Humberto de Campos
Os pais de Isolina Faria
aproximaram-se do grupo espiritista, ansiosos de curar a filha.
Desde muito, vivia a jovem sob o
império de singulares manifestações. Olhos cerrados a denunciar profunda
insensibilidade na expressão fisionômica, gestos rudes, Isolina contorcia-se estranhamente
e dava guarida a uma entidade ignorante e sofredora, que a tornava possessa. O Espírito
perturbado, que parecia ter-se-lhe agarrado, prorrompia então em blasfêmias,
lágrimas, soluços. Lastimava-se, praguejava, acusando pessoas e envenenando
circunstâncias, qual louco que força alguma conseguia deter. Esgotados os
recursos comuns, a família deliberou apelar para o Espiritismo, antes de
qualquer providência para interná-la no manicômio. Vizinhos e amigos não
poupavam definições. Aquilo deveria ser obsessão cruel. Tanta gente não se
havia curado, em trabalhos da consoladora doutrina dos Espíritos? Por que não
tentar as melhoras de Isolina mediante esses recursos? Quando o chefe da casa
se inclinou à decisão, o generoso Nolasco Borges, velho conhecido de infância,
prontificou-se aos serviços iniciais.
– Sossegue, meu amigo, esclareceu ao companheiro inquieto, em nossas reuniões a doente encontrará as melhoras
precisas. Hoje mesmo começaremos os trabalhos de doutrinação da infeliz e, a
breve tempo, Isolina será restituída à saúde e à alegria a que sua mocidade tem
direito.
De fato, na noite imediata,
pequena caravana, Nolasco à frente, penetrava o modesto salão dos Pachecos,
onde se efetuavam sessões íntimas.
O velho Araújo, doutrinador
carinhoso e esclarecido, organizou a reduzida assembleia, cônscio da
responsabilidade que lhe cabia.
Logo após a oração de abertura,
a moça doente caía em contorções estranhas. Palidíssima, boca espumejante,
gritava dolorosamente, reproduzindo emoções da entidade desconhecida.
– Oh! Meu irmão, exortava Araújo bondosamente, por que violentas desta maneira uma pobre criança, necessitada de
equilíbrio para atender aos próprios deveres? Por quem és, meu amigo, esquece o
mal e ouve a lição de Jesus. Estamos aqui votados à prática do bem. Somos
imperfeitos, inferiores. Tateamos nas sombras da ignorância e não te desejamos
impor ensinamentos. Sabemos que a obra de redenção final pertence ao Mestre
Divino; entretanto, creio que podemos advertir teu coração, pois aqueles que
caíram como nós outros, neste mundo, estão habilitados a comentar os próprios
males e evitar que outros incidam nos mesmos erros. Por vezes, poderá parecer
que somos excessivamente ousados, tentando estabelecer normas aos que vivem em
esfera indevassável aos nossos olhos; contudo, este esforço obedece ao amor
fraternal que Jesus abençoa. Volta, amigo! Abandona a tarefa ingrata de
subjugarão desta jovem, que deve enriquecer-se com as experiências da vida
terrestre. Solicitamos tua boa-vontade, por amor de Deus!...
A voz do amoroso doutrinador
silenciara-se ligeiramente. Araújo, emotivo e bondoso, enxugava os olhos
úmidos, enquanto a reduzida assistência permanecia sob enorme impressão. O
Espírito ignorante demonstrava aflição. A palavra do doutrinador tocara-o
profundamente, mas, como se estivesse preso a inflexíveis algemas, soluçava
mais fortemente e bradava:
– Ai de mim! Não posso!... Não posso!...
– Não podes? Tornava Araújo, dedicado, quando temos vontade, Jesus nos confere o poder.
Anima-te. Por que perseverar no sofrimento do mal, quando o bem nos
oferta alegrias eternas? Levantemo-nos para Deus, edificando-nos na própria
fraqueza. Se guardas reminiscências amargas, esconde-as de ti, desfaze-te do
vinagre acumulado no coração. Se foste ofendido, perdoa! Se as feridas te
reclamam vingança, aplica-lhes o bálsamo do amor que sabe viver da esperança em
Cristo.
O corpo frágil da jovem
contorcia-se violentamente, ao passo que o sofredor murmurava em pranto:
– Sou infame, desventurado! Não posso... Não posso...
As reuniões de esclarecimento
prosseguiam sem alteração. Duas vezes por semana, agrupavam-se os companheiros,
repetindo-se as mesmas cenas.
Araújo não podia ser mais
paciente. Ensinava bondosamente, como quem sabe corrigir amando.
A entidade perturbadora, porém,
não correspondia ao esforço senão com gritos, protestos e soluços de causar dó.
Decorridos alguns meses, a pequena
assembleia começou a impacientar-se. Tão logo se manifestava o infeliz,
formavam-se pensamentos contrários à simpatia fraternal. Na opinião da maioria,
aquele Espírito requisitava punições e conselhos ásperos. Isolina era tida como
vitima infortunada nas mãos de audacioso algoz da esfera invisível. Admirava-se
a paciência do dedicado orientador das sessões, que punha em jogo todos os
recursos afetivos.
