segunda-feira, 27 de junho de 2016

Doloroso Engano[1]


 
Encerrávamos a nossa reunião da noite de 1 de março de 1956, quando nossos Instrutores trouxeram às faculdades psicofônicas do médium o Espírito R. S., desditosa irmã desencarnada que, em soluços comovedores, nos ofertou a sua história de médium transviada, história essa que passamos à consideração de nossos leitores, como doloroso exemplo a ser estudado e meditado:
 Deus de bondade e de amor dai-me forças para que a minha voz não trema na confissão-ensinamento, a que, me sinto obrigada!  Ajudai-me o coração para que a minha palavra não vacile!
Benfeitores Espirituais que me assistis, sustentai-me a fim de que a vergonha não favoreça qualquer inverdade em minha boca!
Meus irmãos, fala-vos pobre mulher desencarnada que, até agora, tem vagueado no charco de choro e sangue. Uma pobre criatura que por escárnio à própria responsabilidade atirou-se ao lago de sofrimento e remorso em que se afoga sem consumir-se. Fui médium, conheci a graça da revelação espírita, partilhei os banquetes da oração e deslumbrei-me diante das lições de luz que meu coração recebia do Céu!
Viúva aos trinta anos, com uma filha para conduzir e orientar na existência, trazia o espírito assim como um barco sem leme. Faltava-me, um ideal religioso para o caráter. A pobreza, a provação e o obstáculo espancavam-me. Por isso mesmo, os sintomas da mediunidade conturbada, que se me fizeram mais graves, acentuaram em nossa casa os problemas e os dissabores.
A conselho de afeições queridas, procurei um santuário espírita, sendo recebida com o amor que vos caracteriza as casas de fé renovadora, que, neste momento, não posso dizer sejam nossas, porque delas me afastei deliberadamente. O primeiro contato com a filosofia simples do Espiritismo, foi para o meu coração como um banho de luz.
Reconfortei-me, refazendo a própria saúde. Meus olhos adquiriram o estranho poder de enxergar além da carne e pude, muitas vezes, em pranto de emotividade, receber a palavra direta do inolvidável benfeitor Dr. Bezerra de Menezes, que costumava dizer-me em tom compassivo:
- Filha, é chegada para a sua alma a hora diferente. Trazem as suas mãos a sublime força da cura. Poderá você aliviar o sofrimento dos semelhantes e, sobretudo, oferecer carinho providencial às irmãs nossas que se sentem defrontadas pelos aguilhões da maternidade dolorosa. Siga a sua estrada, oferecendo a Jesus o coração limpo e a consciência reta, porque a assistência do Céu não lhe faltará ao serviço nem se fará surda aos seus apelos!
Desde então, meus amigos, minhas mãos passaram à instrumentalidade da cura mediúnica. Sem maior estudo para a sustentação de minhas responsabilidades nos compromissos graves que eu estava abraçando, devotei-me à leitura dos tratados de magnetismo.
A princípio, eram a confiança em nossos Benfeitores Espirituais e o poder da prece as forças, em que me inspirava para trabalhar, sendo admiravelmente sucedida nas tarefas a que me devotava, confiante. Muitas de nossas irmãs, no momento exato da “délivrance”, recebiam por meus braços essa abençoada energia que desce do Alto para quantos se fazem canais do bem.
Contudo, na vida privada, eu era uma simples lavadeira. A pobreza marcava-nos o dia e a noite, o leito e o alimento. Calos doloridos multiplicavam-se nas mãos, desde cedo habituadas a duros misteres no serviço caseiro.
E minha Edméia crescia, solicitando assistência, pedindo instrução, reclamando amparo.
Meu coração de mulher, no entanto, não sabia integrar-se nos exemplos e nas lições do Cristo, e, em razão disso, com muita facilidade passei da claridade para a sombra. Sentia fome do dinheiro fácil e pouco a pouco a sedução da prosperidade material modificou-me o pensamento.
No templo espírita, as preleções exortavam-me à simplicidade, ao sacrifício, à renúncia, à fidelidade e ao dever corretamente cumprido. Pelos ensinamentos aí adotados, eu devia continuar a ser a mulher resignada e humilde, à frente das tempestades da vida, rendendo culto à minha fé, sem exigir retribuição de quem quer que fosse. E por isso mesmo as lições que me eram administradas se fizeram insípidas ao meu modo de ser.
Pretextando trabalho inadiável, fugi do contato com aqueles companheiros que amavam na simplicidade o caminho da renovação. E comecei a aceitar as requisições que me eram endereçadas.
Muitas senhoras reclamavam-me a colaboração e muitas outras foram chegando, que me pediam o concurso para a delinquência disfarçada em salvação social. Moças de diversas procedências, damas jovens acostumadas à preguiça e à irresponsabilidade, ofereciam-se à minha porta, pagando alto preço por meus serviços. O dinheiro era tentador e as somas eram largas.
A atividade era fácil. O passe magnético com a administração de algumas drogas, aparentemente simples, davam resultados perfeitos.
E sem ouvir as sugestões do nosso amigo Doutor Bezerra, que procurou afastar-me das sombras, enquanto era tempo, devotei-me de corpo e alma às trevas crescentes que se avolumavam em minha porta.
