sexta-feira, 24 de março de 2017

Arrependimento tardio[1]



Ermance Dufaux


“Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corporal. Voltando à vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado”.

O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. V, Item 11

 
Na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas recebemos variadas comunicações de almas arrependidas que foram, algumas delas, enfeixadas pelo senhor Allan Kardec, na obra O Céu e o Inferno, sob o título “Criminosos Arrependidos” – um incomparável estudo sobre os efeitos do arrependimento depois da desencarnação.
O tema arrependimento é muito valorizado entre nós na erraticidade, porque raramente, sob as ilusões da matéria, a alma tem encontrado suficiente coragem para enfrentar a força dos sutis mecanismos de defesa criados pelo orgulho, deixando sempre para amanhã – um amanhã incerto, diga-se de passagem – a análise madura e sincera de suas faltas, o que traria muito alívio, saúde e paz interior.
Era manhã no Hospital Esperança. Após os afazeres da rotina, deixamos nossa casa em bairro próximo e rumamos para as atividades do dia. A madrugada havia sido de muito trabalho junto às esferas da crosta terrena. Após breve refazimento, nossa tarefa naquele dia que recomeçava era visitar a ala específica de espíritas em recuperação com o drama do arrependimento tardio.
Descemos aos pavilhões inferiores do hospital e chegando na ala para a qual nos destinávamos, fomos passando pelos corredores de maior sofrimento. Alas de confinamento, salas de atendimento e monitoramento, mais adiante alguns padioleiros com novas internações. No alto de uma porta larga, à semelhança daquelas nos blocos cirúrgicos dos hospitais terrenos, havia uma inscrição que dizia “entrada restrita”. Aí se encontravam os pacientes com estágios mentais agudos de arrependimento tardio.
Logo nas primeiras acomodações rende à entrada, deparamo-nos com Maria Severiana. Sua fisionomia não apresentava as mesmas disposições do dia anterior. Cabisbaixa, sua face denotava ter chorado bastante durante a noite. Com todo cuidado que devemos à dor alheia, aproximamos carinhosamente:
Bom dia Severiana!
— Bom dia nada, Ermance, estou péssima.
— O que houve, minha amiga? Ontem você se encontrava tão disposta...
— Muito difícil dizer, não sei se posso.
— Se preferir, conversaremos logo mais.
— Não, não saia daqui, preciso de alguém velando comigo. Sou todo arrependimento e perturbação.
Quando segurava a mão de Severiana e ensaiava um envolvimento mais cuidadoso, Raul, assistente da ala, fez um sinal solicitando-nos a presença em pequeno posto alguns metros adiante.
Que houve, Raul? Severiana ontem estava... — ele nem permitiu que continuássemos e disse:
Sim, ela teve autorização para acessar a sua ficha reencarnatória. Foi uma noite tumultuada para ela, mas bem melhor que a maioria dos quadros costumeiros. A orientação é no sentido de que lhe falei abertamente sobre o assunto para não criar as defesas inoportunas à sua recuperação. Graças a Deus, ela será acentuadamente no clima do arrependimento.
Sim, Raul, grata pela informação.
Regressaremos então ao diálogo com a paciente, conduzindo-o com fins terapêuticos:
Amiga querida, gostaria de expor seus dramas para nosso aprendizado?
Ermance... é muito difícil a desilusão! A sensação de perda é enorme e sinto-me envergonhada. Sei que não fui uma mulher cruel, mas joguei fora enormes chances de vencer a mim mesmo e ajudar muitas pessoas.
— Qual de nós, Severiana, tem sido exemplar na escola da reencarnação?
Sabe, porventura, quantos espíritas chegam em quadros muito mais graves que os teus?
— Tenho pouca noção, no entanto, sinto-me como a mais derrotada das mulheres espíritas.
Isso vai passar brevemente. O clima do arrependimento, embora doloroso a princípio, é a porta de acesso a indispensáveis posturas de reequilíbrios em relação ao futuro. Sem arrependimento não existe desilusão, e sem desilusão não podemos contar com a mais vantajosa das esperanças: o desejo de melhoras enriquecido pela bênção das expectativas de recomeço. O exercício da desilusão é o antídoto capaz de atenuar os reflexos das enfermidades ou faltas que ainda transportamos para além-túmulo.
Existe uma frase que considero sempre oportuna pelo seu poder consolador, a qual gostaria de ler para você, ela se encontra em O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo V, item 5, e diz: “Os sofrimentos que decorrem do pecado são lhe uma advertência de que procedeu mal. Dão-lhe experiência, fazem-lhe sentir a diferença existente entre o bem e o mal e a necessidade de se melhorar para, de futuro, evitar o que lhe originou uma fonte de amarguras”.
