sábado, 22 de julho de 2017

A LIÇÃO DE ARITOGOGO[1]


 
Irmão X

Examinávamos a paisagem das ambições humanas, quando um amigo considerou:

- Que o homem atenda aos conselhos da prudência, armazenando em bom tempo, como a formiga, para os dias de necessidade e inverno forte, é compreensível e razoável. A vigilância não exclui a previdência, quando é possível amealhar com o bem; mas, explorar o quadro das misérias alheias, embebedar-se na preocupação de ganhar, escravizar-se ao dinheiro, é criar um inferno de padecimentos intraduzíveis.

- Quantos precipícios cavados pelo egoísmo conquistador?! Disse outro.  É lastimável observar as angustias semeadas nos caminhos humanos. As guerras não constituem senão o desdobramento das ambições desmedidas. E dizer-se que toda essa marcha de loucuras demanda as zonas da morte! Quão incompreensível a nossa cegueira, nos círculos carnais! Quantos pesadelos desnecessários e quanta ilusão para se desfazer na sepultura!...

Um dos companheiros presentes sorriu a acrescentou:

- Nesse capitulo, recebi inolvidável lição, há mais de trezentos anos, por intermédio de um chefe indígena em nosso país.

Como assim? Perguntei sumamente interessado.

- Em princípios do século XVII – esclareceu o interlocutor – participava dos serviços de uma embarcação francesa, em transporte de pau-brasil. Periodicamente, dávamos à costa, onde fizéramos agradável camaradagem com os silvícolas, e, naquela época, envergando a qualidade de português do Alentejo, não tive dificuldades para aprender alguns rudimentos da língua aborígine, ao contato dos nossos. Em razão disso, o chefe da tribo litorânea, que respondia pelo nome de Aritogogo, dedicava-me especial atenção. Na sexta viagem de nosso barco, o velho bronzeado chamou-me em particular, ministrando-me uma das mais belas lições de filosofia que já recebi em toda a minha vida. Observando-nos a afoiteza em carregar o navio com a madeira preciosa, perguntou-me ele, na linguagem que lhe era familiar:

- Escute, meu amigo, não há lenha em sua terra? É preciso enfrentar o abismo das águas para alimentar o fogo no lar distante?

- Não, Aritogogo – respondi, esboçando um sorriso de pretensa superioridade -, a madeira não se destina a fogão. O pau-brasil fornece tinta para a indústria da Europa.

- Mas, para que tanta tinta? Tornou ele, assombrado.

- Para tingir a roupa dos brancos. Expliquei.

- Ah! Ah! Vêm buscar a lenha para repartir com o povo, exclamou o cacique, assim como nós buscamos remédio para os que adoecem e comida para os que têm fome!...

-Não, não, esclareci. Somos empregados de um industrial. Toda a carga pertence a um só homem. Trata-se de poderoso negociante de tintas, em França.

Aritogogo arregalou os olhos, espantado, e indagou:

- Que deseja esse homem com tantos paus e tanta tinta?

- Fazer fortuna, respondi. Alcançar muito dinheiro, ter muitas casas e muitos servidores...

O chefe índio sacudiu a cabeça e tornou a perguntar:

- Mas esse homem nunca morrerá?

Ri-me francamente da interrogação ingênua e observei:

- Morrerá, por certo.

- Então? Disse o índio. Se ele vai morrer, como nós todos, deve ser tolo em procurar tanto peso para o coração.

Tentei corrigir-lhe a concepção, obtemperando:

- Esse homem, Aritogogo, está preparando o futuro da família. Naturalmente pretende legar aos filhos uma grande herança, cercá-los de fortuna sólida...

Foi aí que o cacique mostrou um gesto singular de desânimo, e falou em tom grave:

- Ah! Meu branco, meu branco, vocês estão procurando enganar a Deus. As tribos pacíficas, quando começam a cogitar desse assunto, esbarram nas guerras em que se destroem umas às outras. O único ser, que pode legar uma herança legítima aos nossos filhos, é o dono invisível da Terra e do Céu. O sol, a chuva, o ar, o chão, as pedras, as árvores, os rios são a propriedade de Deus que, por elas, nos ensina as suas leis. Retirar os nossos filhos do trabalho natural é pretender enganar o Eterno. Como podem os brancos pensar nisso?

Nesse momento, porém – continuou o amigo espiritual:

- O comandante chamou-me ao posto e despedi-me de Aritogogo, para não mais tornar a vê-lo naquela recuada existência.

O companheiro espraiou o olhar pelo céu azul, como a procurar a imagem distante do cacique filósofo e conclui:

- Desde então, modifiquei minha ideia de ganho, compreendendo onde estão o supérfluo e o necessário, a previdência e o desperdício, a sobriedade e a avareza, a reserva justa e a ambição criminosa. A lição de Aritogogo incorporou-se ao meu espírito para sempre. Com ela, aprendi que dominar o dinheiro e aproveitá-lo a bem de todos, socorrendo necessidade e distribuindo bom ânimo, é obra do homem espiritualizado; mas, deixar-se dominar pelo ouro, na preocupação de ganho transitório, não reparando meios para atingir os fins, açambarcando direitos de outrem e valendo-se de todas as situações para rechear os cofres e multiplicar os lucros, tão somente para manter a superioridade convencional, em prejuízo da consciência, é obra do homem vulgar, escravizado aos gênios perversos da tirania.


[1] Pontos e Contos – Psicografado por Francisco C. Xavier

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