Ermance Dufaux
“Aliás, o esquecimento ocorre apenas durante a vida corporal. Voltando
à vida espiritual, readquire o Espírito a lembrança do passado”.
O Evangelho Segundo o Espiritismo – Cap. V, Item 11
Na Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas recebemos variadas comunicações de almas arrependidas que
foram, algumas delas, enfeixadas pelo senhor Allan Kardec, na obra O Céu
e o Inferno, sob o título “Criminosos Arrependidos” – um incomparável
estudo sobre os efeitos do arrependimento depois da desencarnação.
O tema arrependimento é muito
valorizado entre nós na erraticidade, porque raramente, sob as ilusões da
matéria, a alma tem encontrado suficiente coragem para enfrentar a força dos
sutis mecanismos de defesa criados pelo orgulho, deixando sempre para amanhã –
um amanhã incerto, diga-se de passagem – a análise madura e sincera de suas
faltas, o que traria muito alívio, saúde e paz interior.
Era manhã no Hospital Esperança.
Após os afazeres da rotina, deixamos nossa casa em bairro próximo e rumamos
para as atividades do dia. A madrugada havia sido de muito trabalho junto às
esferas da crosta terrena. Após breve refazimento, nossa tarefa naquele dia que
recomeçava era visitar a ala específica de espíritas em recuperação com o drama
do arrependimento tardio.
Descemos aos pavilhões
inferiores do hospital e chegando na ala para a qual nos destinávamos, fomos
passando pelos corredores de maior sofrimento. Alas de confinamento, salas de
atendimento e monitoramento, mais adiante alguns padioleiros com novas
internações. No alto de uma porta larga, à semelhança daquelas nos blocos
cirúrgicos dos hospitais terrenos, havia uma inscrição que dizia “entrada
restrita”. Aí se encontravam os pacientes com estágios mentais agudos de arrependimento
tardio.
Logo nas primeiras acomodações
rende à entrada, deparamo-nos com Maria Severiana. Sua fisionomia não
apresentava as mesmas disposições do dia anterior. Cabisbaixa, sua face
denotava ter chorado bastante durante a noite. Com todo cuidado que devemos à
dor alheia, aproximamos carinhosamente:
— Bom dia Severiana!
— Bom dia nada, Ermance, estou péssima.
— O que houve, minha amiga? Ontem você se encontrava tão disposta...
— Muito difícil dizer, não sei se posso.
— Se preferir, conversaremos logo mais.
— Não, não saia daqui, preciso de alguém velando comigo. Sou todo arrependimento
e perturbação.
Quando segurava a mão de
Severiana e ensaiava um envolvimento mais cuidadoso, Raul, assistente da ala,
fez um sinal solicitando-nos a presença em pequeno posto alguns metros adiante.
— Que houve, Raul? Severiana ontem estava... — ele nem permitiu que continuássemos
e disse:
— Sim, ela teve autorização para acessar a sua ficha reencarnatória. Foi uma
noite tumultuada para ela, mas bem melhor que a maioria dos quadros costumeiros.
A orientação é no sentido de que lhe falei abertamente sobre o assunto para não
criar as defesas inoportunas à sua recuperação. Graças a Deus, ela será acentuadamente
no clima do arrependimento.
— Sim, Raul, grata pela informação.
Regressaremos então ao diálogo
com a paciente, conduzindo-o com fins terapêuticos:
— Amiga querida, gostaria de expor seus dramas para nosso aprendizado?
— Ermance... é muito difícil a desilusão! A sensação de perda é enorme e sinto-me
envergonhada. Sei que não fui uma mulher cruel, mas joguei fora enormes chances
de vencer a mim mesmo e ajudar muitas pessoas.
— Qual de nós, Severiana, tem sido exemplar na escola da reencarnação?
Sabe, porventura, quantos espíritas chegam em quadros muito mais graves
que os teus?
— Tenho pouca noção, no entanto, sinto-me como a mais derrotada das mulheres
espíritas.
— Isso vai passar brevemente. O clima do arrependimento, embora doloroso
a princípio, é a porta de acesso a indispensáveis posturas de reequilíbrios em
relação ao futuro. Sem arrependimento não existe desilusão, e sem desilusão não
podemos contar com a mais vantajosa das esperanças: o desejo de melhoras enriquecido
pela bênção das expectativas de recomeço. O exercício da desilusão é o antídoto
capaz de atenuar os reflexos das enfermidades ou faltas que ainda transportamos
para além-túmulo.
Existe uma frase que considero sempre oportuna pelo seu poder
consolador, a qual gostaria de ler para você, ela se encontra em O Evangelho Segundo o Espiritismo,
capítulo V, item 5, e diz: “Os sofrimentos que decorrem do pecado são lhe uma
advertência de que procedeu mal. Dão-lhe experiência, fazem-lhe sentir a
diferença existente entre o bem e o mal e a necessidade de se melhorar para, de
futuro, evitar o que lhe originou uma fonte de amarguras”.