— Eu lhe agradeço, amiga querida. Tenho fé que meu arrependimento será impulso, embora ainda não me sinta com forças suficientes para isso. Por agora parece que estou presa em mim mesma.
— Temporariamente será assim. Logo, você perceberá que é exatamente o oposto. Digamos que o arrependimento é uma chave que liberta a consciência dos grilhões do orgulho. Enquanto peregrinamos no erro sem querer admiti-lo, temos o orgulho a nos “defender” através da criação de inúmeros mecanismos para “aliviar” nossas falhas. Chega, porém, o instante divino em que, estando demasiadamente represadas as energias da culpa, em casos como o seu, a misericórdia atua de maneira a ensejar o reajuste e a corrigenda. Sem arrepender-se, o homem é um ser que foge de si mesmo em direção aos pântanos da ilusão, por onde pode permanecer milênios e milênios. Essa não é a sua situação. Em verdade, apesar da dor, você redime-se nesse momento de um episódio recente, sem vínculos com outras quedas de seu passado mais distante. Agradeça a Deus pela ocasião e supere sua expiação. Descartando quaisquer fins de curiosidades vãs, tenho orientações para auxiliá-la a tratar o assunto em seu favor, portanto, tenho coragem.
— Farei isso amiga, farei, custe-me quanto custar! Não quero mais viver sob os auspícios desse monstro do orgulho que trago em mim. Chega de ilusão!
Enchendo o peito de ar, como quem iria enfrentar árdua batalha, começou a contar seu drama, nesses termos:
— Como sabes, fui espírita atuante nessa precedente romagem carnal. Adquiri larga bagagem doutrinária estando na direção de uma casa espírita. Conduzia com facilidade a organização despertando simpatia e boa vontade.
Fui vencida pelo velho golpe do personalismo, sentia-me muito grandiosa espiritualmente face aos compromissos que desincumbia. Como sempre, é o assalto da vaidade que, com nossa invigilância, faz uma limpa em nosso coração roubando-nos qualquer chance de lucidez e abnegação. Passei a vida com um grave problema no lar. Minha filha Cidália é uma moça extremamente rancorosa e magoada comigo sem motivos para isso. Alegava nas minhas avaliações, que éramos antigas inimigas do passado e, diante das atitudes cruéis que ela cometeu contra mim em plena adolescência, cheguei a estimular a piedade de muita gente no centro espírita em relação à minha dor. Alguns chegavam a me dizer que iria direto para sublimes esferas depois dessa prova. Ao invés de encontrar alternativas cristãs para resolver nossas desarmonias, distraí-me com o fato de criar teoremas espíritas para explicar minha infelicidade, mas jamais me perguntei, com a sinceridade necessária, como solucionar esse drama. Guardava o desejo de pacificação, todavia, nada fazia por isso que fosse realmente satisfatório. Fantasias e mais fantasias rondavam minha experiência, inúmeras orientações consideradas como mediúnicas falavam em obsessores perseguindo minha filha e a mim. E agora, quando fui ler minha ficha, iniciei um ciclo novo e percebi que fui vítima da mentira que me agradou. Teorizei muito sobre o que me ocorria, e amei pouco. Entretanto, Ermance, o mais grave você não sabe e estava lá anotado na ficha que ainda ontem tive acesso nos arquivos, aqui no Hospital Esperança. Algo que escondi de todos e jamais mencionei a ninguém, em tempo algum. Não poderia imaginar um caso como o meu. Nem sequer, apesar do conhecimento espírita, poderia supor uma historia tão incomum como a minha.
A essa altura da explanação, Severiana ruborizou-se e perdeu o fôlego.
Suspirou sofregamente e continuou:
— Fui levada ao Espiritismo depois de uma tentativa frustrada de abortar uma filha com quatro semanas de gravidez. Tomada de uma depressão e debaixo das cobranças por ser mãe solteira, cheguei a desequilibrar-me emocionalmente. O tempo passava e não tinha coragem para o ato nefando; por várias circunstâncias não cheguei a executá-lo. A filha nasceu, é Cidália a quem me referi, minha única filha.
Guardei comigo o segredo e parti da Terra com ele sem que ninguém jamais pudesse imaginar que um dia estive disposta a esse crime. As leis divinas, no entanto, são perfeitas. Minha desilusão começou ontem. Em princípio amaldiçoei essa ficha e achei impiedoso que permitissem acessá-la.
Agora, com muita luta começa a compreender melhor.
— E que revelação tão dura trouxe-te seus informes reencarnatórios?
