Falamos sobre a notável
faculdade da Srta. Désirée Godu, como médium curador, e poderíamos ter citado
atestados autênticos que temos sob os olhos. Mas eis um testemunho cujo alcance
ninguém contestará. Não se trata de um desses certificados liberados um tanto
levianamente, mas do resultado de observações sérias de um homem de saber,
eminentemente competente para apreciar as coisas sob o duplo ponto de vista da
Ciência e do Espiritismo. O Dr. Morhéry nos envia as duas cartas seguintes,
cuja reprodução por certo nossos leitores agradecerão:
Plessis-Boudet, perto de Loudéac (Côtes-du-Nord).
Senhor Allan
Kardec, “Embora sobrecarregado de ocupações neste momento, como membro
correspondente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, devo informar-vos
de um acontecimento para mim inesperado e que, sem dúvida, interessa a todos os
nossos colegas.
Nos últimos números de vossa Revista elogiastes a Srta.
Désirée Godu, de Hennebon. Dissestes que depois de ter sido médium vidente,
audiente e escrevente, esta senhorita se havia tornado, desde alguns anos,
médium curador. Foi nesta última qualidade que ela se dirigiu a mim, reclamando
meu concurso como doutor em Medicina, para provar a eficácia de sua medicação,
que poderíamos chamar espírita. A princípio pensei que as ameaças que lhe eram
feitas e os obstáculos interpostos à sua prática médica, sem diploma, fossem a
única causa de sua determinação; mas ela me disse que o Espírito que a dirige
há seis anos havia aconselhado a medida como necessária, do ponto de vista da
Doutrina Espírita.
Seja como for, julguei ser de meu dever e do interesse da Humanidade
aceitar sua generosa proposta, mas duvidava que ela a realizasse. Sem a
conhecer, nem jamais tê-la visto, tinha sabido que essa piedosa jovem não havia
querido separar-se de sua família senão numa circunstância excepcional, para
cumprir uma missão não menos importante, na idade de dezessete anos. Fiquei,
pois, agradavelmente surpreendido ao vê-la chegar em minha casa, conduzida por
sua mãe, que deixou no dia seguinte com profunda mágoa; mas essa mágoa era
temperada pela coragem da resignação.
Há dez dias a Srta. Godu está no seio de minha família, da
qual constitui a alegria, malgrado sua enervante ocupação.
Desde sua chegada, já constatei setenta e cinco casos de
observações de doenças diversas, para a maioria das quais os recursos da
Medicina haviam falhado. Temos amauroses, oftalmias graves, paralisias antigas
e rebeldes a todo tratamento, escrofulosos, herpéticos, cataratas e cânceres
avançados. Todos os casos são numerados, a natureza da moléstia por mim
constatada, os curativos mencionados, e tudo é ordenado como numa sala clínica destinada
a observações.
Ainda não há tempo suficiente para que eu me possa pronunciar
de maneira peremptória sobre as curas operadas pela medicação da Srta. Godu.
Mas, desde hoje, posso manifestar minha surpresa pelos resultados revulsivos
que ela obtém pela aplicação de seus unguentos, cujos efeitos variam ao
infinito, por uma causa que eu não poderia explicar dentro das regras
ordinárias da Ciência.
Também vi com prazer que ela cortava as febres sem nenhuma
preparação de quinina ou de seus extratos, por meio de simples infusões de
flores ou de folhas de diversas plantas.
Acompanho com vivo interesse o tratamento de um câncer
bastante avançado. Esse câncer, diagnosticado e tratado sem sucesso, como
sempre, por vários colegas, é objeto da maior preocupação da Srta. Godu. Não
são uma nem duas vezes que ela o pensa, mas a todas as horas. Desejo
sinceramente que seus esforços sejam coroados de sucesso e que cure este
indigente, que trata com zelo acima de qualquer elogio. Se o conseguir, pode-se
naturalmente esperar que logrará outros e, neste caso, prestará um imenso
serviço à Humanidade, curando essa terrível e atroz moléstia.
