Eurípedes Kühl[2]
Dentre os sublimes avanços da
medicina, na incessante busca de amenizar sofrimentos físicos, de homens e até
de animais, um que tem se mostrado dos mais vitoriosos é o que cuida dos
transplantes de órgãos. E, obviamente, para que haja um transplante de órgão,
há que haver, precedendo-o, sua disponibilidade. É aí que a doação insere-se no
contexto.
No que diz respeito a embriões
destinados a transplantes, antecipamos aqui uma visão espírita para quaisquer embriões:
jamais descartá-los!
O homem não cria células
(espermatozoide + óvulo = embrião), apenas as manipula, e são duas as hipóteses
em que eventualmente a biogenética pode utilizá-las para fins terapêuticos:
a.
embriões
estruturados laboratorialmente, destinados aos processos de infertilidade do
casal (um ou os dois cônjuges); os subsistentes, pelo que hoje se observa, cedo
ou tarde, sofrerão descarte ou terão destino a experiências na extração de
células-tronco para emprego em transplantes;
b.
embriões clonados
– quantos embriões-clones se queiram, a partir de uma matriz, para os mesmos
fins do item anterior.
Num e noutro caso, o material
restante terá que ser descartado.
Vemos em O Livro dos Espíritos
(Corpos Sem Alma):
·
nas questões
136-a e 136-b, consta que podem existir corpos sem alma, sendo apenas uma massa
de carne sem inteligência;
·
na questão 336,
consta que Deus proveria os casos em que um corpo que deve nascer não
encontrasse um Espírito para nele reencarnar-se (embriões-clones?);
No outro capítulo, União da Alma
e do Corpo, questões 344 e 356-b, encontramos segura orientação:
·
no momento da
concepção, o Espírito se une em definitivo ao corpo, por laços ainda frágeis,
podendo haver mortes prematuras, tanto pela imperfeição da matéria quanto,
principalmente, por tratar-se de prova, tanto para ele quanto para os pais;
·
há casos em que
jamais houve um Espírito destinado aos corpos, nada devendo se cumprir neles
(essa hipótese não autoriza sequer reflexões tendentes a justificar descarte de
embriões, eis que é atribuição da Espiritualidade realizar a junção
perispírito-embrião para a vida terrena do Espírito, e essa informação jamais
foi passada a quem quer seja na Terra).
Isto posto, todos os embriões –
matrizes ou clonados – devem ser respeitados como “vida em potencial”.
Premissas Espíritas
De início, consideramos que a
medicina terrena é bênção divina, acompanhada de perto por Espíritos de elevada
caridade e competência, os quais, sob orientação direta do Mestre Jesus, fazem
aportar no planeta Terra, no tempo certo, benesses balsâmicas no trato das
doenças, propiciando cura delas ou alívio da dor que causam.
Dessa forma, os progressos da
medicina têm aval espiritual protetor. Disso não há que duvidar.
Os transplantes constituem uma
sublime benesse. Salvam vidas. Aliviam dores.
Deslizam sobre o fio da navalha,
pois na maioria dos casos lidam com a morte (anunciada, para pacientes que de
outra forma morrerão a prazo certo; ou já acontecida, no caso dos doadores
voluntários ou eventualmente involuntários).
É justamente por isso que aos
espíritas – que bem conhecemos os desdobramentos subsequentes à morte do corpo
físico – os transplantes carreiam temores, quando não verdadeiro pavor. Isso
não deveria acontecer.
Transplantes de
Órgãos e a Codificação
Com especificidade, na
Codificação da Doutrina dos Espíritos, não há menção nem de doação de órgãos,
nem de transplantes deles. Contudo, sem forçar uma apropriação ou um
entendimento favorável, permitimo-nos refletir sobre três questões comentadas
por Espíritos evoluídos e registradas por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos, as quais, isoladas, não favorecem mesmo
eventual interligação. Contudo, essas três questões, acopladas, permitem-nos
lucubrar que algo há sim, a respeito, conquanto velado. Vejamo-las:
·
Questão 156:
“Há casos em que há sangue nas veias, mas não há vida”; essa informação,
promanada em 1857, diz de situação que talvez possamos configurar tanto como a
morte encefálica quanto a morte cerebral, diagnósticos estes cuja precisão só
seria alcançada no crepúsculo do século XX. Em tal estado, muito mais delicado
do que um coma, é de se supor que o perispírito ou já está desligado ou em
avançado processo de desate do corpo físico; numa ou noutra situação, a dor
física estará ausente de qualquer injúria somática – extirpação de um órgão,
por exemplo –, eis que o cérebro, então inapelável e definitivamente
“desativado”, já não capta mais nenhuma mensagem “de dor” emitida pelo sistema
nervoso central.
