Encerrávamos a nossa reunião da
noite de 1 de março de 1956, quando nossos Instrutores trouxeram às faculdades
psicofônicas do médium o Espírito R. S., desditosa irmã desencarnada que, em
soluços comovedores, nos ofertou a sua história de médium transviada, história
essa que passamos à consideração de nossos leitores, como doloroso exemplo a
ser estudado e meditado:
Deus de bondade e de amor dai-me forças para
que a minha voz não trema na confissão-ensinamento, a que, me sinto obrigada! Ajudai-me o coração para que a minha palavra
não vacile!
Benfeitores Espirituais que me
assistis, sustentai-me a fim de que a vergonha não favoreça qualquer inverdade
em minha boca!
Meus irmãos, fala-vos pobre
mulher desencarnada que, até agora, tem vagueado no charco de choro e sangue. Uma
pobre criatura que por escárnio à própria responsabilidade atirou-se ao lago de
sofrimento e remorso em que se afoga sem consumir-se. Fui médium, conheci a
graça da revelação espírita, partilhei os banquetes da oração e deslumbrei-me
diante das lições de luz que meu coração recebia do Céu!
Viúva aos trinta anos, com uma
filha para conduzir e orientar na existência, trazia o espírito assim como um
barco sem leme. Faltava-me, um ideal religioso para o caráter. A pobreza, a
provação e o obstáculo espancavam-me. Por isso mesmo, os sintomas da
mediunidade conturbada, que se me fizeram mais graves, acentuaram em nossa casa
os problemas e os dissabores.
A conselho de afeições queridas,
procurei um santuário espírita, sendo recebida com o amor que vos caracteriza
as casas de fé renovadora, que, neste momento, não posso dizer sejam nossas,
porque delas me afastei deliberadamente. O primeiro contato com a filosofia
simples do Espiritismo, foi para o meu coração como um banho de luz.
Reconfortei-me, refazendo a
própria saúde. Meus olhos adquiriram o estranho poder de enxergar além da carne
e pude, muitas vezes, em pranto de emotividade, receber a palavra direta do
inolvidável benfeitor Dr. Bezerra de Menezes, que costumava dizer-me em tom
compassivo:
- Filha, é chegada para a sua
alma a hora diferente. Trazem as suas mãos a sublime força da cura. Poderá você
aliviar o sofrimento dos semelhantes e, sobretudo, oferecer carinho
providencial às irmãs nossas que se sentem defrontadas pelos aguilhões da
maternidade dolorosa. Siga a sua estrada, oferecendo a Jesus o coração limpo e
a consciência reta, porque a assistência do Céu não lhe faltará ao serviço nem
se fará surda aos seus apelos!
Desde então, meus amigos, minhas
mãos passaram à instrumentalidade da cura mediúnica. Sem maior estudo para a
sustentação de minhas responsabilidades nos compromissos graves que eu estava
abraçando, devotei-me à leitura dos tratados de magnetismo.
A princípio, eram a confiança em
nossos Benfeitores Espirituais e o poder da prece as forças, em que me
inspirava para trabalhar, sendo admiravelmente sucedida nas tarefas a que me
devotava, confiante. Muitas de nossas irmãs, no momento exato da “délivrance”,
recebiam por meus braços essa abençoada energia que desce do Alto para quantos
se fazem canais do bem.
Contudo, na vida privada, eu era
uma simples lavadeira. A pobreza marcava-nos o dia e a noite, o leito e o
alimento. Calos doloridos multiplicavam-se nas mãos, desde cedo habituadas a
duros misteres no serviço caseiro.
E minha Edméia crescia,
solicitando assistência, pedindo instrução, reclamando amparo.
Meu coração de mulher, no
entanto, não sabia integrar-se nos exemplos e nas lições do Cristo, e, em razão
disso, com muita facilidade passei da claridade para a sombra. Sentia fome do
dinheiro fácil e pouco a pouco a sedução da prosperidade material modificou-me
o pensamento.
No templo espírita, as preleções
exortavam-me à simplicidade, ao sacrifício, à renúncia, à fidelidade e ao dever
corretamente cumprido. Pelos ensinamentos aí adotados, eu devia continuar a ser
a mulher resignada e humilde, à frente das tempestades da vida, rendendo culto
à minha fé, sem exigir retribuição de quem quer que fosse. E por isso mesmo as
lições que me eram administradas se fizeram insípidas ao meu modo de ser.
Pretextando trabalho inadiável,
fugi do contato com aqueles companheiros que amavam na simplicidade o caminho
da renovação. E comecei a aceitar as requisições que me eram endereçadas.
Muitas senhoras reclamavam-me a
colaboração e muitas outras foram chegando, que me pediam o concurso para a delinquência
disfarçada em salvação social. Moças de diversas procedências, damas jovens
acostumadas à preguiça e à irresponsabilidade, ofereciam-se à minha porta, pagando
alto preço por meus serviços. O dinheiro era tentador e as somas eram largas.
A atividade era fácil. O passe
magnético com a administração de algumas drogas, aparentemente simples, davam
resultados perfeitos.
E sem ouvir as sugestões do
nosso amigo Doutor Bezerra, que procurou afastar-me das sombras, enquanto era
tempo, devotei-me de corpo e alma às trevas crescentes que se avolumavam em
minha porta.
