Há tendências viciosas que são
evidentemente próprias do Espírito, porque se apegam mais ao moral do que ao físico;
outras, parecem antes dependentes do organismo, e, por esse motivo, menos
responsáveis são julgados os que as possuem: consideram-se como tais as
disposições à cólera, à preguiça, à sensualidade etc..
Hoje, está plenamente
reconhecido pelos filósofos espiritualistas que os órgãos cerebrais
correspondentes a diversas aptidões devem o seu desenvolvimento à atividade do
Espírito. Assim, esse desenvolvimento é um efeito e não uma causa. Um homem não
é músico porque tenha a bossa da música, mas possui essa tendência porque o seu
Espírito é musical. Se a atividade do Espírito reage sobre o cérebro, deve
também reagir sobre as outras partes do organismo.
O Espírito é, deste modo, o
artista do próprio corpo, por ele talhado, por assim dizer, à feição das suas
necessidades e à manifestação das suas tendências.
Desta forma a perfeição corporal
das raças adiantadas deixa de ser produto de criações distintas para ser o
resultado do trabalho espiritual, que aperfeiçoa o invólucro material à medida
que as faculdades aumentam.
Por uma consequência natural
deste princípio, as disposições morais do Espírito devem modificar as
qualidades do sangue, dar-lhe maior ou menor atividade, provocar uma secreção
mais ou menos abundante de bílis ou de quaisquer outros fluidos. É assim, por
exemplo, que ao glutão enchesse-lhe a boca de saliva diante dum prato
apetitoso.
Certo é que a iguaria não pode
excitar o órgão do paladar, uma vez que com ele não tem contato; é, pois, o
Espírito, cuja sensibilidade é despertada, que atua sobre aquele órgão pelo
pensamento, enquanto que outra pessoa permanecerá indiferente à vista do mesmo
acepipe. É ainda por este motivo que a pessoa sensível facilmente verte
lágrimas.
Não é, porém, a abundância
destas que dá sensibilidade ao Espírito, mas precisamente a sensibilidade deste
que provoca a secreção abundante das lágrimas. Sob o império da sensibilidade,
o organismo condiciona-se[2]
à disposição normal do Espírito, do mesmo modo por que se condiciona à disposição
do Espírito glutão.
Seguindo esta ordem de ideias,
compreende-se que um Espírito irascível deve encaminhar-se para estimular um temperamento
bilioso, do que resulta não ser um homem colérico por bilioso, mas bilioso por
colérico. O mesmo se dá em relação a todas as outras disposições instintivas:
um Espírito indolente e fraco deixará o organismo em estado de atonia relativo
ao seu caráter, ao passo que, ativo e enérgico, dará ao sangue como aos nervos
qualidades perfeitamente opostas. A ação do Espírito sobre o físico é tão
evidente que não raro vemos graves desordens orgânicas sobrevirem a violentas
comoções morais.
A expressão vulgar: — A emoção
transtornou-lhe o sangue — não é tão destituída de sentido quanto se poderia supor.
Ora, que poderia transtornar o sangue senão as disposições morais do Espírito?
Pode admitir-se por conseguinte,
ao menos em parte, que o temperamento é determinado pela natureza do Espírito, que
é causa e não efeito.
E nós dizemos em parte, porque
há casos em que o físico influi evidentemente sobre o moral, tais como quando um
estado mórbido ou anormal é determinado por causa externa, acidental,
independente do Espírito, como sejam a temperatura, o clima, os defeitos
físicos congênitos, uma doença passageira etc.
O moral do Espírito pode, nesses
casos, ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que a sua
natureza intrínseca seja modificada. Escusar-se de seus erros por fraqueza da
carne não passa de sofisma para escapar a responsabilidades.
A carne só é fraca porque o
Espírito é fraco, o que inverte a questão deixando àquele a responsabilidade de
todos os seus atos. A carne, destituída de pensamento e vontade, não pode
prevalecer jamais sobre o Espírito, que é o ser pensante e de vontade própria.
O Espírito é quem dá à carne as
qualidades correspondentes ao seu instinto, tal como o artista que imprime à obra
material o cunho do seu gênio. Libertado dos instintos da bestialidade, elabora
um corpo que não é mais um tirano de sua aspiração, para espiritualidade do seu
ser, e é quando o homem passa a comer para viver e não mais vive para comer.
A responsabilidade moral dos
atos da vida fica, portanto, intacta; mas a razão nos diz que as consequências dessa
responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do
Espírito. Assim, quanto mais esclarecido for este, menos desculpável se torna,
uma vez que com a inteligência e o senso moral nascem as noções do bem e do
mal, do justo e do injusto.
Esta lei explica o insucesso da
Medicina em certos casos.
Desde que o temperamento é um
efeito e não uma causa, todo o esforço para modificá-lo se nulifica ante as
disposições morais do Espírito, opondo-lhe uma resistência inconsciente que
neutraliza a ação terapêutica. Por conseguinte, sobre a causa primordial é que
se deve atuar.
Daí, se possível, coragem ao
poltrão, e vereis para logo cessados os efeitos fisiológicos do medo.
Isto prova ainda uma vez a
necessidade, para a arte de curar, de levar em conta a influência espiritual
sobre os organismos.(Ver Revue Spirite
de março de 1869)
[2] O autor escreveu s’est approprié (p. 93, 4ª edição,
Paris, 1869), à falta, na época, de verbo mais específico à perfeita tradução
da ideia. Nota da Editora (FEB), em 1973.
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