terça-feira, 18 de abril de 2017

Deve-se publicar tudo quanto dizem os Espíritos?[1]

 

Esta questão nos foi dirigida por um de nossos correspondentes e a ela respondemos por meio de outra pergunta:
Seria bom publicar tudo quanto dizem e pensam os homens?
Quem quer que possua uma noção do Espiritismo, por mais superficial que seja, sabe que o mundo invisível é composto de todos os que deixaram na Terra o envoltório visível. Entretanto, pelo fato de se haverem despojado do homem carnal, nem por isso os Espíritos se revestiram da túnica dos anjos. Encontramo-los de todos os graus de conhecimento e de ignorância, de moralidade e de imoralidade; eis o que não devemos perder de vista. Não esqueçamos que entre os Espíritos, assim como na Terra, há seres levianos, estouvados e zombeteiros; pseudo-sábios, vãos e orgulhosos, de um saber incompleto; hipócritas, malvados e, o que nos pareceria inexplicável, se de algum modo não conhecêssemos a fisiologia desse mundo, existem os sensuais, os ignóbeis e os devassos, que se arrastam na lama. Ao lado disto, tal como ocorre na Terra, temos seres bons, humanos, benevolentes, esclarecidos, de sublimes virtudes; como, porém, nosso mundo não se encontra nem na primeira, nem na última posição, embora mais vizinho da última que da primeira, resulta que o mundo dos Espíritos compreende seres mais avançados intelectual e moralmente que os nossos homens mais esclarecidos, e outros que ainda estão abaixo dos homens mais inferiores.
Desde que esses seres têm um meio patente de comunicar-se com os homens, de exprimir os pensamentos por sinais inteligíveis, suas comunicações devem ser o reflexo de seus sentimentos, de suas qualidades ou de seus vícios. Serão levianas, triviais, grosseiras, mesmo obscenas, sábias, sensatas e sublimes, conforme seu caráter e sua elevação. Revelam-se por sua própria linguagem; daí a necessidade de não se aceitar cegamente tudo quanto vem do mundo oculto, e submetê-lo a um controle severo.
Com as comunicações de certos Espíritos, do mesmo modo que com os discursos de certos homens, poderíamos fazer uma coletânea muito pouco edificante. Temos sob os olhos uma pequena obra inglesa, publicada na América, que é a prova disto, e cuja leitura, podemos dizer, uma mãe não recomendaria à filha. Eis a razão por que não a recomendamos aos nossos leitores. Há pessoas que acham isso engraçado e divertido. Que se deliciem na intimidade, mas que o guardem para si mesmas. O que é ainda menos concebível é se vangloriarem de obter comunicações indecorosas; é sempre indício de simpatias que não podem ser motivo de vaidade, sobretudo quando essas comunicações são espontâneas e persistentes, como acontece a certas pessoas. Sem dúvida isto nada prejulga em relação à sua moralidade atual, porquanto encontramos criaturas atormentadas por esse gênero de obsessão, ao qual de modo algum se pode prestar o seu caráter.
Entretanto, este efeito deve ter uma causa, como todos os efeitos; se não a encontramos na existência presente, devemos buscá-la numa vida anterior. Se não estiver em nós, estará fora de nós, mas sempre nos achamos nessa situação por algum motivo, ainda que seja pela fraqueza de caráter. Conhecida a causa, depende de nós fazê-la cessar.
Ao lado dessas comunicações francamente más, e que chocam qualquer ouvido delicado, outras há que são simplesmente triviais ou ridículas. Haverá inconvenientes em publicá-las? Se forem dadas pelo que valem, serão apenas impróprias; se o forem como estudo do gênero, com as devidas precauções, os comentários e os corretivos necessários, poderão mesmo ser instrutivas, naquilo que contribuírem para tornar conhecido o mundo espiritual em todos os seus aspectos. Com prudência e habilidade tudo pode ser dito; o mal é dar como sérias coisas que chocam o bom-senso, a razão e as conveniências. Neste caso, o perigo é maior do que se pensa. Em primeiro lugar, essas publicações têm o inconveniente de induzir em erro as pessoas que não estão em condições de aprofundá-las nem de discernir o verdadeiro do falso, especialmente numa questão tão nova como o Espiritismo. Em segundo lugar, são armas fornecidas aos adversários, que não perdem tempo em tirar desse fato argumentos contra a alta moralidade do ensino espírita; porque, insistimos, o mal está em considerar como sérias coisas que constituem notórios absurdos. Alguns mesmos podem ver uma profanação no papel ridículo que emprestamos a certas personagens justamente veneradas, e às quais atribuímos uma linguagem indigna delas.
