Zaria Gorvett - Para a BBC
Future - 14 novembro 2016
Rachel acorda. E bebe um tipo de
veneno que lhe dá a sensação de estar sorvendo um suco de urtigas. À medida que
o líquido desce pela garganta, ela sente a pele queimar, bem como a formação de
uma trilha de marcas vermelhas. Horas mais tarde, gotas abrasadoras caem do céu
e, em um clube local, ela assiste pessoas se banhando em piscinas da substância
irritante. Para eles, não é problema algum, mas se Rachel ousar tocar a
substância, sofrerá a dor da queimadura.
Não se trata de nenhuma bizarra
realidade alternativa. Este é o mundo da britânica Rachel Warwick, que é
alérgica a água. É um mundo em que banhos de banheira são situações de pesadelo
e que um mergulho no mar é uma ideia tão pouco atraente quanto deslizar por um
tobogã de gilete. "Essas coisas são minha ideia de como deve ser o
inferno", diz a mulher.
Qualquer contato com a água,
incluindo seu suor, deixa Rachel com irritações doloridas, inchaços e coceiras que
podem durar horas. "É como se eu tivesse corrido uma maratona. Fico
cansada e tenho que me sentar para recuperar a energia. É horrível, mas seu eu
chorar as coisas só pioram: minha cara incha", explica.
A condição é conhecida como urticária aquagênica. Está certamente
longe de ser prazerosa, mas você deve estar mais interessado em saber como
Rachel consegue sobreviver. Afinal, todos os dias algo nos lembra de que a água
é a necessidade mais básica da vida - tanto que a Agência Espacial Americana
(NASA) baseia sua busca por vida extraterrestre na existência de água. Pelo
menos 60% do corpo humano é composto de água. Um adulto de 70 kg contém 40
litros do líquido.
Mas a água em nosso corpo não
parece ser um problema para quem sofre da urticária aquagênica. As reações
alérgicas são detonadas pelo contato com a pele e ocorrem a despeito de
temperatura, pureza ou salinidade. Mesmo a água destilada várias vezes vai
causar problemas.
"Quando as pessoas sabem da
minha condição, elas fazem perguntas do tipo 'como você faz para comer ou
beber' ou 'como toma banho'. A grande verdade é que você precisa aguentar a dor
e seguir a vida", diz Rachel.
A doença confunde os cientistas
tanto como nós. Tecnicamente, a urticária aquagênica não é uma alergia, pois é
uma provável reação imunológica despertada pelo corpo em vez de uma reação a
agentes externos, como pólen ou amendoins.
Uma das primeiras teorias para
explicar como a doença funciona é que a água interage com a camada mais externa
da pele, composta majoritariamente de células mortas e substância oleosa que
mantém a pele úmida. Contato com a água pode fazer com que esses componentes
liberem compostos tóxicos, levando a uma reação imunológica. Especialistas
também sugerem que a água simplesmente pode dissolver elementos químicos na
camada de pele morta, fazendo com que eles penetrem em camadas mais profundas,
onde causam a reação imunológica.
A teoria mais ousada é que a
condição é deflagrada por diferenças de pressão que acionam por osmose o alarme
imunológico quando a água deixa a pele.
Quaisquer que sejam as causas,
porém, a urticária é uma doença devastadora e que pode transformar vidas, como
explica o dermatologista Marcus Maurer, fundador da ECARF, um centro alemão de
estudos de alergias. "Tenho pacientes que sofrem de urticária há 40 anos e
que ainda acordam com manchas e edemas diariamente", explica.
Pessoas que sofrem deste mal
pode desenvolver ansiedade ou depressão, preocupando-se constantemente com o
próximo ataque. "Em termos de qualidade de vida, é um das piores doenças
de pele que se pode ter", acrescenta Maurer.
Rachel tinha 12 anos quando foi
diagnosticada, depois de perceber uma irritação na pele quando nadava. Ela não
foi enviada para testes. O método padrão de diagnóstico é manter a parte
superior do corpo molhada por meia hora e ver o que acontece. "Meu médico
conhecia a condição e me disse que o teste seria pior".
Sobreviver com a urticária não é
um problema, mas suportá-la diariamente é outra história. Em períodos de muita
chuva, por exemplo, Rachel não pode sair de casa. Atividades corriqueiras como
lavar a louça precisam ser executadas pelo marido. Ela limita os banhos a
apenas um por semana. Para minimizar o suor, ela usa roupas leves e evita
exercícios.
