a
dilacerar a carne dos adversários, pelo simples prazer de ferir, contemplam,
agora, a ruína do próprio corpo, nas aflitivas amarguras de leprosários e
sanatórios.
A fogueira que extingue a dívida
chama-se hoje "pênfigo foliáceo", e o golpe de ontem, sangrando os
que sangraram, é conhecido por "bacilo de Hansen".
No fundo, porém, meu amigo, tudo
é reajuste benéfico.
Imagine a vida na Terra como
sendo um manancial imenso, de cujos bordos se derramam correntes cristalinas em
todas as direções: é a "massa" progredindo, valorosa, na direção de sublimes
horizontes.
E pensemos em nós, indivíduos
arraigados ainda ao mal, como sendo o lodo das margens ou a lama do fundo: é o
"resíduo" estacionário, sofrendo a necessidade de grandes transformações.
Semelhante quadro fornece pálida
notícia da verdade.
Assim sendo, que Deus nos
fortaleça e abençoe no caminho da purificação.
[1] Cartas e
Crônicas – Francisco C. Xavier
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