·
Questão 257:
“Ensaio Teórico Sobre Sensação nos Espíritos: o perispírito só ouve e sente o
que quer”; (aqui, quer nos parecer que o ensinamento deixa a descoberto que,
uma vez desligado do corpo físico, o perispírito, que é a sede das sensações,
tem plenas condições de selecioná-las; sendo a doação de órgãos um ato de amor,
subentendendo-se que o doador já trilha pelo desapego da matéria, e nesse caso,
não sofrerá qualquer impressão negativa com a retirada de algum órgão do seu –
para ele já inútil – traje carnal).
Obs.: Há que se considerar,
ainda, o jamais negado Amor do Pai a todos os seus filhos; nesse caso, da morte
recente, o doador está com merecimento adicional, fruto do seu desprendimento
das coisas da matéria (no caso, o corpo que o abrigou e que agora se decomporá,
inexoravelmente).
·
Questão 723: “No
estágio da humanidade, a carne alimenta a carne”. Aqui, refletimos que, se a
carne alimenta a carne, nada objeta apropriarmos a mesma ideia para dela
extrair uma ilação, mas com outro enfoque: da mesma forma como a carne alimenta
a carne, para o sustento da vida, um órgão (em boas condições) substitui outro
(similar, mas danificado), para um período de sobrevida. Deve-se considerar,
ainda, que qualquer que seja o tempo dessa sobrevida (ou melhoria de vida),
decorrentes de um transplante, quem o recebeu, um dia morrerá, e aí a Lei
Natural de Destruição – decomposição dos despojos físicos – se cumprirá: a
parte transplantada terá o mesmo destino da matriz, isto é, retorno à natureza.
Encontramos em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap.
I, item 3: “O corpo não passa de um acessório seu (do Espírito), de um
invólucro, uma veste (do Espírito), que ele deixa, quando usada. (…) Por
ocasião da morte, despoja-se dele (do corpo físico)”.
Anexando outra assertiva
espiritual, temos Joanna de Ângelis filosofando sobre o corpo humano: “(…) Alto
empréstimo divino, é o instrumento da evolução espiritual na Terra. (…) Por
enquanto, serve também de laboratório de experiências pelas quais os
Construtores da Vida, há milênios, vêm desenvolvendo possibilidades superiores
para culminarem em conjunto ainda mais aprimorado e sadio”.
A palavra empréstimo deixa
patente que o homem, na verdade, não é dono do corpo que utiliza na romagem
terrena, senão sim, é dele usufrutuário, ou se quiserem, inquilino temporário;
já o servir de experiência laboratorial parece sinalizar que o altruísmo das
doações de órgãos para transplantes intervivos, aí tem assento.
Rejeição
Psicossomática
Sabemos nós, os espíritas, que
cada ser humano tem todo um acervo de realizações positivas e negativas ao longo
de inúmeras existências terrenas, daí advindo a inexistência de patamares
espirituais semelhantes. Por isso mesmo, sendo diferentes as vibrações
energéticas perispirituais do doador e do receptor, o órgão a ser transplantado
não encontrará sintonia vibracional no destino. Daí advém a rejeição orgânica,
que na verdade espelha diferença nos complexos, quanto sutis sistemas vitais de
um e de outro, regulando o equilíbrio nos interplanos – material e espiritual.
Nesse caso, somente com
altruísmo da parte do doador e com gratidão da parte do receptor, acreditamos
que essa discrepância vibratória tenderá a ser atenuada, sob supervisão de
Espíritos protetores, ocorrendo aquilo que o Espírito André Luiz denomina de
“vibrações compensadas”. Nos transplantes, configuramos como equalização de
fluidos, transitando nas camadas mais profundas do psiquismo do doador e do
receptor.
