Ernesto Bozzano[2]
Se houvera podido escolher a
maneira de desencarnar, certamente não teria preferido a que o destino me
impôs. Todavia, presentemente não me queixo do que me aconteceu, dada a
natureza maravilhosa da nova existência que se abriu subitamente diante de mim.
No momento da morte, revi, como num panorama, os acontecimentos de toda a minha
existência. Todas as cenas, todas as ações que eu praticara passaram ante o meu
olhar, como se houvessem gravado na minha mentalidade, em fórmulas luminosas.
Nem um só dos meus amigos, desde a minha infância até a morte, faltou à
chamada. Na ocasião em que mergulhei no mar, tendo nos braços minha mulher,
apareceram-me meu pai e minha mãe e foi esta quem me tirou da água, mostrando
uma energia cuja natureza só agora compreendo. Não me lembro de ter sofrido.
Quando imergi nas águas, não experimentei sensação alguma de medo, nem mesmo de
frio, ou de asfixia. Não me recordo de ter ouvido o barulho das ondas a se
quebrarem sobre as nossas cabeças. Desprendi-me do corpo quase sem me aperceber
disso e, abraçado sempre à minha mulher, segui minha mãe, que viera para nos
acolher e guiar.
O primeiro sentimento penoso só
me assaltou quando dirigi o pensamento para o meu caro irmão; porém, minha mãe,
percebendo-me a inquietação, logo ponderou: Teu irmão também não tardará a
estar conosco: A partir desse instante, todo sentimento penoso desapareceu de
meu espírito. Pensava na cena dramática que acabara de viver, unicamente com o
fito de levar socorro aos meus companheiros de desgraça. Logo, entretanto, vi
que estavam salvos das águas, do mesmo modo por que eu fora. Todos os objetos
me pareciam tão reais à volta de mim que, se não fosse a presença de tantas
pessoas que sabia mortas, teria corrido para junto dos náufragos.
Quis informar-te de tudo isto, a
fim de que possas mandar uma palavra de consolação aos que imaginam que os que
lhes são caros e que desapareceram comigo sofreram agonias terríveis, ao se
verem presas da morte. Não há palavras que te possam descrever a felicidade que
experimentei, quando vi que vinham ao meu encontro ora uma, ora outra das
pessoas a quem mais amei na Terra e que todas acudiam a me dar as boas vindas
nas esferas dos imortais. Não tendo estado enfermo e não tendo sofrido, fácil
me foi adaptar-me imediatamente às novas condições de existência…
Com esta última observação, o
Espírito alude a uma circunstância que concorda com as informações cumulativas,
obtidas sobre o mesmo assunto, por grande número de outras personalidades
mediúnicas, isto é, que só nos casos excepcionais de mortes imprevistas, sem
sofrimentos e combinadas com estados serenos da alma, é possível atravessar o
Espírito à crise da desencarnação, sem haver necessidade de ficar submetido a
um período mais ou menos longo de sono reparador. Ao contrário, nos casos de
morte consecutiva à longa enfermidade, em idade avançada, ou com a inteligência
absorvida por preocupações mundanas, ou oprimida pelo terror da morte, ou,
ainda, apenas, mas firmemente, convencida da aniquilação final, os Espíritos
estariam sujeitos a um período mais ou menos prolongado de inconsciência. Ponderarei
que estas observações já se referem a um desses detalhes secundários a que
aludi em começo e nos quais se notam desacordos aparentes, que, na realidade,
se resumem em concordâncias reguladas por uma lei geral, que necessariamente se
manifesta por modos muito diferentes, segundo a personalidade dos defuntos e as
condições espirituais tão diversas em que se acham no momento da desencarnação.
Cumpre-se atente, além disso, no
detalhe interessante de dizer o morto ter tido, no momento da morte, a visão
panorâmica de todos os acontecimentos de sua existência. Sabe-se que este
fenômeno é familiar aos psicólogos; foi referido muitas vezes por pessoas
salvas de naufrágios. (Publiquei a respeito uma longa monografia nesta mesma
Revista, no correr dos anos de 1922- 1923.) Ora, no caso relatado pelo juiz
Edmonds, como em muitos outros casos do mesmo gênero, assistimos ao fato
importante de um morto afirmar haver passado, a seu turno, pela experiência da
visão panorâmica, de que falam os náufragos salvos da morte. Isto se torna
teoricamente importante, desde que se tenha em mente que o juiz Edmonds não
conhecia a existência dos fenômenos desta espécie, ignorados pelos psicólogos
de sua época. Ele, pois, não podia auto sugestionar-se nesse sentido, o que
constitui boa prova a favor da origem, estranha ao médium, da mensagem de que
se trata.
Notarei, finalmente, que neste
episódio, ocorrido nos primeiros tempos das manifestações mediúnicas, já se
observam muitos detalhes fundamentais, concernentes aos processos da
desencarnação do Espírito, os quais serão depois constantemente confirmados, em
todas as revelações do mesmo gênero. Assim, por exemplo, o detalhe de o
Espírita não perceber, ou quase não perceber, que se separara do corpo e, ainda
menos, que se achava num meio espiritual. Também o outro detalhe de o Espírito
se encontrar com uma forma humana e se ver cercado de um meio terrestre, ou
quase terrestre, de pensar que se exprime de viva voz como dantes e perceber,
como antes, as palavras dos demais. Assinalemos ainda outro detalhe: o de achar
o Espírito desencarnado, ao chegar ao limiar da nova existência, para o
acolherem e guiarem, outros Espíritos de mortos, que são geralmente seus
parentes mais próximos, mas que também podem ser seus mais caros amigos, ou os Espíritos-guias.
Detalhe fundamental também este
que, com os outros, será confirmado por todas as revelações transcendentais
sucessivas, até aos nossos dias, salvo sempre circunstâncias mais ou menos
especiais de mortos moralmente inferiores e degradados, aos quais a inexorável
lei de afinidade (lei físico-psíquica, irresistível em seu poder fatal de
atração dos semelhantes) prepararia condições de acolhimento espiritual muito
diferentes das com que deparam os Espíritos evolvidos.
[2] Extraio este fato de uma obra intitulada: Letters and Tracts on Spiritualism,
abra que contém os artigos e as monografias publicadas pelo Juiz Edmonds, de
1854 a 1874.
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