Ao encontro das religiões
exclusivistas, que tomaram por preceito: Fora da Igreja não há salvação, como
se, pelo seu ponto de vista puramente humano, pudessem decidir da sorte dos
seres na vida futura, Allan Kardec colocou as seguintes palavras no
frontispício das suas obras: Fora da caridade não há salvação. Efetivamente, os
Espíritos ensinam-nos que a caridade é a virtude por excelência e que só ela
nos dá a chave dos destinos elevados.
“É necessário amar os homens”,
assim repetem eles as palavras em que o Cristo havia condensado todos os
mandamentos da lei mosaica.
Mas, objetam os homens não se
amam. Muita maldade aninha-se neles, e a caridade é bem difícil de praticar a
seu favor.
Se assim os julgamos, não será
porque nos é mais agradável considerar unicamente o lado mau de seu caráter, de
seus defeitos, paixões e fraquezas, esquecendo, muitas vezes, que disso também
não estamos isentos, e que, se eles têm necessidade da nossa caridade, nós não
precisamos menos da sua indulgência?
Entretanto, não é só o mal que
reina no mundo. Há no homem também boas qualidades e virtudes, mas há,
sobretudo, sofrimentos. Se desejarmos ser caritativos, como devemos sê-lo em
nosso próprio interesse e no da ordem social, não deveremos inclinar-nos a
apreciações sobre os nossos semelhantes, à maledicência, à difamação; não
deveremos ver no homem mais que um companheiro de provas ou um irmão na luta
pela vida, Vejamos os males que ele sofre em todas as classes da sociedade.
Quem não oculta um queixume, um desgosto no fundo da própria alma; quem não
suporta o peso das mágoas, das amarguras? Se nos colocássemos neste ponto de
vista para considerar o próximo, em breve nossa malquerença transformar-se-ia
em simpatia.
Ouvem-se, por exemplo, muitas
vezes, recriminações contra a grosseria e as paixões brutais das classes
operárias, contra a avidez e as reivindicações de certos homens do povo.
Reflete-se então maduramente sobre a triste educação recebida, sobre os maus
exemplos que os rodearam desde a infância? A carestia da vida, as necessidades
imperiosas de cada dia impõem-lhes uma tarefa pesada e absorvente. Nenhum
descanso, nenhum tempo existe para esclarecer-lhes a inteligência. São-lhes
desconhecidas as doçuras do estudo, os gozos da arte. Que sabem eles sobre as
leis morais, sobre o seu próprio destino, sobre o mecanismo do Universo? Poucos
raios consoladores se projetam nessas trevas. Para esses, a luta terrível
contra a necessidade é de todos os instantes. A crise, a enfermidade e a negra
miséria os ameaçam, os inquietam sem cessar. Qual o caráter que não se
exasperaria no meio de tantos males? Para suportá-los com resignação é preciso
um verdadeiro estoicismo, uma força d’alma tanto mais extraordinária quanto
mais instintiva for. Em vez de atirar pedras contra esses infortunados,
empenhemo-nos em aliviar seus males; em enxugar suas lágrimas, em trabalhar com
ardor para que neste mundo se faça uma distribuição mais equitativa dos bens
materiais e dos tesouros do pensamento. Ainda não se conhece suficientemente o
valor que podem ter sobre esses infelizes uma palavra animadora, um sinal de
interesse, um cordial aperto de mão. Os vícios do pobre desgostam-nos e,
entretanto, que desculpa ele não merece por causa da sua miséria! Mas, em vez
de desculpá-los, fazemos por Ignorar suas virtudes, que são muito mais admiráveis
pelo simples fato de surgirem do lodaçal.
Quantas dedicações obscuras
entre esses pobres! Quantas lutas heroicas e perseverantes contra a
adversidade! Meditemos sobre as inumeráveis famílias que medram sem apoio, sem
socorro; pensemos em tantas crianças privadas do necessário, em todas essas
criaturas que tiritam de frio e fome dentro de úmidos e sombrios albergues ou
nas mansardas desoladas. Quantos encargos para a mulher do povo, para a mãe de
família em tais condições, assim que o inverno cobre a terra, quando a lareira
está sem fogo, a mesa sem alimentos e o leito gelado, com farrapos substituindo
o cobertor vendido ou hipotecado em troca de um bocado de pão! Seu sacrifício
não será de todos os momentos? E, no entanto, seu pobre coração comove-se à
vista das dores do próximo! Não deveria o ocioso opulento envergonhar-se de
ostentar riquezas no meio de tantos sofrimentos? Que responsabilidade
esmagadora para ele, se, no seio da sua abundância, esquece esses a quem
oprime!
Sem dúvida, muitas coisas
repugnantes, muitas imundícies misturam-se às cenas da vida dessas criaturas.
Queixumes e blasfêmias, embriaguez e alcovitice, crianças desapiedadas e pais
cruéis, todas essas deformidades aí se confundem; mas, ainda assim, sob esse
exterior repelente, é sempre a alma humana que sofre, a alma nossa irmã, cada
vez mais digna de interesse e de afeição.
Arrancá-la desse pântano lodoso,
reaquecê-la, esclarecê-la, fazendo-a subir de degrau em degrau a escada da
reabilitação, eis a grande tarefa! Tudo se purifica ao fogo da caridade. Era
esse logo que abrasava o Cristo, Vicente de Paulo, Fénelon e muitos outros. Era
no seu Imenso amor pelos fracos e desamparados que também se encontrava a
origem da sua abnegação sublime.
Sucede o mesmo com todos os que
têm a faculdade de muito amar e de muito sofrer. Para eles, a dor é como que
uma iniciação na arte de consolar e aliviar os outros. Sabem elevar-se acima
dos seus próprios males para só verem os de seus semelhantes e para procurar
remediá-los. Daí, os grandes exemplos dessas almas eminentes que, assediadas
por tormentos, por agonia dolorosa, encontram ainda os meios de curar as
feridas dos que se deixam vencer no combate da vida.
A caridade, porém, tem outras
formas pelas quais se exerce, independente da solicitude pelos desgraçados. A
caridade material ou a beneficência podem aplicar-se a certo número dos nossos
semelhantes, sob a forma de socorro, apoio e animação. A caridade moral deve
abranger todos os que participam da nossa existência neste mundo. Não mais
consiste em esmolas, porém, sim, numa benevolência que deve envolver todos os
homens, desde o mais bem dotado em virtude até o mais criminoso, e bem assim
regular as nossas relações com eles.
A verdadeira caridade é paciente
e indulgente. Não se ofende nem desdenha pessoa alguma; é tolerante e, mesmo
procurando dissuadir, o faz sempre com doçura, sem maltratar, sem atacar ideias
enraizadas.
Esta virtude, porém, é rara. Um
certo fundo de egoísmo leva-nos, muitas vezes, a observar, a criticar os
defeitos do próximo, sem primeiro repararmos nos nossos próprios. Existindo em
nós tanta podridão, empregamos ainda a nossa sagacidade em fazer sobressair as
qualidades ruins dos nossos semelhantes. Por Isso não há verdadeira
superioridade moral, sem caridade e modéstia. Não temos o direito de condenar
nos outros as faltas a que nós mesmos estamos expostos; e, embora a elevação
moral já nos tenha isentado dessas fraquezas, devemos lembrar-nos de que tempo
houve quando nos debatíamos contra a paixão e o vicio.
Há poucos homens que não tenham
maus hábitos a corrigir, Impulsos caprichosos a modificar. Lembremo-nos de que
seremos julgados com a mesma medida de que nos servirmos para com os nossos
semelhantes. As opiniões que formamos sobre eles são quase sempre reflexo da
nossa própria natureza. Sejamos mais prontos a escusar do que a censurar.
Muitas vezes nos arrependemos de um julgamento precipitado. Evitemos, portanto,
qualquer apreciação pelo lado mau.
Nada é mais funesto para o
futuro da alma do que as más intenções, do que essa maledicência Incessante que
alimenta a maior parte das conversas. O eco das nossas palavras repercute na
vida futura, a atmosfera dos nossos pensamentos malignos forma uma espécie de
nuvem em que o Espírito é envolvido e obumbrado. Abstenhamo-nos dessas
criticas, dessas apreciações dolosas, dessas palavras zombeteiras que envenenam
o futuro. Acautelemo-nos da maledicência como de uma peste; retenhamos em
nossos lábios qualquer palavra mordaz que esteja prestes a ser proferida,
porque de tudo Isso depende a nossa felicidade.