Sei que alguns confrades censurarão e sorrirão da esperança
em que me embalo. Mas que me importa, desde que essa esperança se realize! Já
me fazem reprimendas por prestar concurso a uma pessoa cuja intenção ninguém
contesta, mas cuja aptidão para curar é negada pela maioria, considerando-se
que tal aptidão não lhe foi dada pela Faculdade.
A isto responderei: não foi a Faculdade que descobriu a
vacina, mas simples pastores; não foi a Faculdade que descobriu a cortiça do
Peru, mas os indígenas daquele país. A Faculdade constata os fatos; agrupa-os e
classifica-os para formar a preciosa base do ensino, mas não os produz
exclusivamente. Alguns tolos – infelizmente há muitos por aqui, como em toda
parte – se julgam espirituosos por qualificarem a Srta. Godu de feiticeira.
Certamente é uma feiticeira amável e bastante útil, pois não inspira nenhum temor
de feitiçaria nem o desejo de sacrificá-la na fogueira.
A outros, que pretendem seja ela instrumento do demônio,
responderei sem rodeios: se o demônio vem à Terra curar os incuráveis,
abandonados e indigentes, forçoso é concluirmos que finalmente ele se
converteu, merecendo, por isso, os nossos agradecimentos. Ora, duvido muito que
entre os que assim falam não haja muitos que prefiram ser curados por suas
mãos, a morrerem nas mãos de médico. Recebamos, pois, o bem de onde vier e, a
não ser com provas autênticas, não atribuamos o seu mérito ao diabo. É mais
moral e mais racional atribuir o bem a Deus e lho agradecer; a respeito, penso
que minha opinião será partilhada por vós e por todos os meus colegas.
Aliás, que isso se torne ou não uma realidade, sempre resultará
algo para a Ciência. Não sou homem de olvidar certos meios empregados, que hoje
muito negligenciamos. Diz-se que a Medicina fez imensos progressos. Sim, sem dúvida,
para a Ciência, mas não tanto na arte de curar. Apreendemos muito e muito esquecemos.
O Espírito humano é como o oceano: não pode abarcar tudo; quando invade uma
praia, deixa outra. Voltarei ao assunto e vos porei ao corrente dessa curiosa
experiência. Ligo a ela a maior importância; se triunfar, será uma brilhante
manifestação contra a qual será impossível lutar, porque nada detém os que sofrem
e querem curar-se. Estou decidido a tudo afrontar com esse objetivo, mesmo o
ridículo que tanto se teme na França.
Aproveito a oportunidade para vos enviar minha tese inaugural.
Se vos derdes ao trabalho de lê-la, compreendereis facilmente quanto eu estava
disposto em admitir o Espiritismo.
Esta tese foi defendida quando a Medicina havia caído no
mais profundo materialismo. Era um protesto contra essa corrente que nos
arrastou para a Medicina orgânica e a farmacologia mineral, de que tanto se
abusou. Quanta saúde arruinada pelo uso de substâncias minerais que, em caso de
insucesso, aumentam o mal e, no de melhora, muitas vezes deixam traços em nosso
organismo!
Aceitai etc.
Morhéry
Nova correspondência do
Dr. Morhéry sobre a Srta. Désirée Godu
20 de março de 1860.
Senhor,
Em minha última carta anunciei-vos que a Srta. Désirée
Godu tinha vindo exercer sua faculdade curadora sob minhas vistas. Hoje venho
vos trazer algumas novidades.
Desde 25 de fevereiro, comecei minhas observações sobre um
grande número de doentes, quase todos indigentes e impossibilitados de
tratamento adequado. Alguns têm doenças pouco importantes. A maioria, porém, é
acometida por afecções que resistiram aos meios curativos ordinários.
Cataloguei, desde 25 de fevereiro, 152 casos de moléstias muito variadas.
Infelizmente, em nossa região, sobretudo os doentes indigentes seguem seus
caprichos e não têm paciência para se resignarem a um tratamento contínuo e metódico.
Desde que experimentam melhora, julgam-se curados e nada mais fazem. É um fato
muitas vezes constatado em minha clientela e que, necessariamente, deveria
ocorrer com a Srta. Godu.