Minha Edméia era então menina e
moça. Exigia chapéus e vestidos, joias e adornos, tanto quanto uma casa mais
digna da sua beleza física.
Enganada por terríveis ilusões,
afastei minha filha do trabalho correto. Internei-a num colégio elegante, onde
Edméia aprendeu palavras e hábitos que eu mesma desconhecia. Minha filha era
bela e devia ter um destino diferente do de sua mãe - pensava eu. Devia brilhar
no campo social, obrigando-me, assim, a amealhar uma fortuna fácil que nos
garantisse um palacete, com rendimento e conforto.
Corria o tempo e o dinheiro
avultava-me nas mãos. Uma caderneta de banco assegurava-me depósitos
expressivos.
Dez anos passaram, com
atividades intensas. Não satisfeita com meu próprio trabalho, contratei o
serviço de duas companheiras que me representavam noutros bairros, trazendo-me
os casos difíceis e incentivando a clientela. Essas duas companheiras passaram
a colaborar com segurança e eficiência. Nunca mais me acomodei com as lições
dos livros espíritas.
Para o meu coração enganado, os
santuários da Consoladora Doutrina eram simplesmente lugares em que se reuniam
pessoas de inteligência menos desenvolvida, porque uma força enorme me apoiava
os braços e fazia que todos os partos, sob minha responsabilidade, se
desdobrassem com êxito, exonerando-me de qualquer dever para com a prece.
Queria dinheiro, dinheiro fácil
e, respondendo-me aos apelos, o dinheiro aparecia.
O palacete destinado à nossa
residência estava sendo construído em linhas quase majestosas. Edméia, titulada
num educandário de ensino superior, possuía agora o seu carro particular. Comparecia
às festas e reuniões mundanas, impressionando sempre por sua beleza bem
adornada, beleza que eu incensava apaixonadamente, cega em meus falsos
princípios.
Dez anos, repito, passaram
apressados em meu afã de reter o dinheiro nascido na empresa do crime. Nossa
casa, engalanada, preparava-se para receber-nos. Adquirira tapeçarias e telas
raras, ao gosto de minha filha. Tudo obedecia aos planos por ela traçados. Sentia-me
finalmente ajustada à aristocracia do ouro, desfrutando a madureza tranquila,
remunerada pela fortuna terrestre.
Eis, porém, que, certa noite,
uma de minhas associadas bate à porta de meu gabinete particular, pedindo
concurso. Uma jovem fora por ela mal atendida. Rogava-me urgente inspeção.
Chego à porta e pergunto:
- É uma cliente que pode
realmente pagar com a dignidade precisa?
A companheira responde que sim. Tratava-se
de jovem muito rica. Dera-lhe, de imediato, dois contos de réis. Mando entrar.
A moça desmaiada é trazida à
mesa de operações. Entretanto, estarrecida, naquele belo corpo a esvair-se em
sangue, reconheço Edméia.
Minha filha era também uma
cliente da indústria do aborto. Horrorizada,
passei a colher o fruto de minha irresponsabilidade. Tremeram-me as mãos. Entonteceu-se-me
a cabeça.
Era a primeira vez que eu
meditava no tormento das mães, humilhadas pela delinquência dos filhos! Em vão,
tentei o socorro tardio.
- Tudo estava no fim.
Esmagada de sofrimento, recordei
as antigas lições da casa de fé que eu visitava, em minhas dificuldades
primeiras.
Edméia morreu em meus braços. Também
no meu coração eu não possuía nada mais que o esquife do meu próprio sonho
morto. Tombei, desalentada.
Removida para meu leito, um
médico foi chamado. Debalde busquei pronunciar algumas explicações. Minha boca
estava hirta, meus membros inteiriçados não respondiam a qualquer ordem do
cérebro. A dor rompera-me um vaso importante e por dois meses agonizei, até que
a morte me arremessou à sinistra região em que me vejo cercada por largas
nuvens de lodo e sangue, escutando os comoventes vagidos de criancinhas
assassinadas.
Tenho vertido lágrimas
amargosas! Nunca pude pisar no palacete que minha filha e eu mandáramos
construir. Nunca mais afaguei o anjo de minhas esperanças maternas. Nunca mais
meus olhos descansaram naqueles olhos que eu desejava felizes.
Tenho vivido num lago de sangue,
de treva, de dor, de angústia, de maldição.
Somente agora, depois de muito
orar e padecer, ouvi novamente a voz de Dr. Bezerra, o nosso amado benfeitor. Um
novo serviço ser-me-á confiado.
Devo, por dez anos, trabalhar
nos lupanares e nos gabinetes em que o aborto
se transformou em criminoso negócio, no sentido de amparar as jovens
irrefletidas e as mulheres desorientadas.
Devo evitar que o infanticídio
se processe, oferecendo minhas forças para que algum entezinho possa escapar à
foice sanguinolenta manejada pela mulher esquecida da própria alma.
Devo servir por dez anos nesse
laborioso caminho cujas misérias conheço, para, depois, experimentar, por minha
vez, a dor de tantas crianças que as minhas mãos sufocaram!
Rogo preces, para minh’alma
sofredora!... Amparai a irmã que caiu!
Minha palavra não tem outro
objetivo senão este - implorar a esmola da oração em meu benefício e acordar as
mulheres, nossas irmãs, para que não se afastem da Bênção de Deus.
R. S.
[1] Vozes do
Grande Além – Francisco Cândido Xavier
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