terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Fenômeno de Bicorporeidade[1]

 


Um dos membros da Sociedade nos dá ciência de uma carta de um de seus amigos de Boulogne-sur-Mer, datada de 26 de julho de 1856, na qual se lê a seguinte passagem:
“Desde que o magnetizei por ordem dos Espíritos, meu filho tornou-se um médium muito raro: pelo menos foi o que me revelou no estado sonambúlico no qual eu o havia posto, atendendo ao pedido seu de 14 de maio último, e quatro ou cinco vezes depois.
Para mim é fora de dúvida que, desperto, meu filho conversa livremente com os Espíritos que deseja, por intermédio de seu guia, que chama familiarmente de seu amigo; que se transporta à vontade em Espírito aonde deseja. Vou citar um fato cujas provas escritas tenho em mãos.
Há exatamente um mês estávamos os dois na sala de jantar. Eu lia o curso de magnetismo do Sr. Du Potet quando meu filho pegou o livro e o folheou; chegando num certo trecho, seu guia lhe disse ao ouvido: Lê isso. Era a aventura de um médico da América, cujo Espírito tinha visitado um amigo que dormia, a quinze ou vinte léguas de distância. Depois de o haver lido, disse: Bem que gostaria de fazer uma pequena viagem semelhante. – Pois bem! – disse o guia – Aonde queres ir?A Londres, para ver os amigos. – respondeu meu filho, designando os que desejava visitar.
Amanhã é domingo – foi a resposta – e não és obrigado a te levantares cedo para trabalhar. Dormirás às oito horas e irás viajar a Londres até às oito e meia. Na próxima sexta-feira receberás uma carta de teus amigos, censurando-te por haveres permanecido tão pouco tempo com eles.
Efetivamente, na manhã do dia seguinte, na hora indicada, ele adormeceu profundamente. Despertei-o às oito e meia: não se lembrava de nada; de minha parte não lhe disse uma só palavra, aguardando os acontecimentos.
Na sexta-feira seguinte eu trabalhava em uma de minhas máquinas e, como de hábito, fumava, pois já havia almoçado; olhando a fumaça do cachimbo meu filho diz: – Olha! Há uma carta na fumaça. – Como vês uma carta na fumaça?Tu a verás – responde ele – pois eis que o carteiro a está trazendo.
Efetivamente, o carteiro veio entregar uma carta de Londres, na qual os amigos de meu filho o censuravam por não haver passado com eles senão alguns instantes, no domingo precedente, das oito às oito horas e meia, com uma porção de detalhes que seria longo demais repetir aqui, entre os quais o fato singular de ter almoçado com eles. Como disse, tenho a carta, a provar que nada inventei.”
Tendo sido narrado o fato acima, disse um dos assistentes que a História se reporta a diversos fatos semelhantes, e citou Santo Afonso de Liguori, canonizado antes do tempo requerido por se haver mostrado simultaneamente em dois lugares distintos, o que passou por milagre.
Santo Antônio de Pádua achava-se na Espanha[2] e, no instante em que predicava, seu pai, acusado de assassinato, ia ser supliciado em Pádua. Nesse momento aparece Antônio, demonstrando a inocência do pai e revelando o verdadeiro criminoso, que mais tarde sofreu o castigo. Foi constatado que no mesmo instante Santo Antônio pregava na Espanha.
Tendo sido evocado, dirigimos as seguintes perguntas a Santo Afonso de Liguori:
1. O fato pelo qual fostes canonizado é real?
Sim.
2. Esse fenômeno é excepcional?
Não; pode apresentar-se em todos os indivíduos desmaterializados.
3. Era motivo justo para vos canonizarem?
Sim, desde que por minha virtude, eu me havia elevado até Deus; sem isso não teria podido transportar-me simultaneamente para dois lugares diferentes.
4. Todos os indivíduos, nos quais se apresentam esses fenômenos, merecem ser canonizados?
Não, porque nem todos são igualmente virtuosos.
