quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

AS DUAS MORTES[1]

 
           Vendo Jesus uma multidão em redor de si, mandou passar para a outra margem do lago. E chegou um escriba e disse-lhe: Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores. Respondeu-lhe Jesus:
          - As raposas têm seus covis, e as aves do céu seus pousos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.
           E um outro discípulo disse-lhe:
          - Senhor, deixa-me ir primeiro enterrar meu pai.
           Porém Jesus respondeu-lhe:
          - Segue-me, e deixa que os mortos enterrem os seus mortos.
(Mateus, VIII:18-22)

 
Existem duas vidas, devem consequentemente existir duas mortes: a morte concreta e a morte abstrata.
Quando o homem morre, os membros se lhe enrijecem, seu calor desaparece, suas células se multiplicam e se avolumam; a putrefação anuncia a desagregação molecular e a personalidade desfigurada desaparece nas voragens do túmulo.
Quando a alma morre, é o censo moral que se enrijece; e o frio da descrença caracteriza o cadáver; são as más paixões que denunciam a decomposição do indivíduo e ei-lo, sepulcro ambulante, em trânsito pelas necrópoles dos vícios, ostentando suntuoso mausoléu!
Há alma morta em corpo vivo, porque, assim como o corpo sem alma é morto, o Espírito sem a Fé que vivifica e felicita é um ser inerte como um cadáver.
O corpo morto tem olhos e não vê, tem ouvidos e não ouve, tem boca e não fala, tem cérebro e não raciocina, tem braços e não se move, tem pernas e não anda, tem nariz e não cheira; o tato desaparece e até o coração, o fígado, o estômago, os intestinos, que produzem trabalho mecânico, jazem quedos, inertes, glaciais. A alma, quando morta, também perde a sensação e a percepção: não pensa, não sente a Vida, não percebe a Moral; nenhum som, nenhuma cor, nenhum perfume, nenhum ato generoso, nenhuma ação Divina consegue despertar esse “Lázaro” encerrado em sepulcro de carne!
Como é terrível a morte da alma! Mais estranha e penosa coisa é a morte da alma que a morte do corpo.
A morte do corpo é a libertação do Espírito; a morte da alma é a sua escravidão ao serviço da carne.
Há morte do corpo e há morte da alma.
Glorioso é o dia da morte do corpo para os Espíritos que vivem; terrível é o dia da morte do corpo para os Espíritos mortos. Entretanto para uns, como para outros, há ressurreição; aqueles ressurgem para a glória e estes para a condenação; daí a proposição de ficarem os mortos incumbidos do enterro dos seus mortos!
Existem duas mortes: a morte concreta, que destrói a personalidade (o corpo — a figura aparente do Eu); e a morte abstrata, que adormece, desfigura, deprime a individualidade, o ser que prevalece na Vida Eterna.
A morte do corpo, para a alma morta, é o arrebatamento do indivíduo que fica forçado a alhear-se de todos os bens da Terra, de todos os gozos mundanos e até dos seres que o cercavam na vida do mundo.
A morte da alma é a abstração de tudo o que interessa à Vida Imortal, é a ausência de todos os bens incorruptíveis, é o desconhecimento da Divindade, é a pobreza dos sentimentos nobres, do caráter, da virtude.
Existem duas vidas, existem duas mortes; existem duas estradas, duas portas; existem dois senhores, sigamos o Senhor do Céu e deixemos que os mortos enterrem os seus mortos!



[1] Parábolas e Ensinos de Jesus - Cairbar Schutel

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