Paulo Henrique de Figueiredo
Basta perguntar, a maioria dos
espíritas recebeu uma catequização católica, ao menos na infância. Talvez
esteja aí a raiz de uma peculiar transferência. Ainda imerso nas descrições
clericais da vida após a morte, o principiante espírita faz uma troca apenas de
nome, deixa de temer o inferno, e passa a temer o umbral. Muda o nome,
permanece a ameaça. Uma senhora, no saguão da casa espírita, já afirmou: Luto todo dia para não fazer nada de errado,
pelo de medo de ir para o umbral quando chegar a hora. Meu sonho são os jardins
e delícias da colônia espiritual Nosso Lar!
É um senso comum, uma
transferência natural de uma criação milenar, pertencente a diversas tradições
pagãs e cristãs, os infernos, onde o sofrimento impera e castiga, e uma
doutrina ainda pouco compreendida, contanto apenas 150 anos de sua elaboração,
o espiritismo!
Allan Kardec sabia que seria
necessário esclarecer minuciosamente estas questões, para apresentar o quadro
novo do mundo espiritual aos egressos do dogmatismo católico. Por isso, retomou
todo catecismo e teologia adotada pela igreja e raciocinou quanto a cada ponto,
em sua obra O céu e o Inferno,
publicada em Paris em 1 de agosto de 1865.
Há uma particularidade pouco
lembrada quanto aos dogmas da igreja. Segundo eles, o sofrimento dos infernos
deverá ser físico, pungente, na pele mesmo. O condenado deve sentir o calor do
fogo, o queimar das carnes, o penetrar dos tridentes, a pressão e o trucidar
das correntes. Mas quando são enviados aos infernos, esses condenados ainda são
– como explica Kardec quanto à concepção da igreja – sem corpo, pois esse
morreu e se desfez neste mundo: Os
condenados, presentemente no inferno, podem ser considerados puros Espíritos,
uma vez que só a alma aí desce, e os restos entregues à terra se transformam em
ervas, em plantas, em minerais e líquidos, sofrendo inconscientemente as
metamorfoses constantes da matéria. (O
Céu e o Inferno, página 53).
Não se pode esquecer-se desse
processo, quando se trata da doutrina da igreja! No momento da morte, ninguém
sofre ainda. Só depois, quando Deus destruir este mundo e, no juízo final,
restituir os corpos, agora imortais, mas feitos igualmente de carne e ossos,
para que o sofrimento no inferno seja físico, real, fisiológico. Desse modo,
continua Kardec: Os eleitos
ressuscitarão, contudo, em corpos purificados e resplendentes, e os condenados
em corpos maculados e desfigurados pelo pecado. Isso os distinguirá, não
havendo mais no inferno puros Espíritos, porém homens como nós.
Conseguintemente, o inferno é um lugar físico, geográfico, material, uma vez
que tem de ser povoado por criaturas terrestres, dotadas de pés, mãos, boca,
língua, dentes, ouvidos, olhos semelhantes aos nossos, sangue nas veias e
nervos sensíveis. (Idem, ibidem).
Aqui está o ponto fundamental
deste artigo. A concepção dos infernos considera um lugar físico, material,
semelhante ao mundo atual, todavia, piorado. Não chega a luz do sol, não se
percebe o suceder dos dias e noites, não há lua. Um cheiro insuportável de
enxofre, fumaça, suor, sangue. Labaredas de fogo, caldeirões fumegantes.
Desolação e sofrimento sem fim. É preciso considerar um Deus bastante vingativo
e que odeia muito aqueles que o desobedeceram para condenar alguém a viver
eternamente nesse horror! É algo para se pensar à parte. Basta imaginar que uma
inocente criança, simples e alegre em seu lar, nos braços de seus pais, cuidada
com amor e carinho, mas que não tenha sido batizada! Corre o risco, a
coitadinha, de sair desse lar aconchegante, e, depois do juízo, se ver sozinha,
fugindo dos tormentos dos demônios, abandonada eternamente pelo seu criador!
