terça-feira, 1 de agosto de 2017

Quadro da Vida Espírita - 2[1]

 

Dissemos que ao entrar em sua nova vida o Espírito necessita de algum tempo para se reconhecer, que tudo lhe é estranho e desconhecido. Sem dúvida haverão de perguntar como pode ser assim, já que ele teve outras existências corporais. Essas existências foram separadas por intervalos, durante os quais ele habitava o mundo dos Espíritos; tal mundo, portanto, não lhe deveria ser desconhecido, considerando que não o vê pela primeira vez.
Várias causas contribuem para que essas percepções lhe pareçam novas, embora já as tenha experimentado. Dissemos que a morte é sempre seguida por um instante de perturbação, que pode ser de curta duração. Nesse estado, suas ideias são sempre vagas e confusas; de alguma sorte a vida corporal se confunde com a vida espírita e ele ainda não as pode separar em seu pensamento.
Dissipada a primeira impressão, as ideias pouco a pouco se tornam claras e, com elas, a lembrança do passado, que não volta senão gradualmente à memória, porquanto jamais essa memória irrompe bruscamente. Apenas quando ele se encontra completamente desmaterializado é que o passado se desdobra à sua frente, como algo impreciso, saindo de um nevoeiro. Somente então ele se recorda de todos os atos de sua última existência, seguidos dos atos das existências anteriores e de suas diversas passagens pelo mundo dos Espíritos. Concebe-se, pois, que durante um certo tempo esse mundo lhe deva parecer novo, até que ele se tenha reconhecido completamente e a lembrança das sensações ali experimentadas lhe tenha voltado de maneira precisa. Mas a esta causa deve juntar-se uma outra, não menos preponderante.
O estado do Espírito, como Espírito, varia extraordinariamente, na razão do grau de sua elevação e pureza. À medida que se eleva e se depura, suas percepções e sensações se tornam menos grosseiras, adquirindo mais primor, mais sutileza e mais delicadeza; vê, sente e compreende coisas que não podia ver, nem sentir, nem compreender numa condição inferior. Ora, cada existência corporal, sendo para ele uma oportunidade de progresso, condu-lo a um novo meio, porque se encontra, caso haja progredido, entre Espíritos de outra ordem, cujas ideias, pensamentos e hábitos são diferentes. Acrescente-se que tal depuração lhe permite penetrar, sempre como Espírito, em mundos inacessíveis aos Espíritos inferiores, como entre nós os salões da alta sociedade são interditos às pessoas mal-educadas.
Quanto menos esclarecido, tanto mais limitado é o seu horizonte; à medida que se eleva e se depura, esse horizonte se amplia e, com ele, o círculo de suas ideias e percepções. A seguinte comparação nos permite compreendê-lo. Suponhamos um camponês bruto e ignorante, vindo a Paris pela primeira vez. Conhecerá e compreenderá a Paris do mundo sábio e elegante? Não, porque frequentará apenas as pessoas de sua classe e os bairros que elas habitam. Mas se, no intervalo de uma segunda viagem, esse camponês se desenvolveu, havendo adquirido instrução e boas maneiras, outros serão seus hábitos e as suas relações. Verá, então, um mundo novo para ele, que em nada se assemelhará à Paris de outrora. O mesmo acontece com os Espíritos; nem todos, porém, experimentam esse mesmo grau de incerteza. À medida que progridem, suas ideias se desenvolvem e a memória se aperfeiçoa: familiarizam-se antecipadamente com a sua nova situação; seu retorno entre os outros Espíritos nada mais tem que os surpreenda; encontram-se em seu meio normal e, passado o primeiro momento de perturbação, reconhecem-se quase imediatamente.
Tal é a situação geral dos Espíritos, no chamado estado de erraticidade. Mas o que fazem nesse estado? Como passam o tempo? Para nós essas questões são de interesse capital e eles mesmos é que vão respondê-las, como foram eles que nos deram as explicações que acabamos de fornecer, pois nada disso é produto de nossa imaginação; não se trata de um sistema saído de nosso cérebro: julgamos conforme vemos e ouvimos. Abstraindo-nos de qualquer opinião sobre o Espiritismo, haveremos de convir que essa teoria da vida de além-túmulo nada tem de irracional; ela apresenta uma sequência e um encadeamento perfeitamente lógicos, que honrariam mais de um filósofo.