— Eu lhe agradeço, amiga querida. Tenho fé que meu arrependimento será impulso,
embora ainda não me sinta com forças suficientes para isso. Por agora parece
que estou presa em mim mesma.
— Temporariamente será assim. Logo, você perceberá que é exatamente o oposto.
Digamos que o arrependimento é uma chave que liberta a consciência dos grilhões
do orgulho. Enquanto peregrinamos no erro sem querer admiti-lo, temos o orgulho
a nos “defender” através da criação de inúmeros mecanismos para “aliviar” nossas
falhas. Chega, porém, o instante divino em que, estando demasiadamente represadas
as energias da culpa, em casos como o seu, a misericórdia atua de maneira a
ensejar o reajuste e a corrigenda. Sem arrepender-se, o homem é um ser que foge
de si mesmo em direção aos pântanos da ilusão, por onde pode permanecer
milênios e milênios. Essa não é a sua situação. Em verdade, apesar da dor, você
redime-se nesse momento de um episódio recente, sem vínculos com outras quedas
de seu passado mais distante. Agradeça a Deus pela ocasião e supere sua
expiação. Descartando quaisquer fins de curiosidades vãs, tenho orientações
para auxiliá-la a tratar o assunto em seu favor, portanto, tenho coragem.
— Farei isso amiga, farei, custe-me quanto custar! Não quero mais viver
sob os auspícios desse monstro do orgulho que trago em mim. Chega de ilusão!
Enchendo o peito de ar, como
quem iria enfrentar árdua batalha, começou a contar seu drama, nesses termos:
— Como sabes, fui espírita atuante nessa precedente romagem carnal. Adquiri
larga bagagem doutrinária estando na direção de uma casa espírita. Conduzia com
facilidade a organização despertando simpatia e boa vontade.
Fui vencida pelo velho golpe do personalismo, sentia-me muito grandiosa
espiritualmente face aos compromissos que desincumbia. Como sempre, é o assalto
da vaidade que, com nossa invigilância, faz uma limpa em nosso coração roubando-nos
qualquer chance de lucidez e abnegação. Passei a vida com um grave problema no
lar. Minha filha Cidália é uma moça extremamente rancorosa e magoada comigo sem
motivos para isso. Alegava nas minhas avaliações, que éramos antigas inimigas do
passado e, diante das atitudes cruéis que ela cometeu contra mim em plena adolescência,
cheguei a estimular a piedade de muita gente no centro espírita em relação à
minha dor. Alguns chegavam a me dizer que iria direto para sublimes esferas
depois dessa prova. Ao invés de encontrar alternativas cristãs para resolver nossas
desarmonias, distraí-me com o fato de criar teoremas espíritas para explicar minha
infelicidade, mas jamais me perguntei, com a sinceridade necessária, como solucionar
esse drama. Guardava o desejo de pacificação, todavia, nada fazia por isso que
fosse realmente satisfatório. Fantasias e mais fantasias rondavam minha experiência,
inúmeras orientações consideradas como mediúnicas falavam em obsessores
perseguindo minha filha e a mim. E agora, quando fui ler minha ficha, iniciei
um ciclo novo e percebi que fui vítima da mentira que me agradou. Teorizei muito
sobre o que me ocorria, e amei pouco. Entretanto, Ermance, o mais grave você
não sabe e estava lá anotado na ficha que ainda ontem tive acesso nos arquivos,
aqui no Hospital Esperança. Algo que escondi de todos e jamais mencionei a ninguém,
em tempo algum. Não poderia imaginar um caso como o meu. Nem sequer, apesar do
conhecimento espírita, poderia supor uma historia tão incomum como a minha.
A essa altura da explanação,
Severiana ruborizou-se e perdeu o fôlego.
Suspirou sofregamente e
continuou:
— Fui levada ao Espiritismo depois de uma tentativa frustrada de
abortar uma filha com quatro semanas de gravidez. Tomada de uma depressão e
debaixo das cobranças por ser mãe solteira, cheguei a desequilibrar-me emocionalmente.
O tempo passava e não tinha coragem para o ato nefando; por várias
circunstâncias não cheguei a executá-lo. A filha nasceu, é Cidália a quem me
referi, minha única filha.
Guardei comigo o segredo e parti da Terra com ele sem que ninguém
jamais pudesse imaginar que um dia estive disposta a esse crime. As leis
divinas, no entanto, são perfeitas. Minha desilusão começou ontem. Em princípio
amaldiçoei essa ficha e achei impiedoso que permitissem acessá-la.
Agora, com muita luta começa a compreender melhor.
