Ermance Dufaux
“Até mesmo as impaciências, que se originam de contrariedades muitas
vezes pueris, decorrem da importância que cada um liga à sua personalidade,
diante da qual entende que todos se devem dobrar”.
Um Espírito Protetor (Bordéus. 1863)
O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO – Cap. IX, Item 9
Por que nos ofendemos? Por que
temos tanta suscetibilidade em relação a tudo que nos cerca? Quais as razões de
encolerizarmos perante fatos desagradáveis?
Eis três perguntas para as quais
devemos dirigir nossa meditação, caso queiramos entender o que se passa conosco
nos desafios do progresso espiritual.
Iniciemos nossas ponderações
conceituando a palavra ofensa. Existe a ofensa por razões naturais,
provenientes do instinto de defesa e preservação. Através dessas agressões,
recebemos da mente os sinais de alerta para avaliarmos com melhor exatidão e
conveniência e o grau de perigo ou importância do que nos cerca.
É natural nos ofendermos com
“palavrões” que causam “dores aos ouvidos sensíveis”, é natural nos ofendermos
ao ver dois seres humanos se agredirem, é mais que justo que nos ofendamos e
tenhamos raiva ao sermos assaltados em uma rua, seria muito natural nos
ofendermos quando formos injustamente julgados pelas pessoas que nos conhecem.
A ofensa tem sua faceta benéfica, porque não devemos aceitar tudo que acontece
à nossa volta passivamente, sem uma reação que nos faça sentir lesados ou
ameaçados. O objetivo desse sentimento será sempre o de nos colocar a pensar na
elaboração de uma conduta ajustada à natureza das agressões que sofremos.
Contudo, larga diferença vai
entre a ofensa natural e o melindre, que é a reação neurótica às ofensas.
Melindre é o estado afetivo doente de fragilidade, que dilata a proporção e
natureza das agressões que sofremos do meio. Pequenas atitudes ou delicadas
situações são motivos suficientes para que o portador do melindre se agaste
terrivelmente, fechando-se em corrosivo sistema de mágoa e decepção com os
fatos e as pessoas que lhe foram motivo de incômodos e contrariedade. Assim, aumenta
a intensidade do fato e desgasta-se afetivamente através de imaginações febris
sobre a natureza das ocorrências que lhe afetaram.
Sabemos que a mágoa é o peso
energético nascido das ofensas transportadas conosco dia após dia como fosse um
“colesterol da alma”, causando-nos males no corpo e no Espírito. Sabemos também
que a irritação é como se fosse dura martelada no sistema nervoso, levando-nos ao
interesse e perda energética.
Então por que agasalhar
semelhantes malefícios quando temos tanto esclarecimento?
Compreendamos algo sobre os
mecanismos da ofensa e da cólera para avaliarmos sobre as razões que nos
inclinam para essa atitude de desamor, e, fazendo assim, procuremos,
igualmente, através do melhor entendimento oferecer a nós próprios o corretivo,
para os problemas de melindre e contrariedades do dia a dia.
Primeiramente deixemos claro que
na raiz do melindre e da ofensa está o orgulho. Vejamos o que nos diz o
codificador a esse respeito: “Julgando-se com direitos superiores, melindre-se com
o que quer que, a seu ver, constitua ofensa a seus direitos. A importância que,
por orgulho, atribui à sua pessoa, naturalmente o torna egoísta” [2].
O que está por trás da grande
maioria das ofensas humanas são as contrariedades, ou seja, tudo aquilo que não
acontece como se gostaria que acontecesse. Contrariar para a maioria das
criaturas significa ser contra aquilo que se espera, ser nocivo aos planos pessoais,
ser prejudicial, ser desvantajoso. Nessa ótica, tudo aquilo que não ofereça
alguma vantagem na nossa forma de conceber os benefícios da vida é algo
inoportuno, indevido, que não deveria ter ocorrido, gerando reações no mundo
íntimo, cujos reflexos poderão ser percebidos de criação de sentimentos de
pessimismo, infelicidade, desapontamento, animosidade, tristeza e rancor.
Excetuando alguns casos de
educação mal orientada na infância, esse “vício de não ser contrariado” foi
adquirido pelo Espírito em suas diversas vilegiaturas reencarnatórias, nas
quais teve todos os interesses pessoais atendidos a qualquer preço. É o velho
hábito da satisfação plena dos desejos da personalidade que, dispondo de poder
e recursos, não hesitou em colher sempre para si mesmo os frutos dos bens
divinos que lhe foram confiados nas transatas experiências. Hoje, renasce em
condições que limitam suas tendências de saciação egoísta, instaurando um delicadíssimo
sistema de “revolta silenciosa” quando não consegue o atendimento de seus
interesses, experimentando uma baixa tolerância a frustrações. Essa “revolta” é
o movimento interior de repúdio da alma aos novos quadros da vida a que é
lançada, nos quais é compelido, pela força das circunstancias, a aprender a obediência
aos ditames da Lei Natural, nem sempre afinados com seus gostos e aspirações
individuais. Esse é o preço justo que pagamos pelo costume de ser atendido em
tudo que queríamos no pretérito, quando deveríamos ter aproveitado as ocasiões
de fartura e liberdade para sermos atendidos naquilo que fosse o melhor para
todos.