Seria erro pensar que a vida espírita seja uma vida ociosa. É, ao contrário, essencialmente ativa, e todos nos falam de suas ocupações; tais ocupações diferem necessariamente, conforme seja o Espírito errante ou encarnado. No estado de encarnação, elas são relativas à natureza dos globos por eles habitados, às necessidades que dependem do estado físico e moral desses mundos, bem como da organização dos seres vivos. Não é isso que vamos tratar aqui; falaremos somente dos Espíritos errantes. Entre os que alcançaram um certo grau de elevação, uns velam pela realização dos desígnios de Deus nos grandes destinos do Universo; dirigem a marcha dos acontecimentos e concorrem para o progresso de cada mundo; outros tomam os indivíduos sob sua proteção, constituindo-se em seus gênios tutelares e anjos-da-guarda, acompanhando-os desde o nascimento até à morte, buscando encaminhá-los na senda do bem: é uma felicidade para eles quando os seus esforços são coroados de sucesso. Alguns encarnam em mundos inferiores, para neles realizarem missões de progresso; por seus trabalhos, exemplos, conselhos e ensinamentos procuram fazer que uns progridam nas ciências ou nas artes, outros na moral. Submetem-se, então, voluntariamente às vicissitudes de uma vida corporal muitas vezes penosa, com vistas a fazer o bem, e o bem que fazem lhes é levado em conta. Outros, finalmente, não têm atribuições especiais: vão a toda parte onde a sua presença pode ser útil, dão conselhos, inspiram boas ideias, sustentam a coragem dos que vacilam, fortificam os fracos e castigam os presunçosos.
Se considerarmos o número infinito de mundos que povoam o Universo e o incalculável número de seres que o habitam, compreenderemos que os Espíritos têm muito em que se ocupar; tais ocupações, porém, nada têm de penosas; eles as realizam com alegria, voluntariamente, sem constrangimento, e sua felicidade é triunfar naquilo que empreendem; ninguém pensa numa ociosidade eterna, que seria um verdadeiro suplício. Quando as circunstâncias o exigem, reúnem-se em conselho, deliberam sobre a marcha a seguir, conforme os acontecimentos, dão ordens aos Espíritos que lhes são subordinados e vão para onde o dever os chama. Essas assembleias são mais ou menos gerais ou particulares, conforme a importância do assunto; nenhum lugar especial e circunscrito é destinado a essas reuniões: o espaço é o domínio dos Espíritos. Entretanto, elas se realizam de preferência nos globos onde estão os seus objetivos. Os Espíritos encarnados, que neles estão em missão, delas participam conforme a sua elevação; enquanto o corpo repousa, vão haurir conselhos dos outros Espíritos e, muitas vezes, receber ordens sobre a conduta que devem adotar como homens. É verdade que ao despertar não conservam uma lembrança precisa daquilo que se passou, delas guardando a intuição, que os leva a agir como se o fizessem por conta própria.
Descendo na hierarquia, encontramos Espíritos menos elevados, menos depurados e, consequentemente, menos esclarecidos; nem por isso deixam de ser bons, preenchendo funções análogas nas esferas de atividades mais restritas. Sua ação, em vez de estender-se aos diferentes mundos, exerce-se mais especialmente num globo determinado e está relacionada com o seu grau de desenvolvimento; sua influência é mais individual e tem como objetivo coisas de menor importância.
A seguir vem a multidão de Espíritos vulgares, mais ou menos bons ou maus, que pululam à nossa volta. Eles se elevam pouco a pouco acima da Humanidade, da qual representam todos os matizes e os refletem, pois que dela guardam os vícios e as virtudes. Em grande número deles encontramos os gostos, as ideias e inclinações que possuíam em vida. Suas faculdades são limitadas, seu julgamento falível como o dos homens e, muitas vezes, errôneo e imbuído de preconceitos.
Em outros o senso moral é mais desenvolvido; sem terem grande superioridade nem grande profundidade, julgam com mais acerto, condenando muitas vezes o que fizeram, disseram ou pensaram em vida. Ademais, há uma coisa notável: mesmo entre os Espíritos mais vulgares, a maioria tem sentimentos mais depurados como Espíritos do que como homens, desde que a vida espírita os esclarece sobre os seus defeitos; salvo poucas exceções, arrependem-se amargamente e lamentam o mal que fizeram, porque lhes sofrem mais ou menos cruelmente as consequências.