Aqueles que estudaram a fundo a ciência espírita sabem como se portar a esse respeito. Sabem que os Espíritos galhofeiros não têm o menor escrúpulo de se adornarem de nomes respeitáveis; mas sabem também que esses Espíritos não abusam senão daqueles que gostam de se deixar abusar, e que não sabem ou não querem desmascarar as suas astúcias pelos meios de controle que conhecemos. O público, que ignora isso, vê apenas um absurdo oferecido seriamente à sua admiração, o que faz com que diga: Se todos os espíritas são assim, merecem o epíteto com que foram agraciados. Sem sombra de dúvida, esse julgamento não pode ser levado em consideração; vós os acusais com justa razão de leviandade. Dizei a eles: Estudai o assunto e não examineis apenas uma face da moeda. Entretanto, há tantas pessoas que julgam a priori, sem se darem ao trabalho de virar a folha, sobretudo quando falta boa vontade, que é necessário evitar tudo quanto possa dar motivos a decisões precipitadas, porquanto, se à má vontade vier juntar-se a malevolência, o que é muito comum, ficarão encantadas de encontrar o que criticar.
Mais tarde, quando o Espiritismo estiver mais vulgarizado, mais conhecido e compreendido pelas massas essas publicações não terão maior influência do que hoje teria um livro que encerasse heresias científicas. Até lá, nunca seria demasiada a circunspeção, visto haver comunicações que podem prejudicar essencialmente a causa que querem defender, em intensidade superior aos ataques grosseiros e às injúrias de certos adversários; se algumas fossem feitas com tal objetivo, não alcançariam melhor êxito. O erro de certos autores é escrever sobre um assunto antes de tê-lo aprofundando suficientemente, dando lugar, desse modo, a uma crítica fundamentada. Queixam-se do julgamento temerário de seus antagonistas, sem se darem conta de que muitas vezes são eles mesmos que exibem uma falha na couraça. Aliás, malgrado todas as precauções, seria presunção julgarem-se ao abrigo de toda crítica: primeiro, porque é impossível contentar a todo o mundo; em segundo lugar, porque há pessoas que riem de tudo, mesmo das coisas mais sérias, uns por seu estado, outros por seu caráter. Riem muito da religião, de sorte que não é de admirar que riam dos Espíritos, que não conhecem. Se pelo menos suas brincadeiras fossem espirituosas, haveria compensação. Infelizmente, em geral não brilham nem pela finura, nem pelo bom gosto, nem pela urbanidade e muito menos pela lógica. Façamos, então, o que de melhor estiver ao nosso alcance. Pondo de nosso lado a razão e as conveniências, poremos de lado também os trocistas.
Essas considerações serão facilmente compreendidas por todos. Há, porém, uma não menos importante, que diz respeito à própria natureza das comunicações espíritas, e que não devemos omitir: Os Espíritos vão aonde acham simpatia e onde sabem que serão ouvidos. As comunicações grosseiras e inconvenientes, ou simplesmente falsas, absurdas e ridículas, não podem emanar senão de Espíritos inferiores: o simples bom-senso o indica. Esses Espíritos fazem o que fazem os homens que são ouvidos complacentemente: ligam-se àqueles que admiram as suas tolices e, frequentemente, se apoderam deles e os dominam a ponto de fasciná-los e subjugar. A importância que, pela publicidade, é concedida às suas comunicações, os atrai, excita e encoraja. O único e verdadeiro meio de os afastar é provar-lhes que não nos deixamos enganar, rejeitando impiedosamente, como apócrifo e suspeito, tudo que não for racional, tudo que desmentir a superioridade que se atribui ao Espírito que se manifesta e de cujo nome ele se reveste. Quando, então, vê que perde seu tempo, afasta-se.
Acreditamos ter respondido suficientemente à pergunta do nosso correspondente sobre a conveniência e a oportunidade de certas publicações espíritas. Publicar sem exame, ou sem correção, tudo quanto vem dessa fonte seria, em nossa opinião, dar prova de pouco discernimento. Tal é, pelo menos, a nossa opinião, que submetemos à apreciação daqueles que, estando desinteressados pela questão, podem julgar com imparcialidade, pondo de lado qualquer consideração individual. Como todo mundo, temos o direito de externar a nossa maneira de pensar sobre a ciência que constitui o objeto de nossos estudos, e de tratá-la à nossa maneira, sem pretender impor nossas ideias a quem quer que seja, nem apresentá-las como leis. Os que partilham a nossa maneira de ver são porque creem, como nós, estar com a verdade. O futuro mostrará quem está errado ou quem tem razão.

[1] Revista Espírita – Novembro/1859 – Allan Kardec

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