Nolasco, porém, a certa altura
da tarefa, não se conteve, e, depois de tumultuosa reunião, interpelou Araújo
amigavelmente:
– Não julga você necessário e conveniente punir esse perseguidor
implacável? Creio tratar-se de perverso bandido das trevas.
O velho doutrinador percebeu as
dúvidas que pairavam no ambiente geral e acrescentou:
– Há muito, venho lidando por compreender que cada coisa permanece no
lugar que lhe é próprio. Em nossa apreciação fragmentária, o perturbador de
Isolina é um Espírito diabólico; entretanto, é imprescindível não esquecer que
as nossas definições são incompletas. Há oito meses trabalhamos para lhe
levantar as energias, sem resultados satisfatórios. À primeira vista, estamos
fracassados no serviço de socorro espiritual; mas, como firmar nosso ponto de
vista neste sentido, se desconhecemos as causas profundas?
Nolasco e os demais companheiros
respeitaram-lhe o parecer, mantendo-se em silêncio expressivo.
– Esgotadas nossas possibilidades de compreensão, prosseguiu o
amorável velhinho, não será justo apelar
para o Plano Superior? Nós que desejamos socorrer, precisamos igualmente ser
socorridos. Peçamos a Melânio, amoroso guia de nossos trabalhos, que se
pronuncie. É possível que a sua bondade fraterna nos conceda a chave do enigma.
Ninguém discordou da criteriosa
sugestão.
Na noite seguinte, a reunião em
casa dos Pachecos foi mais íntima. Acorreu Melânio gentilmente e, depois de
recomendar a cessação temporária dos trabalhos de doutrinação, prometeu chamar o
obsessor a esclarecimentos. Examinaria o caso com atenção, a fim de tentar
providências justas. Em seguida, voltaria a notificar os irmãos relativamente
às tarefas que se impunham.
Dias decorreram antes que o
emissário regressasse com as instruções espirituais. Após três semanas de
expectativa, em sessão comum do agrupamento, eis que Melânio se manifesta, e, depois
das carinhosas saudações usuais, discorre, bondosamente, com surpresa geral:
– Quanto ao caso da irmã Isolina Faria, devo esclarecer preliminarmente
que os aprendizes da Terra conhecem a obsessão somente em sentido unilateral. O
infeliz perturbador, que atende pelo nome de Juliano Portela, de sua última
existência terrena, não foi encontrado facilmente. Precisei reunir-me a
companheiros da Espiritualidade, a fim de chamá-lo a explicações diretas.
Tendes, nas vossas sessões, a presença do enfermo encarnado, ao passo
que, nas nossas, examinamos os doentes invisíveis a vós outros. Entreguei-me à
solução do assunto, com a maior boa-vontade; entretanto, o perturbador de
Isolina queixa-se amargamente do assedio que experimenta, na esfera em que se
encontra. Declara-se perseguido, atormentado por ela. Não tem paz, nem rumo
certo. A mente da jovem, com o seu grande poder magnético, requisita-o em toda
parte. O pobrezinho não consegue progredir, nem furtar-se ao ambiente de
inquietação a que ela o sujeita. Se ao vosso olhar permanece a nossa amiga
assediada, à nossa vista surge o infortunado Juliano em terrível desespero do
coração, como quem se sente prisioneiro de garras inflexíveis.
Diante do que observamos, o verdadeiro obsessor é a médium obstinada. A
vigorosa potencialidade magnética de Isolina é a gaiola, e Juliano o pássaro
cativo. É preciso restabelecer o equilíbrio da verdadeira situação. Tanto
existem perseguidores na esfera invisível, quanto nos círculos de vossa
atividade comum. Aclarai o próprio espírito, amigos meus. Expulsemos a sombra
de nossa região interior. Desencarnados e encarnados não significamos duas
grandes raças diferentes e irreconciliáveis. Todos somos semelhantes na vida
eterna, com as mesmas possibilidades, deveres e obrigações. Nos dramas
pungentes dos obsidiados, lembrai que, se na justiça humana não ocorrem
processos absolutamente iguais nos detalhes, no resgate divino cada situação
apresenta característicos diferentes. Guardai o brilho do cristal e refletireis
a luz na sua pureza ; retende o mel do bem e as abelhas da sabedoria
cercar-vos-ão as pétalas interiores!...
Melânio calara-se enquanto a assembleia
chorava comovida. O bondoso Araújo agradeceu com lágrimas de alegria:
– Obrigado, meu irmão!
O mensageiro orou ainda,
emocionadamente, e declarou ao despedir-se:
– Em vista do que observamos, queridos companheiros não bastará espantar
as moscas do mal. É indispensável, antes de tudo, curar as feridas da
imperfeição.
[1] Reportagens de
Além-Túmulo – Francisco C. Xavier
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