— Cidália renasceu com propósitos de ser uma companheira valorosa e companhia enriquecedora para minha solidão na vida. As informações me deram notícia de que é uma alma enormemente frustrada nos roteiros do aborto e que, após quedas sucessivas, estava reiniciando uma caminhada de recuperação nas duas últimas existências corporais para cá. Contudo, o meu ato, impensado de expulsá-la do ventre, em plena gestação inicial, traumatizou-a sensivelmente face às lutas conscienciais que ela já carrega com o assunto. O registro emocional foi ameaçador ao psiquismo da reencarnante. Seu rancor e sua mágoa contra mim nasceram ali e nada tinham com ausência de afinidade ou carmas do pretérito. Ao substituir a culpa da tentativa de aborto pelas ideias de um passado suspeito e não confirmado, nada mais fiz que tamponar minhas más intenções. As anotações finais da ficha davam nota de que, se tivesse sido sincera com Cidália e rogado perdão, desarticularia em seu campo psíquico um mecanismo defensivo, próprio de corações que faliram nos despenhadeiros do repugnante infanticídio. Fico aqui nas minhas amarguras me cobrando severamente, mas como poderia saber disso. Ermance? Não supunha que a simples intenção poderia ser tão nociva. Você não acha que estou sendo muito rigorosa?
Claro que sim, Severiana. Contudo, não abdique da oportunidade. É sua chance de refazer os caminhos e futuramente amparar Cidália. De fato, não tinha como saber disso, o que não isenta da responsabilidade do ato. Faltou-te o auto-perdão e o desejo sincero do encontro com tuas culpas. Essa tem sido a opção da maioria esmagadora da humanidade. Preferem a fuga a ter que fazerem o doloroso encontro com a sombra. Sua experiência poderá ser muito útil aos amigos na carne, caso me autorize a conta-la.
Certamente lhes ampliará um pouco a visão sobre as infinitas possibilidades que a vida apresenta, nos roteiros da nossa redenção espiritual. Nem reencarnações passadas, nem obsessões, nem carmas, puramente um episódio aparentemente fortuito da existência que lhe rendeu os frutos amargos dessa hora. Um conjunto de situações reunidas talhando a realidade de cada um.
Nada por acaso, nada sem razões explicáveis, conquanto nem sempre conhecidas.
— Oportunamente, quando estiver melhor, gostaria de lhe narrar alguns detalhes para que a minha queda seja alerta e orientação a outras pessoas. Por agora, peço sua ajuda e a de Deus para que consiga me auto perdoar.
— Severiana, hoje você é a mãe caída e frustrada, entretanto a vida convida-te para se tornar o exemplo a muitas almas.
— Você tem razão, Ermance. A ficha — que fichinha dolorosa, exclamou melancólico — mencionava que caso tivesse adotado a postura de me perdoar, poderia ter contado a inúmeras criaturas a minha intenção irrefletida, a inconveniência do ato abortista ou o mal que pode causar sua simples intenção.
Ainda que desconhecendo os detalhes que agora conheço, poderia falar do que significa em dor para uma mãe trazer na lembrança, diante da excelsitude de uma criança que nasceu de seu ventre, as ideias enfermiças de que um dia teria pensado em surrupiar-lhe a vida. Enfim, aprendi que a simples intenção nos códigos da eterna justiça, dependendo dos compromissos de cada qual, é quase a mesma coisa que agir...
Severiana recuperou-se rapidamente e prepara-se para retornar como neta de Cidália. São passados pouco mais de dois decênios de sua queda e sua alma espera a remissão nos braços da avó.
Todavia, quem arrepende precisa de muito trabalho reparativo e luz nos raciocínios. Foi o que fez a nossa amiga. Não cessou de amparar e servir. Enquanto aguardava sua oportunidade, integrou as equipes de serviço aos abortistas no Hospital Esperança e aprendeu lições preciosas de consolo pra seu próprio drama.
Se não existisse melhor redentor na vida espiritual, as almas teriam que reencarnar com brevidade porque não suportariam o nível mental das recordações e perturbações do arrependimento.
O serviço em nosso plano é uma preliminar para as provas futuras na reencarnação.
Como sempre, o livro-luz traz em suas páginas incomparáveis uma questão que resume com perfeição o caso que narramos. Eis a pergunta:
“Qual a consciência do arrependimento no estado espiritual?”
“Desejar o arrependido uma nova reencarnação para se purificar. O Espírito compreende as imperfeições que o privam de ser feliz e por isso aspira a uma nova existência em que possa expiar suas faltas[2]”.
 


[1] Reforma Íntima sem Martírio – Wanderley S. de Oliveira
[2] O Livro dos Espíritos – Questão 991.

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