Hermínio C. Miranda
Qualquer abordagem à complexa
problemática da obsessão deve começar, a meu ver, como uma atitude preliminar
de humildade e amor fraterno. Ainda que isto possa parecer mera pregação com um
toque de falsa modéstia, não é nada disso. A humildade constitui ingrediente
indispensável a qualquer tarefa de natureza mediúnica, dado que é ainda
bastante limitado o conhecimento dessa preciosa faculdade humana. Temos de nos
apresentar diante da tarefa com a honesta intenção de aprender com o seu
exercício, ainda que, paradoxalmente, munidos de todo o conhecimento teórico
que for possível adquirir previamente. Quando a gente pensa que já sabe tudo
sobre a mediunidade, eis que ela se revela sob aspectos que ainda não tínhamos
percebido ou apresenta facetas desconhecidas e aparentemente inexplicáveis. É
como se cada sessão tivesse uma espécie de individualidade diferente de todas
as demais, ainda que semelhante em suas características básicas. Tal como as
pessoas, ou seja, tão iguais umas às outras e, ao mesmo tempo, tão diferentes.
E por falar em pessoas, vamos
colocar a segunda preliminar, a de que o trato com a obsessão deve ser
iluminado pelo amor fraterno. Por uma razão tão simples e óbvia que parece
infantil, mas que se põe como de vital importância para o bom êxito do trabalho
pretendido, ou seja, a de que os espíritos são gente como a gente. E gente que
sofre e que, portanto, precisa de compreensão e paciência. São pessoas em
conflito consigo mesmas e, portanto, com os outros, com o mundo, com a vida,
com Deus e com o próprio amor. Creio que é em Emmanuel que a gente lê que o
ódio é o amor enlouquecido. É verdade e tanto é verdade que mesmo esse amor
enlouquecido ainda é amor, como temos tido oportunidade de observar tantas
vezes.
Lembro-me de um caso desses em
que foi por esse caminho que encontrei o acesso que buscava ao coração do
manifestante enfurecido daquela noite. Sua desesperada indignação dirigia-se a
uma mulher que, aparentemente, manipulara impiedosamente suas emoções no
passado. Chegara para ele a hora da vingança e ele a exercia com toda a força
do seu ódio, tentando convencer-se de que o fazia com o maior dos prazeres.
Agora, sim, tinha-a em seu poder! Sustentava-se no rancor secular e era isso
mesmo que ele dizia. Sem aquele ódio, não seria nada nem ninguém, pois aquilo
acabara constituindo a razão de ser da sua existência. Em situações como essa,
o ódio e o ilusório prazer da vingança funcionam como biombos atrás dos quais a
gente esconde pelo menos por algum tempo, as próprias frustrações e procura
abafar a voz incorruptível da consciência. Enquanto procuramos cobrar faltas
cometidas contra nós, esquecemos dos nossos crimes e afrontas à lei divina.
Esse era o cenário e esse o
drama que tínhamos diante de nós. Que estava ele na posição de um obsessor,
estava. Não se importava que assim o considerássemos. A vingança, no seu
entender, era direito que ninguém poderia contestar-lhe. ‘Ela’ não errou? A lei
não diz que somos todos responsáveis pelos atos praticados? E não diz mais que
quem fere com a espada, com a espada será ferido? “Está aí no ‘seu
Evangelho!’”, dizem vitoriosos. Ela é uma ‘peste’. Você nem imagina como aquela
mulher é ruim! E agora que estou aqui, cobrando a minha parte, vêm vocês com peninha
dela! E sabe duma coisa? Não se meta nisso, não. O caso é comigo. Deixa comigo
que eu resolvo!
