quarta-feira, 6 de julho de 2016

Os Obsessores, gente como a gente[1]


Hermínio C. Miranda


Qualquer abordagem à complexa problemática da obsessão deve começar, a meu ver, como uma atitude preliminar de humildade e amor fraterno. Ainda que isto possa parecer mera pregação com um toque de falsa modéstia, não é nada disso. A humildade constitui ingrediente indispensável a qualquer tarefa de natureza mediúnica, dado que é ainda bastante limitado o conhecimento dessa preciosa faculdade humana. Temos de nos apresentar diante da tarefa com a honesta intenção de aprender com o seu exercício, ainda que, paradoxalmente, munidos de todo o conhecimento teórico que for possível adquirir previamente. Quando a gente pensa que já sabe tudo sobre a mediunidade, eis que ela se revela sob aspectos que ainda não tínhamos percebido ou apresenta facetas desconhecidas e aparentemente inexplicáveis. É como se cada sessão tivesse uma espécie de individualidade diferente de todas as demais, ainda que semelhante em suas características básicas. Tal como as pessoas, ou seja, tão iguais umas às outras e, ao mesmo tempo, tão diferentes.
E por falar em pessoas, vamos colocar a segunda preliminar, a de que o trato com a obsessão deve ser iluminado pelo amor fraterno. Por uma razão tão simples e óbvia que parece infantil, mas que se põe como de vital importância para o bom êxito do trabalho pretendido, ou seja, a de que os espíritos são gente como a gente. E gente que sofre e que, portanto, precisa de compreensão e paciência. São pessoas em conflito consigo mesmas e, portanto, com os outros, com o mundo, com a vida, com Deus e com o próprio amor. Creio que é em Emmanuel que a gente lê que o ódio é o amor enlouquecido. É verdade e tanto é verdade que mesmo esse amor enlouquecido ainda é amor, como temos tido oportunidade de observar tantas vezes.
Lembro-me de um caso desses em que foi por esse caminho que encontrei o acesso que buscava ao coração do manifestante enfurecido daquela noite. Sua desesperada indignação dirigia-se a uma mulher que, aparentemente, manipulara impiedosamente suas emoções no passado. Chegara para ele a hora da vingança e ele a exercia com toda a força do seu ódio, tentando convencer-se de que o fazia com o maior dos prazeres. Agora, sim, tinha-a em seu poder! Sustentava-se no rancor secular e era isso mesmo que ele dizia. Sem aquele ódio, não seria nada nem ninguém, pois aquilo acabara constituindo a razão de ser da sua existência. Em situações como essa, o ódio e o ilusório prazer da vingança funcionam como biombos atrás dos quais a gente esconde pelo menos por algum tempo, as próprias frustrações e procura abafar a voz incorruptível da consciência. Enquanto procuramos cobrar faltas cometidas contra nós, esquecemos dos nossos crimes e afrontas à lei divina.
Esse era o cenário e esse o drama que tínhamos diante de nós. Que estava ele na posição de um obsessor, estava. Não se importava que assim o considerássemos. A vingança, no seu entender, era direito que ninguém poderia contestar-lhe. ‘Ela’ não errou? A lei não diz que somos todos responsáveis pelos atos praticados? E não diz mais que quem fere com a espada, com a espada será ferido? “Está aí no ‘seu Evangelho!’”, dizem vitoriosos. Ela é uma ‘peste’. Você nem imagina como aquela mulher é ruim! E agora que estou aqui, cobrando a minha parte, vêm vocês com peninha dela! E sabe duma coisa? Não se meta nisso, não. O caso é comigo. Deixa comigo que eu resolvo!
Esse é o tom, Como fazê-lo mudar, não apenas o discurso, mas o procedimento, a maneira de avaliar a situação e de redirecionar suas emoções em tumulto? E perguntam, às vezes: “Você não acha que eu tenho razão?” Até que sim, se examinarmos o problema na estreiteza do seu contexto pessoal. É compreensível o rancor, gerado por uma dolorosa decepção com a pessoa em quem confiou e à qual entregou seu próprio coração e até sua vida. Mas esse espaço mental é exíguo demais para se colocarem todos os dados do problema. A vida não é uma só, a lei não é punitiva, mas educativa e, acima de tudo, não há sofrimento inocente, a não ser nos grandes lances do devotamento ao próximo, nas tarefas missionárias. Por outro lado, se a lei permite ou tolera a vingança, embora não a aprove jamais, é porque aquele que erra se expõe à correção. Os obsessores mais ‘experientes’ – confesso que não gosto do termo obsessor – sabem que somente conseguem ‘cobrar’ aquilo que têm como crédito pessoal, precisamente porque, segundo ensinou o Cristo, o “pecador se torna escravo do pecado” e não sai de lá (das penas da dor) enquanto não pagar até o último centavo, ou seja, enquanto restar um reclamo na sua própria consciência. Não é preciso que ninguém cobre, mesmo porque a dívida é com a lei, representada em cada um de nós no silêncio da intimidade, mas o vingador não quer saber de tais sutilezas.
Todo aquele que se expõe ao duro retorno do reajuste pode estar certo de haver-se atritado com a lei anteriormente. A conclusão lógica e inescapável é a de que, quando o nosso querido passou pelo dissabor de uma traição ou do abandono, estava na fase do retorno, na sofrida simetria de seus equívocos anteriores. Isso, porém, nunca estamos prontos para admitir quando nos encontramos na dolorosa postura do obsessor. Achamos, então, que esta é a nossa vez. “Que perdão, nada! Sempre que perdoei me dei mal”, costuma dizer. “Vence no mundo, aquele que grita, impõe e domina, não o que abaixa a cabeça e marca a si mesmo com o carimbo da covardia”.