Vimos alguns deles que não eram melhores do que o haviam sido em vida; jamais, porém, piores. O endurecimento absoluto é muito raro e apenas temporário, porque, cedo ou tarde, acabam padecendo a sua posição e pode-se mesmo dizer que todos aspiram ao aperfeiçoamento, porque compreendem que este é o único meio de sair da sua inferioridade. Instruir-se, esclarecer-se, eis aí a sua grande preocupação, e eles se sentem felizes quando a isso podem acrescentar pequenas missões de confiança que os elevam aos seus próprios olhos.
Têm, também, suas assembleias, mais ou menos sérias, conforme a natureza de seus pensamentos. Falam-nos, veem e observam o que se passa; imiscuem-se em nossas reuniões, em nossos jogos, em nossas festas e espetáculos, bem como em nossas ocupações sérias. Ouvem nossas conversas: os mais levianos para se divertirem, para rirem à nossa custa ou para nos pregarem alguma peça, caso o possam; os outros para se instruírem.
Observam os homens, analisam o seu caráter e fazem o que chamam estudo de costumes, com vistas à escolha de sua futura existência.
Vimos o Espírito no momento em que, deixando o corpo, entra em sua nova vida. Analisamos as suas sensações e seguimos o desenvolvimento gradual de suas ideias. Os primeiros momentos são empregados em se reconhecerem e em se darem conta do que com eles se passa. Em suma, experimentam, por assim dizer, suas faculdades, como a criança que, pouco a pouco, vê crescer suas forças e pensamentos. Falamos dos Espíritos vulgares, porquanto os outros, como já dissemos, de alguma sorte estão previamente identificados com o estado espírita, que nenhuma surpresa lhes causa, a não ser a alegria de se encontrarem livres dos entraves e dos sofrimentos corporais. Entre os Espíritos inferiores muitos sentem saudades da vida terrena, porque sua situação como Espírito é cem vezes pior. Eis por que buscam uma distração na visão do que outrora constituíam as suas delícias, embora até mesmo essa visão lhes seja um suplício, já que sentem desejos mas não os podem satisfazer.
A necessidade de progredir é geral entre os Espíritos; é isso que os impele ao trabalho por seu melhoramento, porque compreendem que é este o preço de sua felicidade. Nem todos, porém, experimentam tal necessidade no mesmo grau, sobretudo no início; alguns chegam mesmo a comprazer-se numa espécie de vagabundagem, mas que não dura muito tempo; logo a atividade se torna para eles uma necessidade imperiosa, à qual, aliás, são impelidos por outros Espíritos, que lhes estimulam os sentimentos do bem.
Vem a seguir o que se pode chamar de escória do mundo espírita, constituída de todos os Espíritos impuros, cuja única preocupação é o mal. Sofrem e desejariam que todos sofressem como eles. A inveja lhes torna odiosa toda superioridade; o ódio é a sua essência. Não podendo assenhorear-se dos Espíritos, apoderam-se dos homens, atacando os que lhes parecem mais fracos. Excitar as más paixões, insuflar a discórdia, separar os amigos, provocar rixas, alimentar o orgulho dos ambiciosos para, em seguida, se darem ao prazer de abatê-los, espalhando o erro e a mentira – numa palavra, desviar do bem – tais são os seus pensamentos dominantes.
Mas por que permite Deus que assim seja? Deus não tem que nos prestar contas. Dizem-nos os Espíritos superiores que os maus são provações para os bons, e que não há virtude onde não há vitória a conquistar. Ademais, se esses Espíritos malfazejos se reúnem na Terra, é que nela encontram eco e simpatia.
Consolemo-nos imaginando que, acima desta abjeção que nos cerca, há seres puros e benevolentes que nos amam, sustentam-nos, encorajam-nos e nos estendem os braços para nos levarem até eles, conduzindo-nos a mundos melhores onde o mal não encontra acesso, caso saibamos fazer aquilo que é preciso para o merecer.
 



[1] Revista Espírita – Abril/1859 – Allan Kardec

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