— E que revelação tão dura trouxe-te seus informes reencarnatórios?
— Cidália renasceu com propósitos de ser uma companheira valorosa e companhia
enriquecedora para minha solidão na vida. As informações me deram notícia de
que é uma alma enormemente frustrada nos roteiros do aborto e que, após quedas
sucessivas, estava reiniciando uma caminhada de recuperação nas duas últimas
existências corporais para cá. Contudo, o meu ato, impensado de expulsá-la do
ventre, em plena gestação inicial, traumatizou-a sensivelmente face às lutas conscienciais
que ela já carrega com o assunto. O registro emocional foi ameaçador ao
psiquismo da reencarnante. Seu rancor e sua mágoa contra mim nasceram ali e nada
tinham com ausência de afinidade ou carmas do pretérito. Ao substituir a culpa da
tentativa de aborto pelas ideias de um passado suspeito e não confirmado, nada mais
fiz que tamponar minhas más intenções. As anotações finais da ficha davam nota
de que, se tivesse sido sincera com Cidália e rogado perdão, desarticularia em seu
campo psíquico um mecanismo defensivo, próprio de corações que faliram nos despenhadeiros
do repugnante infanticídio. Fico aqui nas minhas amarguras me cobrando
severamente, mas como poderia saber disso. Ermance? Não supunha que a simples
intenção poderia ser tão nociva. Você não acha que estou sendo muito rigorosa?
— Claro que sim, Severiana. Contudo, não abdique da oportunidade. É sua chance
de refazer os caminhos e futuramente amparar Cidália. De fato, não tinha como
saber disso, o que não isenta da responsabilidade do ato. Faltou-te o auto-perdão
e o desejo sincero do encontro com tuas culpas. Essa tem sido a opção da maioria
esmagadora da humanidade. Preferem a fuga a ter que fazerem o doloroso encontro
com a sombra. Sua experiência poderá ser muito útil aos amigos na carne, caso
me autorize a conta-la.
Certamente lhes ampliará um pouco a visão sobre as infinitas
possibilidades que a vida apresenta, nos roteiros da nossa redenção espiritual.
Nem reencarnações passadas, nem obsessões, nem carmas, puramente um episódio
aparentemente fortuito da existência que lhe rendeu os frutos amargos dessa
hora. Um conjunto de situações reunidas talhando a realidade de cada um.
Nada por acaso, nada sem razões explicáveis, conquanto nem sempre
conhecidas.
— Oportunamente, quando estiver melhor, gostaria de lhe narrar alguns detalhes
para que a minha queda seja alerta e orientação a outras pessoas. Por agora, peço
sua ajuda e a de Deus para que consiga me auto perdoar.
— Severiana, hoje você é a mãe caída e frustrada, entretanto a vida convida-te
para se tornar o exemplo a muitas almas.
— Você tem razão, Ermance. A ficha — que fichinha dolorosa, exclamou melancólico
— mencionava que caso tivesse adotado a postura de me perdoar, poderia ter
contado a inúmeras criaturas a minha intenção irrefletida, a inconveniência do
ato abortista ou o mal que pode causar sua simples intenção.
Ainda que desconhecendo os detalhes que agora conheço, poderia falar do
que significa em dor para uma mãe trazer na lembrança, diante da excelsitude de
uma criança que nasceu de seu ventre, as ideias enfermiças de que um dia teria
pensado em surrupiar-lhe a vida. Enfim, aprendi que a simples intenção nos
códigos da eterna justiça, dependendo dos compromissos de cada qual, é quase a
mesma coisa que agir...
Severiana recuperou-se rapidamente
e prepara-se para retornar como neta de Cidália. São passados pouco mais de
dois decênios de sua queda e sua alma espera a remissão nos braços da avó.
Todavia, quem arrepende precisa
de muito trabalho reparativo e luz nos raciocínios. Foi o que fez a nossa
amiga. Não cessou de amparar e servir. Enquanto aguardava sua oportunidade,
integrou as equipes de serviço aos abortistas no Hospital Esperança e aprendeu
lições preciosas de consolo pra seu próprio drama.
Se não existisse melhor redentor
na vida espiritual, as almas teriam que reencarnar com brevidade porque não
suportariam o nível mental das recordações e perturbações do arrependimento.
O serviço em nosso plano é uma
preliminar para as provas futuras na reencarnação.
Como sempre, o livro-luz traz em
suas páginas incomparáveis uma questão que resume com perfeição o caso que
narramos. Eis a pergunta:
“Qual a consciência do arrependimento no estado espiritual?”
“Desejar o arrependido uma nova reencarnação para se purificar. O
Espírito compreende as imperfeições que o privam de ser feliz e por isso aspira
a uma nova existência em que possa expiar suas faltas[2]”.
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