Irmão X
Examinávamos a paisagem das
ambições humanas, quando um amigo considerou:
- Que o homem atenda aos conselhos da prudência, armazenando em bom
tempo, como a formiga, para os dias de necessidade e inverno forte, é
compreensível e razoável. A vigilância não exclui a previdência, quando é
possível amealhar com o bem; mas, explorar o quadro das misérias alheias,
embebedar-se na preocupação de ganhar, escravizar-se ao dinheiro, é criar um
inferno de padecimentos intraduzíveis.
- Quantos precipícios cavados pelo egoísmo conquistador?! Disse outro.
É lastimável
observar as angustias semeadas nos caminhos humanos. As guerras não constituem
senão o desdobramento das ambições desmedidas. E dizer-se que toda essa marcha
de loucuras demanda as zonas da morte! Quão incompreensível a nossa cegueira, nos
círculos carnais! Quantos pesadelos desnecessários e quanta ilusão para se
desfazer na sepultura!...
Um dos companheiros presentes
sorriu a acrescentou:
- Nesse capitulo, recebi inolvidável lição, há mais de trezentos anos,
por intermédio de um chefe indígena em nosso país.
Como assim? Perguntei sumamente
interessado.
- Em princípios do século XVII – esclareceu o interlocutor – participava dos serviços de uma
embarcação francesa, em transporte de pau-brasil. Periodicamente, dávamos à costa,
onde fizéramos agradável camaradagem com os silvícolas, e, naquela época, envergando
a qualidade de português do Alentejo, não tive dificuldades para aprender
alguns rudimentos da língua aborígine, ao contato dos nossos. Em razão disso, o
chefe da tribo litorânea, que respondia pelo nome de Aritogogo, dedicava-me
especial atenção. Na sexta viagem de nosso barco, o velho bronzeado chamou-me
em particular, ministrando-me uma das mais belas lições de filosofia que já
recebi em toda a minha vida. Observando-nos a afoiteza em carregar o navio com
a madeira preciosa, perguntou-me ele, na linguagem que lhe era familiar:
- Escute, meu amigo, não há lenha em sua terra? É preciso enfrentar o
abismo das águas para alimentar o fogo no lar distante?
- Não, Aritogogo – respondi, esboçando um sorriso de pretensa
superioridade -, a madeira não se destina
a fogão. O pau-brasil fornece tinta para a indústria da Europa.
- Mas, para que tanta tinta? Tornou ele, assombrado.
- Para tingir a roupa dos brancos. Expliquei.
- Ah! Ah! Vêm buscar a lenha para repartir com o povo, exclamou o cacique,
assim como nós buscamos remédio para os
que adoecem e comida para os que têm fome!...
-Não, não, esclareci. Somos
empregados de um industrial. Toda a carga pertence a um só homem. Trata-se de
poderoso negociante de tintas, em França.
Aritogogo arregalou os olhos,
espantado, e indagou:
- Que deseja esse homem com tantos paus e tanta tinta?
- Fazer fortuna, respondi. Alcançar
muito dinheiro, ter muitas casas e muitos servidores...
O chefe índio sacudiu a cabeça e
tornou a perguntar:
- Mas esse homem nunca morrerá?
Ri-me francamente da
interrogação ingênua e observei:
- Morrerá, por certo.
- Então? Disse o índio. Se
ele vai morrer, como nós todos, deve ser tolo em procurar tanto peso para o
coração.
Tentei corrigir-lhe a concepção,
obtemperando:
- Esse homem, Aritogogo, está
preparando o futuro da família. Naturalmente pretende legar aos filhos uma
grande herança, cercá-los de fortuna sólida...
Foi aí que o cacique mostrou um
gesto singular de desânimo, e falou em tom grave:
- Ah! Meu branco, meu branco, vocês estão procurando enganar a Deus. As
tribos pacíficas, quando começam a cogitar desse assunto, esbarram nas guerras
em que se destroem umas às outras. O único ser, que pode legar uma herança
legítima aos nossos filhos, é o dono invisível da Terra e do Céu. O sol, a
chuva, o ar, o chão, as pedras, as árvores, os rios são a propriedade de Deus
que, por elas, nos ensina as suas leis. Retirar os nossos filhos do trabalho
natural é pretender enganar o Eterno. Como podem os brancos pensar nisso?
Nesse momento, porém – continuou
o amigo espiritual:
- O comandante chamou-me ao posto e despedi-me de Aritogogo, para não
mais tornar a vê-lo naquela recuada existência.
O companheiro espraiou o olhar
pelo céu azul, como a procurar a imagem distante do cacique filósofo e conclui:
- Desde então, modifiquei minha ideia de ganho, compreendendo onde estão
o supérfluo e o necessário, a previdência e o desperdício, a sobriedade e a
avareza, a reserva justa e a ambição criminosa. A lição de Aritogogo
incorporou-se ao meu espírito para sempre. Com ela, aprendi que dominar o
dinheiro e aproveitá-lo a bem de todos, socorrendo necessidade e distribuindo
bom ânimo, é obra do homem espiritualizado; mas, deixar-se dominar pelo ouro,
na preocupação de ganho transitório, não reparando meios para atingir os fins,
açambarcando direitos de outrem e valendo-se de todas as situações para rechear
os cofres e multiplicar os lucros, tão somente para manter a superioridade
convencional, em prejuízo da consciência, é obra do homem vulgar, escravizado
aos gênios perversos da tirania.
[1] Pontos e
Contos – Psicografado por Francisco C.
Xavier
excelente
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