Minha Edméia era então menina e moça. Exigia chapéus e vestidos, joias e adornos, tanto quanto uma casa mais digna da sua beleza física.
Enganada por terríveis ilusões, afastei minha filha do trabalho correto. Internei-a num colégio elegante, onde Edméia aprendeu palavras e hábitos que eu mesma desconhecia. Minha filha era bela e devia ter um destino diferente do de sua mãe - pensava eu. Devia brilhar no campo social, obrigando-me, assim, a amealhar uma fortuna fácil que nos garantisse um palacete, com rendimento e conforto.
Corria o tempo e o dinheiro avultava-me nas mãos. Uma caderneta de banco assegurava-me depósitos expressivos.
Dez anos passaram, com atividades intensas. Não satisfeita com meu próprio trabalho, contratei o serviço de duas companheiras que me representavam noutros bairros, trazendo-me os casos difíceis e incentivando a clientela. Essas duas companheiras passaram a colaborar com segurança e eficiência. Nunca mais me acomodei com as lições dos livros espíritas.
Para o meu coração enganado, os santuários da Consoladora Doutrina eram simplesmente lugares em que se reuniam pessoas de inteligência menos desenvolvida, porque uma força enorme me apoiava os braços e fazia que todos os partos, sob minha responsabilidade, se desdobrassem com êxito, exonerando-me de qualquer dever para com a prece.
Queria dinheiro, dinheiro fácil e, respondendo-me aos apelos, o dinheiro aparecia.
O palacete destinado à nossa residência estava sendo construído em linhas quase majestosas. Edméia, titulada num educandário de ensino superior, possuía agora o seu carro particular. Comparecia às festas e reuniões mundanas, impressionando sempre por sua beleza bem adornada, beleza que eu incensava apaixonadamente, cega em meus falsos princípios.
Dez anos, repito, passaram apressados em meu afã de reter o dinheiro nascido na empresa do crime. Nossa casa, engalanada, preparava-se para receber-nos. Adquirira tapeçarias e telas raras, ao gosto de minha filha. Tudo obedecia aos planos por ela traçados. Sentia-me finalmente ajustada à aristocracia do ouro, desfrutando a madureza tranquila, remunerada pela fortuna terrestre.
Eis, porém, que, certa noite, uma de minhas associadas bate à porta de meu gabinete particular, pedindo concurso. Uma jovem fora por ela mal atendida. Rogava-me urgente inspeção.
Chego à porta e pergunto:
- É uma cliente que pode realmente pagar com a dignidade precisa?
A companheira responde que sim. Tratava-se de jovem muito rica. Dera-lhe, de imediato, dois contos de réis. Mando entrar.
A moça desmaiada é trazida à mesa de operações. Entretanto, estarrecida, naquele belo corpo a esvair-se em sangue, reconheço Edméia.
Minha filha era também uma cliente da indústria do aborto. Horrorizada, passei a colher o fruto de minha irresponsabilidade. Tremeram-me as mãos. Entonteceu-se-me a cabeça.
Era a primeira vez que eu meditava no tormento das mães, humilhadas pela delinquência dos filhos! Em vão, tentei o socorro tardio.
- Tudo estava no fim.
Esmagada de sofrimento, recordei as antigas lições da casa de fé que eu visitava, em minhas dificuldades primeiras.
Edméia morreu em meus braços. Também no meu coração eu não possuía nada mais que o esquife do meu próprio sonho morto. Tombei, desalentada.
Removida para meu leito, um médico foi chamado. Debalde busquei pronunciar algumas explicações. Minha boca estava hirta, meus membros inteiriçados não respondiam a qualquer ordem do cérebro. A dor rompera-me um vaso importante e por dois meses agonizei, até que a morte me arremessou à sinistra região em que me vejo cercada por largas nuvens de lodo e sangue, escutando os comoventes vagidos de criancinhas assassinadas.
Tenho vertido lágrimas amargosas! Nunca pude pisar no palacete que minha filha e eu mandáramos construir. Nunca mais afaguei o anjo de minhas esperanças maternas. Nunca mais meus olhos descansaram naqueles olhos que eu desejava felizes.
Tenho vivido num lago de sangue, de treva, de dor, de angústia, de maldição.
Somente agora, depois de muito orar e padecer, ouvi novamente a voz de Dr. Bezerra, o nosso amado benfeitor. Um novo serviço ser-me-á confiado.
Devo, por dez anos, trabalhar nos lupanares e nos gabinetes em que o aborto se transformou em criminoso negócio, no sentido de amparar as jovens irrefletidas e as mulheres desorientadas.
Devo evitar que o infanticídio se processe, oferecendo minhas forças para que algum entezinho possa escapar à foice sanguinolenta manejada pela mulher esquecida da própria alma.
Devo servir por dez anos nesse laborioso caminho cujas misérias conheço, para, depois, experimentar, por minha vez, a dor de tantas crianças que as minhas mãos sufocaram!
Rogo preces, para minh’alma sofredora!... Amparai a irmã que caiu!
Minha palavra não tem outro objetivo senão este - implorar a esmola da oração em meu benefício e acordar as mulheres, nossas irmãs, para que não se afastem da Bênção de Deus.
 
R. S.




[1] Vozes do Grande Além – Francisco Cândido Xavier

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