Novas técnicas devolvem a vida a pessoas que passaram até 10 horas sem
batimento cardíaco nem atividade cerebral e fazem médicos voltar a discutir o
que é morrer
Não importa se por doença, acidente ou violência. Sua vida acaba quando
o coração para. O sistema nervoso deixa então de receber oxigênio do sangue e
entra em colapso. Após 5 minutos, os danos ao cérebro são considerados
irreversíveis. Pouco depois você é declarado morto. Mas não devia ser assim. É
o que dizem agora médicos e pesquisadores entusiastas de novas técnicas que têm
trazido de volta à vida pacientes que ultrapassaram — e muito — o momento em
que a medicina tradicionalmente considera alguém morto.
O entendimento de que após 5 minutos começa não valer mais a pena
insistir na reanimação tem base nos chamados Critérios de Harvard, uma reunião
de protocolos de 1968 que ainda é a principal referência para determinar a
morte. Mas como seria possível explicar, com base nessa ideia, o caso do
jogador de futebol Fabrice Muamba? Na tarde de 17 de março de 2012, o africano
de 23 anos desmaiou no gramado do estádio White Hart Lane, em Londres, diante
de 35 mil pessoas. Levado às pressas para o London Chest Hospital, seu coração
ficou parado por 1 hora e 18 minutos. Ele sobreviveu, e sem nenhuma sequela.
Milagre?
Nada disso. “A ciência trouxe Muamba de volta. Por todos os critérios
médicos tradicionais, ele estava morto e agora está vivo”, afirma o pesquisador
britânico Sam Parnia. Chefe da UTI do hospital da Universidade Stony Brook, em
Nova York, Parnia acaba de lançar o livro Erasing Death (Apagando a morte,
ainda sem tradução).
Muamba não é o único exemplo. Em junho de 2011, uma japonesa de 30 anos
foi encontrada num bosque, morta por overdose de medicamentos — a temperatura
do corpo, 20° C, indicava que estava há muito tempo sem batimentos. Depois de
mais seis horas dentro do hospital, ela voltou a respirar. “Ela esteve morta
por pelo menos dez horas. Mas recebeu o tratamento adequado e hoje está bem”,
afirma Parnia, que entrevistou os médicos japoneses após eles terem publicado o
caso num periódico científico. De acordo com o relato deles, mesmo tendo
passado quase metade de um dia morta, a mulher se recuperou e até teve um bebê
no ano passado.
Em agosto de 2009, o motorista americano Joe Tiralosi, de 57 anos, deu
entrada no Hospital Presbiteriano de Nova York. Tinha sofrido um enfarte. Foi
levado para uma mesa de cirurgia e, depois de 20 minutos de massagem cardíaca,
com respiração artificial e injeções de adrenalina, nada de pulso. Tiralosi
também poderia ter sido declarado morto, mas os médicos continuaram tentando
por 40 minutos. Seu coração voltou a bater — só que, enquanto os médicos
desentupiam as veias que haviam provocado o enfarte, morreu uma segunda vez,
agora por 15 minutos. Foi ressuscitado novamente. Três semanas depois, estava
de volta para sua família no Brooklin com saúde física e mental impecável. “Há
dez anos, continuar tentando depois de tanto tempo seria considerado
irresponsável. Acreditava-se que o paciente, se voltasse a respirar, viveria em
estado vegetativo”, diz o médico americano Robert Neumar, pesquisador da
Universidade de Michigan. “Hoje, sabemos que o cérebro é mais resistente do que
isso.”
VIVER DE FRIO
O motorista, a mulher e o atleta só voltaram a viver porque os
hospitais que os receberam usaram procedimentos de ponta, adotados
paulatinamente nos últimos dez anos. E também porque tiveram a sorte de chegar
em condições ideais para eles serem aplicados. Esses procedimentos acrescentam
duas novas técnicas ao protocolo de emergência-padrão (aquele com o
desfibrilador): manter a circulação de sangue no organismo por meio de um
aparelho de oxigenação e, principalmente, resfriar o corpo (veja no fim da
reportagem como isso funciona).
Quando usamos a geladeira para preservar carne é porque a temperatura
baixa diminui a velocidade das reações químicas — logo, deixa mais lenta a
decomposição celular. Para cada grau que o corpo é esfriado, a atividade
metabólica é reduzida em 6%. “Se as 1.514 pessoas que morreram congeladas
depois do acidente do Titanic dessem entrada em meu hospital hoje, boa parte
sobreviveria”, diz Neumar. “Os corpos foram encontrados poucas horas depois e
com a temperatura reduzida pelo oceano. Seus neurônios ainda podiam voltar.” Foi
o que aconteceu com a japonesa ressuscitada, encontrada num ambiente gelado, o
que provavelmente ajudou na preservação de seu corpo. Reduzir a temperatura
funciona porque a morte, dizem os pesquisadores, é diferente da interpretação
que a medicina dava a ela há dez anos — e que ainda é presente em centros
médicos. Morrer não é um momento definitivo, e não se concretiza em poucos
minutos sem batimento cardíaco. A morte agora é encarada como um processo
complexo, mas, por muitos minutos, ou mesmo horas, reversível.