Esse é o tom, Como fazê-lo
mudar, não apenas o discurso, mas o procedimento, a maneira de avaliar a
situação e de redirecionar suas emoções em tumulto? E perguntam, às vezes:
“Você não acha que eu tenho razão?” Até que sim, se examinarmos o problema na
estreiteza do seu contexto pessoal. É compreensível o rancor, gerado por uma
dolorosa decepção com a pessoa em quem confiou e à qual entregou seu próprio coração
e até sua vida. Mas esse espaço mental é exíguo demais para se colocarem todos
os dados do problema. A vida não é uma só, a lei não é punitiva, mas educativa
e, acima de tudo, não há sofrimento inocente, a não ser nos grandes lances do
devotamento ao próximo, nas tarefas missionárias. Por outro lado, se a lei
permite ou tolera a vingança, embora não a aprove jamais, é porque aquele que
erra se expõe à correção. Os obsessores mais ‘experientes’ – confesso que não
gosto do termo obsessor – sabem que somente conseguem ‘cobrar’ aquilo que têm
como crédito pessoal, precisamente porque, segundo ensinou o Cristo, o “pecador
se torna escravo do pecado” e não sai de lá (das penas da dor) enquanto não
pagar até o último centavo, ou seja, enquanto restar um reclamo na sua própria
consciência. Não é preciso que ninguém cobre, mesmo porque a dívida é com a
lei, representada em cada um de nós no silêncio da intimidade, mas o vingador
não quer saber de tais sutilezas.
Todo aquele que se expõe ao duro
retorno do reajuste pode estar certo de haver-se atritado com a lei
anteriormente. A conclusão lógica e inescapável é a de que, quando o nosso
querido passou pelo dissabor de uma traição ou do abandono, estava na fase do
retorno, na sofrida simetria de seus equívocos anteriores. Isso, porém, nunca
estamos prontos para admitir quando nos encontramos na dolorosa postura do
obsessor. Achamos, então, que esta é a nossa vez. “Que perdão, nada! Sempre que
perdoei me dei mal”, costuma dizer. “Vence no mundo, aquele que grita, impõe e
domina, não o que abaixa a cabeça e marca a si mesmo com o carimbo da
covardia”.
Em suma: o nosso querido
obsessor não era diferente de nenhum de nós, ainda prisioneiros de paixões
milenares que repercutem e ecoam de século em século e vão aos milênios. É um
ser humano, uma pessoa, gente como a gente. O que ele deseja, embora nunca o
admita espontaneamente, é que tenhamos paciência para ouvi-lo, compreendê-lo,
cuidar da sua dor, ainda que, conscientemente, também não a reconheça. Por
isso, após todo o seu catártico destampatório, ele se mostrava convicto de
estar coberto de razão e, por isso, vitorioso no seu valente debate com o
grupo. Só nesse ponto, contudo, tinha alguma condição para nos ouvir. Até então
fora dono absoluto da palavra, dos argumentos, da indignação, da situação,
enfim. Ele perseguia a moça porque queria e porque podia fazê-lo e estamos
conversados.
Estava, portanto, dando a
conversa como encerrada e pronto para retomar logo sua tarefa de ficar à
espreita da sua vítima, como o “gato que vigia o rato”, no preciso e curioso
dizer de Allan Kardec.
É nesses momentos, contudo, que
a inspiração parece funcionar melhor e, por isso, nosso doutrinador comentou,
como quem apenas dá conta de um fato óbvio por si mesmo: “Isso tudo quer dizer,
então, que você ainda a ama, não é?” Recuperado do momentâneo aturdimento, ele
teve a honestidade e a bravura de reconhecer que sim, ainda a amava, a despeito
de tudo. Tínhamos chegado, afinal, ao seu coração, ao âmago da sua angústia, ao
núcleo de suas dores e até de suas esperanças. E mais uma vez tínhamos diante
de nós não um implacável obsessor convencido do seu legítimo direito de cobrar
uma falta cometida contra si mesmo, mas um ser humano igualzinho a nós,
sofrido, solitário, perdido na sua dor, mas, principalmente, no seu ódio que,
afinal de contas, não passava de um grande e inesquecível amor enlouquecido.
