Chico Xavier doou todos os
direitos autorais dos mais de 400 livros que escreveu em vida. O gesto não era
apenas generosidade do médium. Ele dizia que não havia escrito nenhum livro.
“Eles escreveram”, repetia.
De acordo com a ciência, Chico
não poderia falar com os mortos, claro. Tudo teria sido produzido pelo seu
próprio cérebro. Se ele ouvia vozes, eram vozes produzidas por sua mente.
Afinal, a ciência mostra que a
consciência (a mente, ou a alma) é fabricada pelo cérebro e está confinada
nele. Ou seja, quando o corpo morre, a consciência desaparece.
Não existem hipóteses
científicas que sustentem a concepção de algum tipo de alma que sobreviva à
morte.
Mas, diante do acúmulo de casos
como o de Chico Xavier, que não foi explicado pelas leis da natureza ou
considerado categoricamente como fraude, um grupo de cientistas decidiu
questionar a ciência - e não os médiuns.
A conclusão dos pesquisadores
está no livro Irreducible Mind
(“Mente Irredutível”, sem tradução para o português).
A obra parte da lógica de que
fenômenos como a mediunidade, a telepatia e experiências de quase-morte são
indícios de que o modelo teórico vigente nos meios científicos é incompleto.
Os autores defendem uma mudança
na forma de encarar casos como o de Chico: tirá-los do campo do folclore e da
superstição e analisá-los. Hoje, são ignorados.
Para o grupo coordenado pelo
psiquiatra da Universidade da Virgínia (EUA) Edward Kelly, a ciência vem
ignorando um princípio científico básico, o da “falseabilidade”, defendido pelo
filósofo Karl Popper.
Popper dizia que era muito fácil
- e perigoso - ficar catando evidências favoráveis para defender uma tese.
Difícil era encontrar o argumento que a desmontaria de vez.
Para Popper, todo cientista sério
deveria estar sempre procurando um furo na sua tese - e não o contrário.
Kelly e seus colegas defendem
que a mediunidade pode ser um desses furos - e pode desvendar o mistério da
consciência, que instiga filósofos e cientistas há mais de 2 mil anos.
Eles acreditam que parte do
problema está em considerar mente e cérebro uma coisa só. Em Irreducible, os
pesquisadores propõem que o cérebro seja encarado como um aparelho de TV.
A consciência seriam seus
programas. Um defeito na TV pode alterar a qualidade da imagem, mas não
necessariamente o conteúdo dos programas - eles não existem apenas dentro
daquele aparelho.
Ou seja, sem a TV, não podemos
enxergar nosso seriado favorito, mas ele existe mesmo assim. Só não pode ser
assistido.
Funcionaria de um jeito parecido
com a consciência: dependemos do cérebro para percebê-la, mas ela não está,
segundo a proposta, confiada dentro do aparelho (o cérebro).
E isso garantiria sua sobrevida
além do corpo, abrindo a possibilidade de explicar a ideia de que a consciência
segue vagando por aí após a morte e pode se comunicar com as outras
consciências, vivas ou não.
Kelly e os colegas não sabem
dizer se estão certos nem têm provas irrefutáveis a favor dessa concepção. Eles
oferecem a hipótese apenas para sensibilizar seus colegas da psicologia e da
neurociência.
Querem que os cientistas
tradicionais questionem suas convicções e prestem mais atenção em fenômenos
hoje ignorados, como a mediunidade.
Os argumentos a favor dessas
teorias ganham força com alguns estudos, como uma pesquisa publicada há dois
anos na prestigiada revista científica Plos One.
Em parceria com a Universidade
Federal de Juiz de Fora e com a Universidade da Pensilvânia, o psicólogo e
neurocientista Júlio Peres, da USP, viajou aos Estados Unidos com dez médiuns
brasileiros.
Os voluntários eram destros e
tinham entre 15 e 47 anos de experiência mediúnica - cada um com, em média, 18
psicografias por mês. Nenhum deles tinha transtorno mental diagnosticado.
No Centro de Radiologia e
Medicina Nuclear da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, os voluntários
receberam uma substância radioativa para captar a atividade cerebral por meio
de um exame de imagem chamado spect.
Peres e Andrew Newberg, o
cientista americano conhecido por estudar o cérebro de freiras rezando e monges
em meditação, avaliaram as diferenças nas imagens do cérebro dos voluntários em
dois momentos: durante a psicografia e fora do estado de transe, escrevendo um
texto comum, de autoria “própria”.
Os resultados mostraram uma
diferença significativa. Em transe, enquanto supostamente escreviam guiados
pela voz ou pela mão dos espíritos, os médiuns apresentaram níveis mais baixos
de atividade no lobo frontal, que está associado à razão, à linguagem e ao
planejamento.
“Esse resultado possivelmente
reflete a ausência de consciência na psicografia”, explica Peres. Enquanto
escreviam normalmente, essas regiões cerebrais, que costumam estar alertas
durante uma tarefa intelectual, como a escrita, voltavam ao normal.
Os cientistas resolveram, então,
comparar o conteúdo dos dois textos. Se era verdade que o cérebro estava com a
capacidade de raciocínio limitada durante a psicografia, os pesquisadores
levantaram a hipótese de que os textos produzidos em transe refletissem isso e
fossem mais pobres.
Para a surpresa geral, ocorreu
justamente o contrário. O conteúdo das psicografias era mais complexo e
elaborado do que os textos feitos em estado pleno de consciência. Entre os médiuns mais experientes, essa
variação era ainda mais perceptível.
“Os médiuns referem que ‘a
autoria dos textos psicografados foi dos espíritos comunicantes e não pode ser
atribuída a seus próprios cérebros’. Essa é, sim, uma hipótese plausível entre
as várias possibilidades de compreendermos esses primeiros achados”, diz
Peres.
Opiniões à parte, o estudo tem
pelo menos uma conclusão clara: mesmo que tudo seja obra da mente dos médiuns,
como diz a ciência, boa parte deles não tem consciência disso.
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