Como já vos disse, nada quero prejulgar, nada afirmar, exceto
os resultados constatados pela experiência. Mais tarde farei o inventário de
minhas observações e constatarei as mais notáveis.
Mas, desde já, posso exprimir a minha admiração por certas
curas obtidas fora dos meios ordinários.
Vi curar sem quinino três episódios de febres intermitentes,
rebeldes, dos quais um havia resistido a todos os meios por mim empregados.
A Srta. Godu curou
igualmente três panarícios e duas inflamações subaponevróticas da mão, em
poucos dias. Fiquei deveras surpreendido.
Posso também constatar a cura, ainda não radical, mas muito
avançada, de um de nossos mais inteligentes trabalhadores, Pierre Le Boudec, de
Saint-Hervé, surdo há 18 anos; ele ficou tão maravilhado quanto eu, quando,
após três dias de tratamento, pôde ouvir o canto dos pássaros e a voz de seus
filhos. Vi-o esta manhã; tudo leva a crer numa cura radical dentro em pouco.
Entre nossos doentes, o que mais atrai minha atenção neste
momento é um tal Bigot, operário em Saint-Caradec, acometido há dois anos e
meio por um câncer do lábio inferior. O câncer chegou ao último grau; o lábio
inferior está parcialmente destruído; as gengivas, as glândulas sublinguais e
submaxilares estão canceromatosas; o próprio osso maxilar inferior está afetado
pela moléstia. Quando se apresentou em minha casa seu estado era desesperador;
suas dores eram atrozes; não dormia há seis meses; qualquer operação era
impraticável, pois o mal estava muito avançado; a cura me parecia impossível e
o declarei com toda franqueza à Srta. Godu, a fim de premuni-la contra uma
derrota inevitável. Minha opinião não variou quanto ao prognóstico; não posso
acreditar na cura de um câncer tão avançado. Entretanto, devo declarar que,
desde o primeiro curativo, o doente experimenta alívio e, a partir de 25 de
fevereiro, dorme bem e se alimenta; voltou-lhe a confiança; a ferida mudou de
aspecto de modo visível e, se isso continuar, a despeito de minha opinião tão
formal, serei obrigado a esperar uma cura. Se realizar-se será o maior fenômeno
de cura que se possa constatar. É preciso esperar e ter paciência com o doente.
A Srta. Godu tem com ele um cuidado todo especial; por vezes tem feito
curativos de meia em meia hora. Esse indigente é o seu favorito.
Quanto a outras coisas, nada tenho a dizer. Poderia edificar-vos
sobre os boatos, mexericos e alusões à feitiçaria; mas como a tolice é inerente
à Humanidade, não me dou ao trabalho de tentar erradicá-la.
Aceitai etc.
Morhéry
Observação – Como
se pode ficar convencido pelas duas cartas acima, o Dr. Morhéry não se deixa
fascinar pelo entusiasmo; observa as coisas friamente, como homem esclarecido
que não se permite ilusões; demonstra inteira boa-fé e, pondo de lado o amor próprio
do médico, não teme confessar que a Natureza pode prescindir dele, inspirando a
uma jovem sem instrução os meios de curar que ele não encontrou sequer em sua
Faculdade, nem em seu próprio cérebro, não se julgando humilhado por isso. Seus
conhecimentos de Espiritismo mostram-lhe que a coisa é possível, sem que, por
isso, haja derrogação das leis da Natureza; ele a compreende, desde que essa
notável faculdade é para ele um simples fenômeno, mais desenvolvido na Srta.
Godu que em outros. Pode-se dizer que essa jovem representa, para a arte de
curar, o que Joana d’Arc representava para a arte militar. O Dr. Morhéry,
esclarecido sobre os dois pontos essenciais – o Espiritismo como fonte e a Medicina
ordinária como controle – pondo de lado o amor-próprio e qualquer sentimento
pessoal, encontra-se na melhor posição para julgar imparcialmente, e nós
cumprimentamos a Srta. Godu pela resolução tomada, de colocar-se sob seu
patrocínio. Sem dúvida os leitores nos serão gratos por mantê-los ao corrente
das observações que serão feitas ulteriormente.