Irmão X
Rosalino Perneta alcançara os
círculos da morte, em falência integral.
Extrema bancarrota.
Perdera todas as ricas
possibilidades que o Senhor lhe colocara nas mãos.
Estava sozinho, sob o látego do
remorso e do sofrimento.
Por anos longos viveu assim o
desventurado, chorando os dias perdidos e implorando a concessão de
oportunidades novas.
Os lustros sucediam-se uns aos
outros, quando Sizínio, velho amigo espiritual, veio ao encontro dele,
fazendo-se-lhe visível.
Rosalino caiu-lhe aos pés, em
soluços.
- Meu abençoado amigo – clamou em lagrimas -, por que tamanha desdita? Vivo num inferno de sombras e padecimentos
incríveis. Onde está Deus que se não compadece de minha miserabilidade?
Sizínio contemplou-o,
paternalmente, e observou:
- Não, Perneta. Não te lastimes de semelhante modo. Antes de tudo,
recorda os próprios erro e lava o coração nas águas do arrependimento. Não
atendeste aos deveres humanos, não cultivaste o campo da espiritualidade
enobrecida, mergulhaste a alma em verdadeiro banho de lodo. Que fazer, agora,
senão suportar a reparação com paciência? Tem confiança e solidifica os bons
propósitos.
O infeliz tentou enxugar o
pranto copioso e, depois de outras considerações, alusivas ao passado,
interrompidas pelas advertências e frases consoladoras do amigo espiritual, Rosalino
terminou:
- Ah! Se eu pudesse voltar!... Se eu pudesse renascer!...
E, fixando no benfeitor o olhar
dorido, acentuava:
- Sizínio, meu grande irmão, não poderias obter-me a oportunidade nova?
Auxilia-me, por piedade...
Intensamente comovido, o
interlocutor prometeu ajuda-lo no que estivesse ao seu alcance.
E, com efeito, em breve Sizínio
regressou à sombria furna, trazendo esperanças novas.
Rosalino recebeu-o, radiante.
- Perneta – disse o amigo generoso -, sabes que o aval é ato grave para quem lhe assume a
responsabilidade.
- Sei, sim – respondeu o
misero.
E o benfeitor prosseguiu:
- Não ignoras também que, por enquanto, não tens direito a reclamação
alguma.
- Reconheço.
- Desconsideraste as oportunidades divinas, menosprezaste a família, o
trabalho, o corpo físico...
- Tudo é verdade – gemeu o infeliz.
- Pois bem – continuou a entidade amiga -, não encontrei nenhuma expressão valiosa em tua existência ultima, na
qual me pudesse basear, a fim de pedir alguma coisa em teu nome.
Em razão disso, não somente reforcei tuas suplicas, como também
solicitei um empréstimo para a tua experiência nova. Há na terra grande
movimento de restauração do Evangelho, renovando esperança e redimindo
corações. Terás nele humilde e valiosa posição de trabalhador e ensinarás, no
plano dos encarnados o caminho justo aos necessitados da esfera visível e
invisível. Entretanto, meu caro, o serviço não será fácil, porque não se resumirá
a questão de palavras. Serás constrangido a viver o ensinamento em ti mesmo,
não atenderas aos caprichos próprios, não procuraras o contentamento da ilusão,
mas sim, atenderas a tudo o que representa interesse de Jesus, no circulo das
criaturas. Deves muito aos homens e encontraras no empréstimo a que me refiro
os recursos indispensáveis ao pagamento.
Rosalino ouvia feliz.
- Recomendo, com insistência – acentuou Sizínio, criterioso -, não esqueças a tua condição de devedor. O
lar, o carinho dos teus, a benção materna, a saúde física, o ambiente de
trabalho, o pão cotidiano, o campo de testemunho cristão e todas as demais possibilidades
constituirão o precioso deposito do Senhor em caráter experimental às tuas mãos,
porque não dispões ainda do justo merecimento. Recorda que vais movimentar um patrimônio
que não te pertence por direito e que receberás, por bondade de Jesus, semelhante
concessão a titulo precário. Vê como te comportas!...
Prometeu Rosalino fiel
observância ao compromisso.
Fez cálculos, expôs o que
pensava do futuro e até marcou o tempo de materializar no mundo as promessas
que formulava entusiasta, com o grande otimismo do devedor, à fonte de recursos
novos.
Sizínio mobilizou as medidas
necessárias e o amigo teve a felicidade de renascer junto de pais cristãos que,
desde o berço, lhe forneceram sublimes noticias do Cristo.
Perneta, no entanto, nas
primeiras recapitulações, demonstrou a maior teimosia e a antiga má-vontade.