5. Poderíeis dar-nos a explicação desse fenômeno?
Sim. Quando o homem, por sua virtude, se acha completamente desmaterializado, quando elevou sua alma para Deus, pode aparecer em dois lugares ao mesmo tempo, do seguinte modo: sentindo vir o sono, pode o Espírito encarnado pedir a Deus para transportar-se a um lugar qualquer. Seu Espírito ou sua alma, como quiserdes chamá-lo, abandona então o corpo, seguido de uma parte de seu perispírito, deixando a matéria imunda num estado vizinho ao da morte. Digo vizinho da morte porque ficou no corpo um laço, ligando o perispírito e a alma à matéria, e esse laço não pode ser definido. O corpo então aparece no lugar desejado. Creio que é tudo quanto desejais saber.
6. Isso não nos dá a explicação da visibilidade e da tangibilidade do perispírito.
Achando-se o Espírito desprendido da matéria, conforme seu grau de elevação, pode tornar-se tangível à matéria.
7. Entretanto, certas aparições tangíveis de mãos e de outras partes do corpo pertencem, evidentemente, a Espíritos de ordem inferior.
São Espíritos superiores que se servem dos inferiores, a fim de provarem o fenômeno.
8. O sono do corpo é indispensável para que o Espírito apareça em outros lugares?
A alma pode dividir-se quando se sente transportada a um lugar diferente daquele onde se acha o seu corpo.
9. Estando mergulhado em sono profundo, enquanto seu Espírito aparece alhures, o que aconteceria a um homem que fosse subitamente despertado?
Isso não ocorreria, porque se alguém tivesse a intenção de despertá-lo, o Espírito retornaria ao corpo, pois, lendo o pensamento, saberia prever essa situação.
Tácito refere um fato análogo[3]:
“Durante os meses que Vespasiano passou em Alexandria, aguardando a volta dos ventos estivais e da estação em que o mar oferece segurança, muitos prodígios ocorreram, pelos quais se manifestaram a proteção do céu e o interesse que os deuses tomavam por aquele príncipe...
Esses prodígios redobraram o desejo, que Vespasiano alimentava, de visitar a sagrada morada do deus, para consulta-lo sobre as coisas do Império. Ordenou que o templo se conservasse fechado para quem quer que fosse e, tendo nele entrado, estava todo atento ao que ia dizer o oráculo, quando percebeu, por detrás de si, um dos mais eminentes egípcios, chamado Basílide, que ele sabia estar doente, em lugar distante muitos dias de Alexandria.
Inquiriu dos sacerdotes se Basílide viera naquele dia ao templo; inquiriu dos transeuntes se o tinham visto na cidade; por fim, despachou alguns homens a cavalo, para saberem de Basílide e veio a certificar-se de que, no momento em que este lhe aparecera, estava a oitenta milhas de distância. Desde então, não mais duvidou de que tivesse sido sobrenatural a visão, e o nome de Basílide lhe ficou valendo por um oráculo”. (Tácito: Histórias, liv. IV, caps. 81 e 82. Tradução de Burnouf).
Desde que essa comunicação nos foi feita, diversos fatos do mesmo gênero, cuja fonte é autêntica, foram-nos relatados e, entre eles, existem alguns muito recentes, que por assim dizer ocorreram em nosso meio e se apresentaram nas mais singulares circunstâncias. As explicações às quais deram lugar alargaram o campo das observações psicológicas de maneira extraordinária.
A questão dos homens duplos, outrora relegada entre os contos fantásticos, parece ter, assim, um fundo de verdade.




[1] Revista Espírita – Dezembro/1858 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Na verdade, Santo Antônio pregava na Itália, no instante em que seu pai ia ser supliciado em Portugal (Lisboa).
[3] N. do T.: Vide O Livro dos Médiuns – Segunda Parte – capítulo VII – item 120.

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