quarta-feira, 8 de julho de 2015

A humildade é fértil[1]



MARCELO TEIXEIRA
maltemtx@uol.com.br
Petrópolis, RJ (Brasil)


Quem me despertou para a descoberta que dá título a este capítulo foi o ator Eriberto Leão, em entrevista concedida ao Programa do Jô (TV Globo) em 11 de dezembro de 2009. Na ocasião, ele esclareceu que a palavra humildade deriva da palavra húmus, que significa terra boa, apta a receber a semente e fazê-la germinar, gerando frutos e mais frutos. Fui, então, ao dicionário, que confirmou o que o Eriberto disse. A humildade, portanto, é fértil. Para mim, uma das maiores descobertas dos últimos tempos.
É uma grande oportunidade para revermos o conceito que temos acerca de humildade, equivocadamente interpretada como baixar a cabeça, ser simplório, usar roupas puídas e similares. Ser humilde não é nada disso, felizmente. E humilhar-se deixa também de significar rebaixar-se. É deixar-se fecundar. Muito mais fascinante e profundo.
Essa descoberta nos leva a revisitar algumas passagens evangélicas para percebermos a importância de sermos férteis e deixarmos fecundar no solo da consciência as várias sementes que a vida joga em nós diariamente.
Vou começar com a primeira das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”.
Em O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. VII, item 2, Allan Kardec alerta que Jesus, na citada bem-aventurança, não se refere aos desprovidos de inteligência, mas aos humildes. É para os férteis, portanto, que o reino dos céus (estado permanente de felicidade, consciência tranquila e sensação de dever cumprido) está reservado.
No livro A Voz do Monte, o escritor Richard Simonetti ressalta que não é à toa que essa bem-aventurança é a primeira a ser proclamada no Sermão do Monte. Jesus Cristo, sendo o Mestre por excelência, quis dar uma sequência lógica a tão grandiosos ensinamentos. Portanto, quis deixar claro que, para começarmos a jornada evolutiva de forma lúcida e coerente, devemos ser férteis o suficiente para termos uma ideia exata de quem de fato somos. Como isso se dá? Quando reconhecemos que somos imperfeitos, que erramos muito, que nem sempre estamos com a razão, que devemos saber receber uma crítica construtiva, que a pessoa que nos ofende pode estar passando por um momento difícil etc. Essas são algumas das sementes que nos são jogadas no cotidiano. Se a terra da nossa consciência for humilde (fértil), as sementes resultarão em colheitas de autoconhecimento, compreensão e burilamento íntimo, por exemplo. Mas se a terra for árida e infértil, as sementes não germinarão. Resultado: cólera, revide, orgulho ferido, insegurança, fanatismo e outros tantos males que nos acometem por falta de humildade.
Vai ver é por isso que, na Parábola do Semeador, outro conhecido trecho do Novo Testamento, Jesus faz questão de explicitar a natureza dos vários terrenos que receberam as sementes que o semeador jogou. As três primeiras levas de sementes caíram ao longo do caminho, entre pedras e em meio a espinheiros. Nenhuma delas brotou; foram devoradas por pássaros, esturricadas pelo sol ou abafadas pelos espinhos. Foram liquidadas pela falta de humildade, caracterizada por desinteresse, superficialidade, opressão, egoísmo, disputa de poder, desdém, preconceito. Em contrapartida, a quarta leva de sementes caiu na terra boa e produziu “cem por um; outras, sessenta e outras, trinta”. Isto é, conforme o grau de fertilidade, as pessoas amadureceram, deixaram falar a voz da consciência e produziram de acordo com o entendimento que tiveram. Mas não deixaram de produzir. Isso significa que, mesmo produzindo pouco, a tendência é que a fertilidade aumente e, aos poucos, o ser humano irá aprimorando o grau de entendimento, estando apto, assim, a ser mais humilde, à medida que for dilatando sua percepção e reconhecendo-se imperfeito, sempre necessitando aprender algo e estando aberto ao novo.