Assim, a alma passa hoje por uma
série de pequenas ou grandes situações na vida, se ofendendo e irritando com
quase todas, desde que contrarie seus interesses individualistas. Um singelo
ato de esquecer um documento ou ainda o simples ato de não ser correspondido
num pedido a um familiar, ou mesmo, não ter sido escolhido para assumir a
presidência da tarefa espírita, todos são motivos para a irritação, o desgaste
e a animosidade, podendo chegar às raias da ofensa, da mágoa e do
desequilíbrio. O estado íntimo nesse passo reproduz a nítida sensação de que
tudo e todos estão contra sua pessoa, e fatos corriqueiros podem se tornar
grandes problemas, enquanto os grandes problemas podem se tornar tragédias
lamentáveis...
Os prejuízos desse hábito não
cessam com as contrariedades, porque não se consegue improvisar defesas para um
condicionamento tão envelhecido de hora para outra. Uma faceta das mais comuns
desse “estado de suscetibilidade” aos fatos da vida pode ser verificada na
“neurose de controle”, a qual pode ser entendida como a atitude de tentar levar
a vida de forma a não permitir nenhuma contrariedade, nenhuma decepção. Essa
“neurose” pode ser considerada como uma maneira de se defender do “vício de não
ser contrariado”.
Mas não para por aqui essa
sequência de expiações na vida íntima. O esforço em controlar tudo para que as
coisas aconteçam “a gosto” tem como principal metamorfose a preocupação.
Preocupação é o resultado de quem quer ter domínio sobre tudo da sua
existência. Surge inesperadamente ou por uma razão plausível, mas é, em muitas
ocasiões, o resultado oneroso dessa “necessidade de tomar conta de tudo” para
não acontecer o pior, o inesperado.
Classifiquemos com maleabilidade
nas conceituações três espécies de dramas que vivem os contrariados:
Contrariado crônico
– é aquele que não aceitou o próprio ato de reencarnar, já trazendo impresso na
aura o clima de sua insatisfação, que irá refletir em todas as suas
realizações. Casos como esse tendem a transtornos de natureza mental.
“Colecionador de problemas”
– é aquele que traz, de outras vivências corporais, o vício da satisfação de
interesses pessoais e que busca seu ajuste com os atuais quadros de limitação
na reencarnação presente, desenvolvendo a preocupação com problemas reais e
irreais em razão de tentar um controle sobre-humano nos fatos naturais de
existência.
O adulto frustrado
– é aquela criança que foi mal orientada, que teve quase todos os seus desejos
e escolhas atendidas, criando ausência de limites e baixa resistência à
frustração. Foi a criatura impedida pelos pais de se frustrar com os problemas
próprios das crianças.
Em qualquer uma das situações
citadas, o sentimento de ofensa será parte comum na vida dessas criaturas,
podendo suscitar pequena ocorrências de decepção rotineira ou ainda dramas
dolorosos da psicopatia, conforme as tendências e valores de cada Espírito. A
psicopatologia do futuro verá na contrariedade uma grave doença mental e a
etiologia de severos transtornos da alma.
O que importa a todos nós é o
ingente trabalho de renovação no campo dos nossos interesses. Afeiçoar-se com
mais devoção a aceitar as vicissitudes da vida, com resignação e paciência,
fazendo o melhor que pudermos a cada dia em busca da recuperação pessoal,
otimismo, ante os revezes, trabalho perante as perdas, confiança e boa
convivência com amigos de ideal, serviço de amor ao próximo, instrução
consoladora, fé no futuro e boa dose de humildade são as medicações para ofensas
e ofendido na doença do melindre.
Ofendermo-nos é impulso natural
em vista dos direcionamentos que criamos nas rotas do egoísmo. Contudo, Deus
não criou um sistema de punições para seus filhos e nos concede a todo instante
o direito de perdoarmos. E, perdoar, acima de tudo, significa aprender a
aceitar sua Vontade Sábia e Justa em favor de nossa paz, na construção de dias
mais plenos em sintonia com os grandes interesses do Pai.
[1] Reforma Íntima
sem Martírio – Wanderley S. de
Oliveira
[2] Obras Póstumas, Allan Kardec – Primeira Parte: “O egoísmo e o
orgulho”.
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