Quando as células do corpo começam a ficar sem sangue, as mitocôndrias,
que usam oxigênio para gerar energia, ficam sem matéria-prima. Com isso, as
células começam a produzir toxinas, como o ácido lático — a mesma substância
responsável pela cãibra. O organismo recorre, então, a um plano B: tenta
quebrar o ácido lático para gerar energia e ganhar algum tempo, à espera da
volta da circulação. “É como se ligássemos um gerador pequeno de combustível
inadequado, enquanto torcemos para que a eletricidade seja restabelecida logo”,
afirma Scott Henderson, professor de ética médica da Luther Rice University. Se
o gerador fica sem combustível, as células começam a devorar a si mesmas. “Cada
tecido tem seu próprio tempo antes de morrer. E o dos neurônios, decisivos para
que o organismo volte a funcionar, é bem mais longo do que pensávamos. Eles
podem ser reativados horas depois que o cérebro é considerado morto”, afirma
Henderson.
O corpo mais frio não só reduz a intensidade da degradação celular
durante a parada cardíaca, mas também depois do retorno. É que, com o acúmulo
de ácido lático no corpo, o oxigênio se torna nocivo. “Quando o organismo passa
a funcionar com níveis muito baixos de oxigênio, uma volta rápida demais pode
matar”, afirma Parnia. “Nas últimas décadas, muitas pessoas ressuscitadas
morreram de vez, ou sofreram danos cerebrais porque foram envenenadas por
oxigênio.”
Aí entra a segunda das técnicas inovadoras: o ECMO, um equipamento que
filtra o sangue, oxigena e o bombeia de volta ao corpo. Funciona como um
coração e um pulmão artificiais. Com o sangue circulando de novo e suprindo a
carência de oxigênio, parte da degradação é revertida, dando tempo para que os
médicos encontrem e resolvam a causa da parada. O ECMO também controla o
retorno gradual da oxigenação do sangue, evitando o “envenenamento” por
oxigênio.
REAVIVANDO A
DISCUSSÃO
Tanto o ECMO quanto o resfriamento são usados em conjunto com
procedimentos tradicionais de emergência, como a compressão do peito,
desfibriladores e respiração artificial. A respiração boca a boca, popular até
o começo da década passada, não é mais recomendável: sabe-se agora que, com
exceção de casos de afogamento, o organismo em colapso ainda tem reservas de
oxigênio por até 10 minutos.
Desde o estabelecimento dos Critérios de Harvard, em 1968, a compressão
e a respiração forçada se aplicam a todo organismo sem batimento cardíaco, sem
respiração, sem movimentos do corpo e sem atividade cerebral — é assim que se
define a morte em termos médicos. De todos estes pré-requisitos, a morte
cerebral é decisiva. “Nos últimos anos, descobrimos que a morte cerebral, da
forma como a conhecemos, é uma ficção”, diz Henderson. Geralmente, ela é medida
por um eletroencefalograma, que não capta todas as funções cerebrais.
Além disso, sabemos agora, um neurônio inativo pode voltar a
funcionar. É possível, por exemplo,
multiplicar neurônios de corpos que ficaram mais de quatro horas sem atividade
cerebral. Foi o que fizeram os pesquisadores do Instituto Salk, da Califórnia.
Em 2001, eles conseguiram cultivar novos neurônios em laboratório, usando
células do cérebro de recém-falecidos — isso mostra, dizem eles, que os
neurônios ainda seriam viáveis.
As novas técnicas reavivaram o interesse pela ressuscitação, área
marcada por poucos e lentos avanços (veja-os na linha do tempo). Apenas a
partir dos anos 1960 é que a combinação de massagem cardíaca e respiradores com
tubos na traqueia começou a se disseminar. “A ressuscitação cardiopulmonar foi
uma revolução. Mas, desde então, a medicina parou”, diz Vinay Nadkarni,
professor da Universidade da Pensilvânia.