Em suma: o nosso querido obsessor não era diferente de nenhum de nós, ainda prisioneiros de paixões milenares que repercutem e ecoam de século em século e vão aos milênios. É um ser humano, uma pessoa, gente como a gente. O que ele deseja, embora nunca o admita espontaneamente, é que tenhamos paciência para ouvi-lo, compreendê-lo, cuidar da sua dor, ainda que, conscientemente, também não a reconheça. Por isso, após todo o seu catártico destampatório, ele se mostrava convicto de estar coberto de razão e, por isso, vitorioso no seu valente debate com o grupo. Só nesse ponto, contudo, tinha alguma condição para nos ouvir. Até então fora dono absoluto da palavra, dos argumentos, da indignação, da situação, enfim. Ele perseguia a moça porque queria e porque podia fazê-lo e estamos conversados.
Estava, portanto, dando a conversa como encerrada e pronto para retomar logo sua tarefa de ficar à espreita da sua vítima, como o “gato que vigia o rato”, no preciso e curioso dizer de Allan Kardec.
É nesses momentos, contudo, que a inspiração parece funcionar melhor e, por isso, nosso doutrinador comentou, como quem apenas dá conta de um fato óbvio por si mesmo: “Isso tudo quer dizer, então, que você ainda a ama, não é?” Recuperado do momentâneo aturdimento, ele teve a honestidade e a bravura de reconhecer que sim, ainda a amava, a despeito de tudo. Tínhamos chegado, afinal, ao seu coração, ao âmago da sua angústia, ao núcleo de suas dores e até de suas esperanças. E mais uma vez tínhamos diante de nós não um implacável obsessor convencido do seu legítimo direito de cobrar uma falta cometida contra si mesmo, mas um ser humano igualzinho a nós, sofrido, solitário, perdido na sua dor, mas, principalmente, no seu ódio que, afinal de contas, não passava de um grande e inesquecível amor enlouquecido. Pois não é isso mesmo que acontece com a gente? Ou, pode acontecer? Ou já aconteceu? Não é um irmão (ou irmã) que ali está ansioso, na secreta esperança de que consigamos, afinal, convencê-lo de que ele ainda ama? Por isso sempre digo a eles, e a mim também, que amar é um estranho verbo, porque não tem passado. Você não diz que amou alguém. Se amou mesmo, de verdade, então continua amando. Mário de Andrade dizia que amar é verbo intransitivo e tinha razão, mas é também defectivo, porque não se conjuga em tempo passado. O amor é para sempre. Por isso, também dizia Edgar Cayce que o amor não é possessivo, ele apenas é. Claro, ele é da essência de Deus e, portando, do ser, isto é, de todos nós. E ser é verbo e é substantivo.
Foi por essas e outras que acabei descobrindo que o amor é também da essência da tarefa dita de desobsessão e que prefiro conceituar como diálogo com atormentados companheiros de jornada evolutiva que, eventualmente, estejam vivendo dolorosos papéis de obsessor. Que não se sentir em condições pessoais de ver no chamado obsessor uma pessoa humana como a gente mesmo, então deve dedicar-se a outra tarefa no grupo. A seara é imensa, não falta trabalho para ninguém. Já alertava o Cristo, ao seu tempo, que era necessário orar para que o Pai mandasse mais obreiros, sempre escassos e insuficientes. Com a sua deslumbrante lucidez, Paulo explicitou para a posteridade as numerosas tarefas à nossa disposição em qualquer grupamento humano que se propõe a servir ao próximo. É só ler, para recordar, os capítulos 12, 13 e 14 da sua Primeira Epístola aos Coríntios, e que constituem o primeiro “Livro dos Médiuns” do Cristianismo. Aqueles que desejarem devotar-se ao trabalho gratificante da desobsessão que leiam de maneira especial, demorada e meditada, o capítulo 13, no qual o tema tratado é o da caridade, ou seja, o amor atuante.
Ao colocar o amor como alicerce de sua doutrina, Jesus tem sido, através do tempo, o grande doutrinador de nossas obsessões. Se conseguirmos passar para alguém um pouco do tanto que nos deu, muitos serão os novos amigos a seguir junto de nós rumo à paz definitiva. Lembro-me da funda emoção de uma noite dramática quando um desses companheiros desarvorados rendeu-se ao apelo do amor fraterno e declarou, em pranto, que, se pudesse, colocaria em cima da mesa a oferenda do seu próprio coração. Sabia, a esta altura, que o nosso ele já o tinha.
Por tudo isso e mais o que não ficou dito, entendo que, na tarefa da chamada desobsessão, o ingrediente básico é o amor, que sempre saberá como encontrar o que dizer ao ser humano que temos diante de nós na mesa mediúnica. Doutrinação é palavra inadequada para caracterizar esse trabalho. Que teria eu a ensinar ao companheiro ou à companheira que comparece ao grupo mediúnico? Não há como ensinar pontos doutrinários teóricos a quem está vivendo a realidade, que conhecemos mais pelo estudo do que pela vivência. Eis porque costumo dizer que muito pouco ou quase nada tenho ensinado às pessoas desencarnadas que comparecem aos nossos trabalhos mediúnicos. Em compensação, devo a todos eles ensinamentos preciosos, recortados diretamente das páginas pulsantes da vida. E por isso, nunca saberia expressar toda a minha gratidão pela oportunidade que me foi concedida de trabalhar junto dos queridos “obsessores”...




[1] As duas faces da vida – textos reunidos / Hermínio C. Miranda – Bragança Paulista, SP: Instituto Lachâtre, 2013.

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