Outro bom exemplo, ainda utilizando o Novo Testamento, é o célebre episódio da mulher adúltera, prestes a ser apedrejada pela turba que pega e lincha. Aí, Jesus diz que deve atirar a primeira pedra aquele que estiver sem pecado. O que o Mestre fez? Jogou sementes de compreensão que, por motivos variados, creio, foram assimiladas por aqueles homens de pedra em punho. Eles foram levados a ter uma atitude humilde/fértil. Deixaram o ensinamento de o Cristo brotar no solo de suas consciências. Deixaram de lado a aridez do orgulho e da intolerância. A semente fecundou o solo de cada um deles. Por conseguinte, brotaram muitas, que fizeram aqueles homens pensarem: - Nossa, eu também tenho inúmeros defeitos. – Se eu estivesse no lugar dela, gostaria que me atirassem pedras? – O que estou fazendo com essa pedra na mão se nem conheço essa mulher? – Não devo dar ouvidos a quem me incita a jogar uma pedra nessa pobre criatura. Senão, eu é que corro o risco de ser apontado como agitador! Enfim, sementes que, naquele momento, fizeram vários terrenos produzir cinco, dez, vinte ou cem, não importa. Foi uma produção suficiente para todos largarem as pedras e irem embora, renovados que estavam por terem se deixado fertilizar pela semente do ensinamento do Cristo, que fez com eles reavaliassem, num átimo de segundo, seus próprios valores. Isso é ser humilde. Cada um daqueles homens deve ter sido humilde a seu modo.
Creio que quando pensamos em humildade, devemos também ter sensibilidade para perceber que seu significado vai além do antônimo de orgulho.
No livro Trabalhando para si Mesmo, o escritor José Carlos Leal conta a história de um professor que, depois de 20 anos lecionando em um colégio, foi demitido. Ele, então, pegou o dinheiro da indenização e abriu um estabelecimento de ensino. Hoje, ganha muito mais como dono do próprio nariz. Ele foi humilde! Deixou-se fecundar pela oportunidade que a situação difícil apresentava e deu a volta por cima. Se não fosse humilde, teria caído em depressão ou iria procurar outro trabalho que o mantivesse no mesmo patamar salarial. Ou simplesmente ficaria com raiva do ex-empregador, cultivando a aridez do rancor e do orgulho ferido. A humildade tem, portanto, muito a ver com empreendedorismo, palavra muito utilizada nos dias de hoje. É a fertilidade de percebermos que podemos tentar outro caminho.
Evaristo Antunes, primo de meu avô paterno e presidente da União Municipal Espírita de Petrópolis (Umep) por muitos anos, certa vez testemunhou uma briga de trânsito. Ao tentar acalmar um dos motoristas, ouviu dele que estava com muita raiva porque o outro envolvido o havia mandado para algum lugar pouco recomendável. Evaristo, com muita calma e bom humor, disse: - Ué, meu filho. Não vá! Simples assim. Eis aí a humildade que é sinônimo de bom humor. Devemos ser férteis o suficiente para levarmos na esportiva quando nos agridem com palavras. É uma humildade que tem de se apresentar cheia de presença de espírito. Geralmente, desarma o ofensor e o deixa sem ação, já que tivemos a humildade de não dar importância aos desaforos. O agressor ficará sem graça, perceberá que sua agressividade não dará em nada e irá se retirar, fecundado pela nossa reação surpreendente. Corre o risco de, mais adiante, ele rir da situação, como eu já vi acontecer.
No final da década de 1970, foi ao ar na TV uma campanha publicitária chamada “Desarme-se e viva melhor”. Consistia em vários comerciais em que pessoas agressivas eram “desarmadas” pela gentileza. Lembro que, em um dos comerciais, um homem começava a discutir com outro porque acreditava que este outro havia furado a fila de espera do restaurante. Este segundo, em vez de entrar na pilha da discussão, teve a humildade de se desculpar. Ato contínuo, estendeu a mão para o estressado e convidou, ele e esposa, para se sentarem à mesa, pois também estava acompanhado da mulher. O indivíduo que iniciou a discussão sorriu sem graça e aceitou o convite.