Pois não é isso mesmo que acontece com a gente? Ou, pode acontecer? Ou já
aconteceu? Não é um irmão (ou irmã) que ali está ansioso, na secreta esperança
de que consigamos, afinal, convencê-lo de que ele ainda ama? Por isso sempre
digo a eles, e a mim também, que amar é um estranho verbo, porque não tem
passado. Você não diz que amou alguém. Se amou mesmo, de verdade, então
continua amando. Mário de Andrade dizia que amar é verbo intransitivo e tinha
razão, mas é também defectivo, porque não se conjuga em tempo passado. O amor é
para sempre. Por isso, também dizia Edgar Cayce que o amor não é possessivo,
ele apenas é. Claro, ele é da essência de Deus e, portando, do ser, isto é, de
todos nós. E ser é verbo e é substantivo.
Foi por essas e outras que
acabei descobrindo que o amor é também da essência da tarefa dita de
desobsessão e que prefiro conceituar como diálogo com atormentados companheiros
de jornada evolutiva que, eventualmente, estejam vivendo dolorosos papéis de
obsessor. Que não se sentir em condições pessoais de ver no chamado obsessor
uma pessoa humana como a gente mesmo, então deve dedicar-se a outra tarefa no
grupo. A seara é imensa, não falta trabalho para ninguém. Já alertava o Cristo,
ao seu tempo, que era necessário orar para que o Pai mandasse mais obreiros,
sempre escassos e insuficientes. Com a sua deslumbrante lucidez, Paulo
explicitou para a posteridade as numerosas tarefas à nossa disposição em
qualquer grupamento humano que se propõe a servir ao próximo. É só ler, para
recordar, os capítulos 12, 13 e 14 da sua Primeira Epístola aos Coríntios, e
que constituem o primeiro “Livro dos Médiuns” do Cristianismo. Aqueles que
desejarem devotar-se ao trabalho gratificante da desobsessão que leiam de
maneira especial, demorada e meditada, o capítulo 13, no qual o tema tratado é
o da caridade, ou seja, o amor atuante.
Ao colocar o amor como alicerce
de sua doutrina, Jesus tem sido, através do tempo, o grande doutrinador de
nossas obsessões. Se conseguirmos passar para alguém um pouco do tanto que nos
deu, muitos serão os novos amigos a seguir junto de nós rumo à paz definitiva.
Lembro-me da funda emoção de uma noite dramática quando um desses companheiros
desarvorados rendeu-se ao apelo do amor fraterno e declarou, em pranto, que, se
pudesse, colocaria em cima da mesa a oferenda do seu próprio coração. Sabia, a
esta altura, que o nosso ele já o tinha.
Por tudo isso e mais o que não
ficou dito, entendo que, na tarefa da chamada desobsessão, o ingrediente básico
é o amor, que sempre saberá como encontrar o que dizer ao ser humano que temos
diante de nós na mesa mediúnica. Doutrinação é palavra inadequada para
caracterizar esse trabalho. Que teria eu a ensinar ao companheiro ou à
companheira que comparece ao grupo mediúnico? Não há como ensinar pontos
doutrinários teóricos a quem está vivendo a realidade, que conhecemos mais pelo
estudo do que pela vivência. Eis porque costumo dizer que muito pouco ou quase
nada tenho ensinado às pessoas desencarnadas que comparecem aos nossos
trabalhos mediúnicos. Em compensação, devo a todos eles ensinamentos preciosos,
recortados diretamente das páginas pulsantes da vida. E por isso, nunca saberia
expressar toda a minha gratidão pela oportunidade que me foi concedida de
trabalhar junto dos queridos “obsessores”...
[1] As duas faces
da vida – textos reunidos / Hermínio
C. Miranda – Bragança Paulista, SP: Instituto Lachâtre, 2013.
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