A doutrina espírita oferece uma
explicação bastante diversa da vida após a morte. Primeiramente, o mundo
espiritual é também um lugar físico, mas cujas propriedades são completamente
diferentes de nosso mundo. Enquanto aqui, se colocarmos pessoas de
personalidades diversificadas, como a mãe de Jesus, um bandido, Herodes,
camponeses, e um filósofo genial, todos numa sala, e fizermos uma fogueira
enorme, todos irão suar de calor, não importa o quanto difiram moral e
intelectualmente. Ao levarmos esse mesmo grupo para o polo norte, todos iriam
sofrer um frio lancinante, igualmente. O corpo físico de todos nós reage da
mesma forma, de acordo com o ambiente físico no qual se encontra. Esse
raciocínio valeria caso a vida futura ocorresse como a doutrina das igrejas
cristãs imaginam o céu e o inferno. Os espíritos superiores ensinam, porém, que
o mundo espiritual tem a particularidade de ser influenciado diretamente pelo
que pensam e sentem seus habitantes. É o inverso de nosso mundo. Aqui, o
ambiente influencia nosso corpo (lugar frio esfria o corpo). No mundo dos
espíritos, segundo o espiritismo, o corpo espiritual tem a propriedade de ser
mais denso e materializado, quando o espírito está apegado às emoções e
imperfeições, e torna-se leve, tênue, alcança distâncias, pode transpor-se para
outros planos, quando o espírito evolui intelecto-moralmente.
Ou seja, um bom espírito, ganha,
pela constituição mesma de seu perispírito, a liberdade de agir, de ir e vir,
de transportar-se pelos orbes. Enquanto isso, um espirito imperfeito, pela
condição materializada de seu corpo espiritual, em virtude do padrão de seus
pensamentos e sentimentos, tem reflexos das sensações materiais, e vivencia as
ilusões do frio, calor, sede, fome, medo, e tantos outros. São ilusões, mas com
plena realidade pela subjetividade do próprio espírito, ao se manter
prisioneiro de suas próprias escolhas! Quando uma diversidade de espíritos
presos aos seus apegos, imersos na raiva, medo, vingança, inveja, materializam
o perispírito e estão juntos, vão moldando o ambiente ao seu redor pela força
de seu pensamento. Eles poderiam criar um ambiente agradável, belo, sublime
até. Mas suas ideias fixas não deixam. Seus pensamentos densos, criam ambientes
escuros, pesados, desagradáveis.
Ou seja, não há um lugar onde os
espíritos sofredores sejam jogados para sofrer. É o inverso. São os pensamentos
e sentimentos densos, as imperfeições morais do próprio indivíduo a causa do
ambiente que ele cria para si mesmo.
O mundo espiritual é imanente a
este, é bom lembrar. Nós, encarnados, estamos vivendo em dois mundos ao mesmo
tempo. Aqui, com o corpo físico. E no mundo espiritual com nosso perispírito.
Não faz sentido, então, nos preocuparmos com o lugar que iremos após a morte. O
raciocínio é outro! Onde já estamos no mundo espiritual agora? Segundo nosso
padrão de pensamentos e sentimentos, estamos sintonizados, ambientados, em
determinadas condições espirituais. Quem tem raiva constante, materializa
também o perispírito. Quem se desprende, permanece sereno, vive em cada momento
sua emoção adequada. Não se apega aos fatos passados, revivendo emoções
passadas. Esse mantém seu perispírito leve, suave, desmaterializado. Céu e
inferno são criações pessoais de cada um de nós. São escolhas livres, regidas
por leis naturais. A autonomia é o fundamento da vida.
E como se faz para sair dessa
situação difícil na qual se encontram muitos espíritos depois da morte? Há uma
só saída. A vontade. Nenhum outro ser pode mudar o padrão de pensamento e
sentimento do outro, só ele mesmo. Só muda quem quer mudar. Quando um espírito
decide sair do sufoco e sofrimento que está vivendo, basta uma prece sincera a
Deus, um apelo aos bons espíritos, e será imediatamente auxiliado, por alterar
voluntariamente seus pensamentos! Não é preciso ficar absolutamente puro para
mudar sua vida. Basta uma mudança em suas disposições morais, explicou Kardec.
E isso está ao alcance de todos. Guarde esse ensinamento. Um dia ele poderá,
certamente, lhe ser útil!