Conheço uma história ótima sobre duas pessoas (não sei se parentas ou amigas) que começaram a discutir. Uma delas, no auge da briga, disse para a outra algo do tipo “Você é isto, isso, aquilo e mais aquilo outro!” A ofendida, então, virou-se para a ofensora e perguntou: “Você acha mesmo que eu sou isso tudo aí?” “Acho sim!”, respondeu a primeira pessoa, encolerizada. A segunda, então, arrematou, serena: Então tá! E pôs fim à briga, deixando a outra completamente sem ação.
A humildade às vezes se mostra difícil porque requer presença de espírito, algo que anda meio esquecido. Preferimos apelar para o estresse, a discussão acalorada, o mau humor e o orgulho ferido. Resultado: terreno infértil que não deixa nenhuma semente brotar.
Miriam Machado, com quem trabalhei na Editora Vozes, contou certa vez que o ex-marido entrou numa de querer emancipar a filha, então com 16 anos. Para tanto, fez a cabeça da menina. Esta, por sua vez, começou a perseguir a mãe com a ideia. O que Miriam fez? Foi humilde. De que forma? Concordou de pronto com a emancipação, alegando que, se a filha e o ex-marido queriam, não seria ela, voto vencido, a ficar brigando (falta de humildade). O assunto morreu. Se a inteligência de Miriam não fosse humilde, ela bateria de frente com ambos e colocaria os três num infindável estresse.
Há muitos outros comportamentos que evidenciam nossa falta de humildade/fertilidade. Teimosia é um deles. Sabe aquelas pessoas que insistem em um caso perdido? Há várias histórias assim. Gente que se recusa a enxergar o óbvio e passa às vezes uma existência inteira malhando em ferro frio. Conheci um senhor viúvo que não se conformava com as escolhas da única filha. Na cabeça dele, a filha tinha de ser uma princesa, além de estudiosa. Só que ela nunca ligou para estudar (terminou aos trancos o Ensino Médio), não casou como manda o figurino – apenas juntou as escovas de dente com o amado –, fez um curso de cabeleireira e foi trabalhar num salão. Perfeito para ela, que sempre cuidou direitinho do pai, dos filhos e do marido. Só que o pai, em vez de ter a humildade de enxergar com bons olhos as escolhas da filha, preferiu persegui-la. Foram anos e mais anos de implicâncias e agressões verbais, direcionadas ao marido dela também. Na cabeça desse pai, a filha tinha de voltar a estudar e se casar com véu, grinalda e flor de laranjeira. Passou décadas estressando a família e teimando contra o óbvio, feito um cachorro tentando morder o próprio rabo – ou seja, roda, roda e não consegue. Até que desencarnou. Agora, deve estar aprendendo o valor de uma postura fértil, que se deixa fecundar pelas escolhas justas que os filhos fazem, embora nem sempre condizentes com os sonhos dos pais. Saber respeitar as escolhas alheias é também ser humilde.
Quero falar de outra evidência da falta de humildade: a dificuldade que algumas pessoas têm de aceitar as mudanças pelas quais o mundo passa. Falo de gente reacionária, que se recusa a admitir que o novo sempre vem. Sim, reacionarismo e terreno árido e duro fazem uma parceria bastante incômoda. É a turma que não dá o braço a torcer de jeito nenhum; os donos da verdade. Haja pá, enxada, ancinho, picareta e fertilizante para revolver essas terras! Mesmo assim, muitas continuam áridas. Pena!
Meu consolo é saber que um dia, a golpes de dor, a Terra se verá obrigada a ser humilde e, finalmente, deixar-se-á fecundar pelas sementes de uma nova mentalidade. Se não for nesta existência, será numa próxima ou até mesmo no plano espiritual. Afinal, os empedernidos também desencarnarão um dia. E a meu ver, não existe maior gesto de humildade do que se deixar fecundar pela realidade da vida espiritual. Para quem é árido, deve ser um grande baque. Talvez seja por isso que as reuniões mediúnicas tenham sempre tanto trabalho, que é esclarecer os que deixaram este mundo e se recusam a admitir o fato.