*
O homem caridoso faz o bem
ocultamente; e, enquanto este encobre as suas boas ações, o vaidoso proclama o
pouco que faz. “Que a mão esquerda ignore o que faz a direita”, disse Jesus.
“Aquele que fizer o bem com ostentação já recebeu a sua recompensa.”
Beneficiar ocultamente, ser
Indiferente aos louvores humanos, é mostrar uma verdadeira elevação de caráter,
é colocar-se acima dos julgamentos de um mundo transitório e procurar a
justificação dos seus atos na vida que não acaba.
Nessas condições, a ingratidão e
a Injustiça não podem atingir aquele que fora caritativo. Ele faz o bem porque
é do seu dever e sem esperar nenhuma recompensa. Não procura auferir vantagens;
deixa à lei o cuidado de fazer decorrer as consequências dos seus atos, ou,
antes, nem pensa nisso. É generoso sem cálculo. Para tornar-se agradável aos
outros, sabe privar-se do que lhe é necessário, plenamente convencido de que
não terá nenhum mérito dispondo do que for supérfluo.
Eis por que o óbolo do pobre, o
denário da viúva, o pedaço de pão que o proletário divide com seu companheiro
de infortúnio têm mais valor que as larguezas do rico. Há mil maneiras de nos
tornarmos úteis, de irmos em socorro dos nossos irmãos. O pobre, em sua
parcimônia, pode ainda ir em auxílio de outro mais necessitado do que ele. Nem
sempre o ouro seca todas as lágrimas ou cura todas as feridas. Há males sobre
os quais uma amizade sincera, uma ardente simpatia ou uma afeição operam melhor
que todas as riquezas.
Sejamos generosos com esses que
têm sucumbido na luta das paixões e foram desviados para o mal, sejamos
liberais com os pecadores, com os criminosos e endurecidos. Porventura sabemos
quais as fases cruéis por que eles passaram, quais os sofrimentos que
suportaram antes de falir? Teriam essas almas o conhecimento das leis
superiores como sustentáculo na hora do perigo? Ignorantes, irresolutas,
agitadas pelo sopro da desgraça, poderiam elas resistir e vencer? Lembremo-nos
de que a responsabilidade é proporcional ao saber e que muito será pedido
àquele que já possui o conhecimento da verdade. Sejamos piedosos para com os
que são pequenos, débeis ou aflitos, para com esses a quem sangram as feridas
da alma ou do corpo. Procuremos os ambientes onde as dores fervilham, os
corações se partem, onde as existências se esterilizam no desespero e no
esquecimento. Desçamos aos abismos da miséria, a fim de levar consolações
animadoras, palavras que reconfortem, exortações que vivifiquem, a fim de fazer
luzir a esperança, esse sol dos infelizes. Esforcemo-nos por arrancar daí
alguma vítima, por purificá-la, salvá-la do mal, abrir-lhe uma via honrosa. Só
pelo devotamento e pela afeição encurtaremos as distâncias e preveniremos os
cataclismos sociais, extinguindo o ódio que transborda do coração dos deserdados.
Tudo o que fizermos pelos nossos
irmãos gravar-se-á no grande livro fluídico, cujas páginas se expandem através
do espaço, páginas luminosas onde se inscrevem nossos atos, nossos sentimentos,
nossos pensamentos. E esses créditos ser-nos-ão regiamente pagos nas
existências futuras.
Nada fica perdido ou esquecido.
Os laços que unem as almas na extensão dos tempos são tecidos com os benefícios
do passado. A sabedoria eterna tudo dispôs para bem das criaturas. As boas
obras realizadas neste mundo tornam-se, para aquele que as produziu, fonte de
infinitos gozos no futuro.
A perfeição do homem resume-se a
duas palavras: Caridade e Verdade. A caridade é a virtude por excelência, pois
sua essência é divina. Irradia sobre os mundos, reanima as almas como um olhar,
como um sorriso do Eterno. Ela se avantaja a tudo, ao sábio e ao próprio gênio,
porque nestes ainda há alguma coisa de orgulho, e às vezes são contestados ou
mesmo desprezados. A caridade, porém, sempre doce e benevolente, reanima os
corações mais endurecidos e desarma os Espíritos mais perversos, inundando-os
com o amor.
[1] Depois da
Morte - Léon Denis
Nenhum comentário:
Postar um comentário