Doação de Órgãos:
Desprendimento Material
Somadas, as considerações acima
sinalizam que a doação de órgãos pressupõe desprendimento dos bens terrenos –
especificamente do corpo físico – dos quais o homem não passa de usuário
eventual. Assim, doar órgãos é ato de amor, complementar aos que tenham sido
realizados em vida. Só trará benefícios a quem o faça.
A Lei Divina de Ação e Reação,
de ação automática e permanente, muito beneficiará o doador, além do que o
beneficiado (e seu Anjo Guardião), seus parentes, amigos e a própria equipe
médica envolvida, estarão todos direcionando a ele, doador, vibrações
positivas, em preces de gratidão. Para o doador desencarnado isso é bênção
incomparável.
Considerando que o corpo físico
inclui-se no rol dos bens que o Criador coloca à disposição da criatura humana
no seu roteiro existencial terreno, não deverá o homem se julgar detentor
eterno desse bem, mas apenas responsável pela sua boa conservação, no período
de utilização. Concluída esta, pela desencarnação, por que se preocupar com o
destino que lhe será dado? Se nessa etapa terrena há a oportunidade de uma
última ação de amor ao próximo, por que não investir nessa poupança celestial?
Se no último minuto de um
moribundo pode ocorrer sua transformação moral (O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 5, Item 28), imagine-se que
um receptor de órgão passa a ter mais que “um minuto”, e sim considerável
sobrevida.
Pessoa alguma há que, após
passar por um transplante, continue a mesma.
Daí, a auto-reforma.
NOTA: Obviamente, não doar órgãos é um direito pleno de cada
indivíduo. E jamais o não-doador poderá ser acusado de egoísmo ou de falta de
amor para com seu próximo. Mas, verdade seja dita, quem doa demonstra vivenciar
louvável posicionamento em estágio moral que só benefícios espirituais hão de
lhe ser dispensados. O não-doador – e somente ele – poderá responder à
auto-pergunta: – E se um dia eu precisar de um transplante?
Conclusão
Passamos a palavra para o
Professor Doutor Raul Marino Jr., neurocirurgião e professor titular de
Neurocirurgia da Divisão de Clínica Neurocirúrgica do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP. Fazemos nossas, as palavras dele:
“(…) Heróis são difíceis de
achar – doadores vivos, doadores potenciais mantidos vivos em UTIs em
respiradores artificiais e famílias esclarecidas que acabaram de sofrer a
tragédia da perda de um ente querido”.
É preciso uma alta dose de altruísmo,
solidariedade e generosa caridade cristã para transferir a própria vida, por
nossa vontade, após nos despirmos das prisões da carne, ou consentir que um
parente venha a compartilhar o dom da vida com alguém da lista nacional (de
pacientes aguardando recepção de órgãos), após um infortúnio.
(…) Os transplantes, ligados
intimamente que estão ao ato supremo das doações, surgiram como que para testar
nossas virtudes de solidariedade humana, nosso altruísmo, nossa generosidade,
nossa piedade, nossa compaixão, nossa filantropia, nossa benevolência, nossa
bondade, nosso amor ao próximo, nosso espírito humanitário, nossa indulgência,
nossa excelência moral, nossa grandeza de alma, nossa misericórdia, nosso
espírito de socorro, amparo e auxílio e, sobretudo, a virtude mais decantada
nos Evangelhos: o amor e a caridade”. (Folha de S.Paulo, A3, “Opinião”, 15 de
maio de 2001).
[2] Natural de Igarapava, São Paulo, Eurípedes Kühl é
médium psicógrafo, autor de 21 livros – onze psicografados, oito de lavra
própria e mais dois no prelo (um psicografado e um de sua autoria) –, e
pesquisador de inúmeros assuntos ligados ao Espiritismo. No centro espírita que
frequenta, Eurípedes é responsável pelo curso de médiuns, é médium passista e
realiza palestras e cursos em outros centros. Aqui, ele fala sobre o tema da
doação de órgãos e transplantes, sempre tendo em vista um enfoque a premissas
espíritas.
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