Tenho de falar, também, sobre gente que não reconhece que errou e que não pede desculpas, mesmo sabendo que errou. Já repararam como são áridas e conturbadas, desprovidas de paz interior? Quantos relacionamentos conjugais, familiares e entre amigos já se desfizeram por causa da falta de um simples pedido de desculpas! Quanta dureza de solo! E o que dizer dos fanáticos, seja por religião, futebol, partido político etc.? Só eles estão certos. Os demais, errados por pensarem de forma diferente. Mentes fechadas que não se deixam fertilizar/humilhar pela capacidade de perceber que tudo é relativo.
Vou arrematar este capítulo contando uma reportagem a que assisti no “Jornal Hoje” (TV Globo), na década de 1990. Era sobre um senhor da cidade de Ituiutaba (MG). Nome: Deócles Gomes Machado, mas era carinhosamente chamado de Tio Doc. Um dia, Doc (desculpe a intimidade) ficou viúvo. Aposentado e já com certa idade, em vez de mergulhar na solidão, optou por ser solidário. Bem solidário, aliás. Procurou terrenos vazios, pediu autorização aos donos e iniciou uma lavoura em cada um. As mudas, ele comprou e continuou comprando com o dinheiro da aposentadoria. Em pouco tempo, brotaram cenoura, rabanete, couve, espinafre, batata, chuchu, abóbora, alface, chicória, tomate, beterraba, agrião. E também laranja, maçã, mamão, banana, abacate e outras tantas frutas e legumes e verduras.
Tio Doc, então, pegou o carrinho de mão e começou a distribuir o resultado das colheitas nas creches e abrigos de idosos da cidade. “Quando eu morrer, não vou levar nada. Tenho que levar meus bons atos. Trabalhar em benefício do próximo”, disse ele com uma humildade que só quem é muito grande sabe ter. Confesso que chorei de vergonha. Fiquei comovido e profundamente envergonhado de estar diante daquele homem, embora pela TV. Senti-me tão pequeno que tive vontade de ir chorar debaixo da mesa, de tão esmagado que fiquei diante de tanta grandeza, tanta fertilidade que se deixou germinar por sementes de amor incondicional ao próximo. Sementes que brotaram em forma de doação e geraram alimentos para pessoas carentes. E tudo graças a uma iniciativa tão simples e tão forte, tão bela!
Cerca de 20 anos depois, Tio Doc desencarnou, e o Jornal Nacional (TV Globo) registrou a morte daquele grande homem, que chegou a alimentar 1,2 mil pessoas por mês. Estava com 105 anos de idade e decerto chegou ao plano espiritual colhendo frutos abundantes originários de tanta semente que ele deixou germinar no solo e no coração.
A história poderia parar por aí. Só que Tio Doc deixou seguidores. Entre eles, Valmir, outro aposentado, que ficou cuidando das hortas em terrenos baldios e herdou de Deócles o amor pela terra e o carinho pelas crianças e idosos. “Porque se uma pessoa faz, a outra faz. Dez mil ajudando, o que vai acontecer? Vai melhorar tudo, não vai?”, arrematou.
Tanto terreno baldio ou fechado espalhado por aí! Já pensou se cada pessoa resolver fazer uma horta em um desses terrenos e distribuir o resultado da colheita a quem necessita? Quantos frutos de amor, doação e humildade pra lá de fértil erguendo pessoas!
Como foi bom descobrir que a humildade é fértil! Acho que isso pode facilitar a transformação moral de muita gente, a começar pela minha.

Bibliografia:
LEAL, José Carlos. Trabalhando para Si Mesmo. Mil Folhas Ed., 4ª Ed., 2000, Rio de Janeiro, RJ.
SIMONETTI, Richard. A Voz do Monte. Federação Espírita Brasileira (FEB), 3ª Ed., 1989, Brasília, DF.


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