Reunião da noite de 12 de janeiro de 1956. Emocionadamente,
o nosso grupo recebeu a visita de Joaquim Dias, pobre espírito sofredor que nos
trouxe o doloroso relato, de sua experiência, da qual recolhemos amplo material
para estudo e meditação.
Alcoólatra!
Que outra palavra existirá na Terra, encerrando consigo tantas
potencialidades para o crime?
O alcoólatra não é somente o destruidor de si mesmo. É o perigoso
instrumento das trevas, ponte viva para as forças arrasadoras da lama abismal.
O incêndio que provoca desolação aparece numa chispa.
O alcoolismo que carreia a miséria nasce num copinho.
De chispa em chispa, transforma-se o incêndio em chamas devoradoras.
De copinho a copinho, o vício alcança a delinquência.
Hoje, farrapo de alma que foi homem, reconheço que, ontem, a minha
tragédia começou assim...
Um aperitivo inocente...
Uma hora de recreio...
Uma noite festiva...
Era eu um homem feliz e trabalhador, vivendo em companhia de meus
pais, de minha esposa e um filhinho.
Uma ocasião, porém, surgiu em que tive a infelicidade de sorver alguns
goles do veneno terrível; disfarçado em bebida elegante, tentando afugentar
pequeninos problemas da vida e, desde então, converti-me em zona pestilencial
para os abutres da crueldade.
Velhos inimigos desencarnados de nossa equipe familiar fizeram de mim
seu intérprete.
A breve tempo, abandonei o trabalho, fugi à higiene e apodreci meu
caráter, trocando o lar venturoso pela taverna infeliz.
Bebendo por mim e por todas as entidades viciosas que nos hostilizavam
a casa, falsifiquei documentos, matando meu pai com medicação indevida, depois
de arrojá-lo à extrema ruína.
Mais tarde, tornando-me bestial e inconsciente, espanquei minha mãe,
impondo-lhe a enfermidade que a transportou para a sepultura.
Depois de algum tempo, constrangi minha esposa ao meretrício, para
extorquir-lhe dinheiro, assassinando-a numa noite de horror e fazendo crer que
a infeliz se envenenara usando as próprias mãos e, de meu filho, fiz um jovem
salteador e beberrão, muito cedo eliminado pela polícia...
Réprobo social, colhia tão-somente as aversões que eu plantava.
Muitas vezes, em relâmpagos de lucidez, admoestava-me a consciência: Ainda é tempo! Recomeça! Recomeça!
Entretanto, fizera-me um homem vencido e cercado pelas sombras
daqueles que, quanto eu, se haviam consagrado no corpo físico à criminalidade e
à viciação, e essas sombras rodeavam-me apressadas, gritando-me, irresistíveis:
Bebe e esquece! Bebe, Joaquim!
E eu me embriagava, sequioso de olvidar a mim mesmo, até que o delírio
agudo me sitiou num catre de amargura e indigência.
A febre, a enfermidade e a loucura consumiram-me a carne, mas não
percebi a visitação da morte, porque fui atraído, de roldão, para a turba de delinquentes
a que antes me afeiçoara.
Sofri-lhes a pressão, assimilei-lhes os desvarios e, com eles,
procurei novamente embebedar-me.
A taverna era o meu mundo, com a demência irresponsável por meu modo
de ser...
Ai de mim, contudo! Chegou o instante em que não mais pude engodar
minha sede!...
A insatisfação arrasava-me por dentro, sem que meus lábios
conseguissem tocar, de leve, numa gota do liquido tentador.
Deplorando a inexplicável inibição que me agravava os padecimentos,
afastei-me dos companheiros para ocultar a desdita de que me via objeto.
Caminhei sem destino, angustiado e semilouco, até que me vi prostrado
num leito espinhoso de terra seca...
Sede implacável dominava-me totalmente...
Clamei por socorro em vão, invejando os vermes do subsolo.
Palavra alguma conseguiria relatar a aflição com que implorei do Céu
uma gota d’água que sustasse a alucinação de minhas células gustativas...
Meu suplicio ultrapassava toda humana expressão...
Não passava de uma fogueira circunscrita a mim mesmo.
Começaram, então, para mim, as miragens expiatórias.
Via-me em noite fresca e tranquila, procurando o orvalho que caía do
céu para dessedentar-me, enfim, mas, buscando as bagas do celeste elixir, elas
não eram, aos meus olhos, senão lágrimas de minha mãe, cuja voz me atingia,
pranteando em desconsolo: Não me batas,
meu filho! Não me batas, meu filho!...
Devolvido à flagelação, via-me sob a chuva renovadora, mas, tentando
sorver-lhe o jorro, nele reconhecia o pranto de meu pai, cujas palavras
derradeiras me impunham desalento e vergonha: Filho meu, por que me arruinaste assim?
Arrojava-me ao chão, mergulhando meu ser na corrente poluída que o
temporal engrossava sempre, na esperança de aliviar a sede terrível, mas, na
própria lama do enxurro, encontrava somente as lágrimas de minha esposa, de mistura
com, recriminações dolorosas, fustigando-me a consciência: Por que me atiraste ao lodo? e por que me mataste, bandido?
De novo regressava ao deserto que me acolhia, para logo após me
entregar à visão de fontes cristalinas...
Enlouquecido de sede, colava a boca ao manancial, que se convertia em
taça de fel candente, da qual transbordavam as lágrimas de meu filho, a
bradar-me, em desespero: Meu pai, meu
pai, que fizeste de mim?
Em toda parte, não surpreendia senão lágrimas... Arrastei-me pelos
medonhos caminhos de minha peregrinação dolorosa, como um Espírito amaldiçoado
que o vício metamorfoseara em peçonhento réptil...
Suspirava por água que me aliviasse o tormento, mas só encontrava
pranto...
Pranto de meu pai, de minha mãe, de minha esposa e de meu filho a
perseguir-me implacável...
Alma acicatada por remorsos intraduzíveis, amarguei provações
espantosas, até que mãos fraternas me trouxeram à bênção da oração...
Piedosos enfermeiros da Vida Espiritual e mensageiros da Bondade
Divina, pelos talentos da prece, aplacaram-me a sede, ofertando-me água pura...
Atenuou-se-me o estranho martírio, embora a consciência me acuse...
Ainda assim, amparado por aqueles que vos inspiram, ofereço-vos o
triste exemplo de meu caso particular par escarmento daqueles que começam de
copinho a copinho, no aperitivo inocente, na hora de recreio ou na noite
festiva, descendo desprevenidos para o desequilíbrio e para a morte...
E, em vos falando, com o meu sofrimento transformado em palavras,
rogo-vos a esmola dos pensamentos amigos para que eu regresse a mim mesmo, na
escabrosa jornada da própria restauração.
[1] Vozes do
Grande Além – Joaquim Dias / Chico
Xavier
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