Não valiam lições de Jesus no
Evangelho, conselhos paternais e sugestões superiores e indiretas de Sizínio
que o acompanhava, solicito, do plano espiritual. Apesar de advertido, assistido
e guiado, Perneta não queria saber de problemas fundamentais do destino.
Apossara-se novamente da vida
terrestre, como o fauno sequioso de prazer na floresta das emoções planetárias.
Convidado ao serviço de
espiritualização, não respondeu à chamada, alegando que os pais cometiam a
loucura de se devotarem ao bem dos outros. Dizia-se incompreendido, inadaptado
e, se alguém o compelia a raciocínios mais lógicos, reportava-se à escassez de tempo
e à falta de oportunidade.
Voltou vagarosamente aos mesmos
erros criminosos de outra época. Casou-se, foi esposo e pai, mas nunca se
rendeu, de fato, às obrigações do lar, junto da esposa e dos filhos.
Borboleteava à procura de
sensações que lhe saciassem a vaidade.
Quando alguma voz amiga se
referia à espiritualidade, esquivava-se ao assunto, apressado. Não pretendia
cogitar de assuntos referentes à religião, à morte, ao “outro mundo” – dizia,
enfático e orgulhoso.
Sizínio, vigilante, desvelara-se
no sentido de chamá-lo aos compromissos assumidos; no entanto, tão grandes
faltas perpetrara Rosalino, que, ao atingir ele os quarenta e cinco anos, outros
amigos espirituais da família que o recebera, generosamente, começaram a
reclamar providencias ativas. Em vão se movimentou o avalista, no propósito de
acordá-lo para as realidades essenciais. Perneta, porém, não respondia
satisfatoriamente. Declarava-se muito bem, desenvolvendo embora a longa serie
de disparates.
A experiência, todavia, chegava
ao fim.
Em virtude da rebeldia e da
ingratidão de Rosalino, os superiores espirituais intimaram Sizínio a retirar o
empréstimo concedido. Não obstante a amargura, o velho amigo foi obrigado a
obedecer.
O avalista iniciou o trabalho,
alimentando, ainda, a esperança de que o companheiro despertasse.
Operou devagarinho, ansioso de
observar-lhe alguma reação benéfica, mas o desventurado não sabia revoltar-se e
ferir.
Primeiramente, a esposa de
Perneta foi chamada à vida espiritual; em seguida, os filhinhos separaram-se de
sua companhia. A casa em que se lhe situara o ninho domestico foi a leilão para
pagamento de vultosas dividas. Perdeu, mais tarde, o emprego e a consideração
dos amigos. Os bens emprestados foram sendo recolhidos por Sizínio lentamente.
Rosalino, porém, não mostrava
qualquer sinal de renovação.
Foi irredutível na maldade, na
ingratidão, na blasfêmia.
Por fim, o avalista retirou-lhe
a ultima concessão, que era a saúde física.
No leito humilde de hospital,
reconsiderou Perneta a situação, refletiu com mais clareza nas bênçãos de Deus
e meditou na eternidade, desejando voltar no tempo, mas ... Era tarde.
Não valeram rogativas e prantos.
Em manhã muito fria,
absolutamente isolado de todos, apartou-se do corpo de carne, premido pelas
exigências da morte.
Recomeçou para ele, então, o
angustioso caminho.
Recordou o empréstimo, a
dedicação do benfeitor, os compromissos anteriores, a bondade que o cercara em
todos os instante, no transcurso de sua experiência na terra.
Implorou a presença da esposa,
nas densas trevas de que se rodeava, mas o silencio inalterável era a única
resposta às suas suplicas. Não obstante envergonhado, rogou a visita de
Sizínio, mas o benfeitor, agora, parecia inacessível.
Desdobraram-se muitos anos,
quando, um dia, o amigo dedicado se fez visível, novamente.
- Sizínio! Sizínio! – gritou Perneta, em lagrimas dolorosas – ajuda-me! Compadece-te de mim! Estende-me as
tuas mãos, nobre amigo! Perdoa-me e atende-me!
E, antes que o velho companheiro
respondesse, desfiou o rosário das justificativas, das reclamações, dos
remorsos e desculpas.
Quando terminou, em soluços, o
protetor fixou nele o olhar muito lúcido e asseverou:
Por enquanto, Rosalino, ainda não paguei todas as consequências do
empréstimo que te foi concedido e do qual fui espontaneamente avalista. Tuas
lagrimas, agora, não me sensibilizam tão fortemente o coração.
Ofereci-te o suor que salva, mas preferiste o pranto que lamenta. Pede,
pois, ao Senhor que te renove a esperança, porque, para voltar ao empréstimo
contraído, é muito tarde!...
[1]
Pontos e Contos – Francisco C. Xavier
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