Assim como outras pessoas com a
condição, Rachel bebe muito leite, já que a reação não é tão ruim quanto com a
água. E ninguém sabe o porquê. O tratamento até agora é feito basicamente
através do uso de anti-histamínicos, e para entender a razão da pouca evolução
da busca por uma cura, é preciso primeiro entender o que acontece durante uma
reação.
Tudo começa quando células
imunológicas na pele, conhecidas como mastócitos, liberam proteínas
inflamatórias (histaminas). Em uma reação imunológica normal, as histaminas são
extremamente úteis, fazendo com que os vasos sanguíneos se abram o suficiente
para a entrada de glóbulos brancos, que atacam invasores. Mas durante uma
reação à água, tudo o que você recebe são os efeitos colaterais: os fluidos
causam inchaços na pele. Ao mesmo tempo, as histaminas ativam neurônios cuja
principal função é fazer com que tenhamos coceiras. Isso provoca as lesões
conhecidas como vergões.
Na teoria, os anti-histamínicos
deveriam funcionar todas às vezes, mas na prática as drogas tiveram resultados
mistos. Em 2014, Rachel foi enviada para o ECARF, em Berlim, como parte de um
documentário. Médicos sugeriram que ela tomasse uma dose maior do remédio. Ela
fez isso e, a pedido dos médicos, nadou em uma piscina. Não funcionou.
"Fiquei me coçando loucamente e parecia que tinha uma doença horrível de
pele", lembra Rachel.
Mas, desde 2008, o ECARF vinha
estudando uma alternativa aos anti-histamínicos, concentrando-se nos mastócitos
- mais precisamente no que poderia acionar a produção de histaminas. Estudos em
laboratórios apontaram para um culpado - o anticorpo IgE, responsável por
alergias "verdadeiras", como a pólen ou pelos de animais. "Em
vez de reagir a algo do mundo exterior, essas pessoas (os portadores de
urticária aquagênica) estão produzindo IgE em resposta a algo acontecendo no
interior de seus corpos", diz Maurer.
Tudo do que precisavam era de
uma droga que pudesse bloquear os efeitos do IgE. E já havia uma no mercado. O
Omalizumab foi originalmente desenvolvido como tratamento para asma. "O
laboratório que produzia a droga não acreditou quando pedimos para
usá-la", lembra o dermatologista. Em agosto de 2009, os médicos testaram o
Omalizumab em uma mulher de 48 anos com outra forma rara de urticaria, acionada
por pressão. Por três anos, a paciente desenvolvia irritações na pele com o
mínimo toque. Era ruim ao ponto das irritações aparecerem até quando se vestia
ou penteava.
Mas após apenas uma semana de
tratamento, os sintomas diminuíram sensivelmente. No final de um mês,
desapareceram. Desde então, os cientistas descobriram que o Omalizumab é eficaz
contra mesmo as formas mais obscuras de urticária. "Essa droga mudou o
jogo completamente", diz Maurer.
Um de seus primeiros pacientes
foi um professor que reagia ao próprio suor. Não podia mais dar aulas porque
seu rosto inchava durante as aulas. Mas apenas uma semana de tratamento mudou
sua vida.
Isso deveria ter representado um
final feliz para Rachel. Mas há um, porém: a droga ainda não passou por testes
clínicos extensivos que comprovem sua eficácia e, por isso, sistemas de saúde
pública como o NHS britânico não custeiam seu uso. Esse foi o problema que
Rachel encontrou em 2014 quando teve o Omalizumab receitado. Sem cobertura do
NHS, a droga custaria milhares de euros por mês.
Como a urticária aquagênica
afeta apenas uma em cada 230 milhões de pessoas no mundo, isso significa que
apenas 32 pessoas no planeta sofrem da doença. Um número insuficiente para
grandes testes clínicos. E a droga está chegando ao fim de sua patente, o que
faz com que a Novartis, a empresa que fabrica droga, não pense investir
pesadamente em testes ou mesmo no desenvolvimento de novos tratamentos. A
barreira final para cuidar da urticária aquagênica não é científica, mas sim
econômica.
Pelo menos por enquanto, Rachel
vai ter que esperar para realizar o sonho de poder fazer natação. Ou dançar
debaixo da chuva.
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