Os índices de ressuscitação bem-sucedida nos países desenvolvidos, em
torno de 16%, não evoluíram nos últimos 25 anos. No hospital de Sam Parnia, em
compensação, estão em 33% — mesmo índice de sucesso do Instituto do Coração
(InCor), em São Paulo, que também usa as técnicas. Desde agosto deste ano,
aliás, o resfriamento do corpo é recomendado para todos os hospitais
brasileiros pela Sociedade Brasileira de Cardiologia. A instituição agora pede
que os pacientes de colapso cardíaco sejam mantidos entre 32° C e 34° C por 12
a 24 horas. De acordo com a entidade, um paciente ressuscitado que é submetido
ao resfriamento corporal tem 33% mais chances de se recuperar sem sequelas.
As medidas foram adotadas no InCor há três anos. “A técnica é
revolucionária e nos obriga a repensar nossa definição para a morte”, afirma o
cardiologista Sergio Timerman, chefe do laboratório de pesquisa e treinamento
em emergência do hospital, e responsável pelo primeiro treinamento das novas
técnicas na América Latina — realizado em agosto para 30 profissionais da área
de saúde. “Os resultados são espantosos. A oxigenação do organismo aumenta em
60% as chances de sobrevida.” As práticas em São Paulo já ajudaram a salvar,
entre outras pessoas, Airton Inamime, que sofreu uma parada cardíaca em março
de 2012 no Metrô e foi submetido ao resfriamento e ao ECMO. Depois de 12
minutos, voltou à vida sem sequelas.
A adoção das técnicas ainda é gradual, embora sejam indicadas desde
2003 pelo Comitê Internacional de Ressuscitação (Ilcor, na sigla em inglês). Em
Nova York, a partir de 2008, a prefeitura obrigou todos os hospitais a manter
equipamentos de resfriamento. A medida está sendo adotada principalmente em
hospitais dos EUA, Inglaterra, Alemanha, Coreia do Sul e Japão. De acordo com
as estimativas de Parnia, se fosse adotada em larga escala nos EUA, poderia
salvar 40 mil vidas por ano. “Sozinho, o resfriamento é revolucionário. Permite
adiar a morte e ganhar tempo para desentupir as veias que provocaram um
enfarte”, diz Nadkarni, que também é membro do Ilcor.
O uso de respiradores e desfibriladores demorou mais de uma década para
se disseminar. O mesmo está acontecendo agora com as novas técnicas de
ressuscitação, dizem seus defensores. “Os profissionais de saúde já conhecem as
novas técnicas, mas ainda não sabem como colocá-las em prática”, afirma
Timerman.
Em outubro de 2012, um estudo publicado na renomada revista científica
The Lancet reforçou a importância da nova abordagem perante a morte. O
levantamento concluiu que gastar mais tempo nos esforços de ressuscitação pode
aumentar a chance de sobrevivência e de alta para pacientes com parada
cardíaca. Ao todo, foram pesquisados 64.339 pacientes em 435 hospitais nos
Estados Unidos. Os hospitais cuja média de tempo de ressuscitação era mais alta
(25 minutos) tiveram 12% mais chances de que seus pacientes voltassem à vida em
relação aos hospitais com tempo médio mais baixo (16 minutos).
DILEMA ÉTICO
Uma das consequências destas novas medidas é que dão tempo aos médicos
para que curem os danos que provocaram o ataque cardíaco. “Em geral, ninguém
mais deveria morrer de enfarte”, diz Sam Parnia. Em situações de morte que não
o enfarte, a ressuscitação apenas adiaria o inevitável por algumas horas, ou
dias. No entanto, ao abrir possibilidades para sobreviver a paradas súbitas no
hospital, os métodos alimentam o dilema ético sobre até quando uma pessoa deve
ser mantida viva. Se um paciente de câncer em metástase fosse ressuscitado, por
exemplo, seria apenas para aguardar um novo colapso de seu organismo. O mesmo
vale para a vítima de um acidente automotivo cujos órgãos sofreram danos que
não podem ser recuperados. Nestes casos, a esperança pode estar na criogenia —
mas no futuro. Por enquanto, a técnica consegue apenas congelar as pessoas, mas
não descongelar.
Até lá, a ressuscitação tende a se tornar uma ciência cada vez mais
complexa — Robert Neumar está pesquisando formas de resfriar o corpo no nível
celular, para ganhar ainda mais tempo de recuperar pacientes. E pesquisadores
da Universidade da Pensilvânia estão estudando os processos fisiológicos dos
animais que entram em hibernação, para reproduzir em pacientes humanos. “Daqui
a 20 anos, seremos capazes de trazer de volta à vida pessoas que passaram mais
de 24 horas sem atividade cardíaca ou cerebral”, afirma Parnia. “Nossos netos
não vão ver a morte da mesma forma que nós.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário