segunda-feira, 6 de julho de 2015

A morte da hora da morte [1]



Novas técnicas devolvem a vida a pessoas que passaram até 10 horas sem batimento cardíaco nem atividade cerebral e fazem médicos voltar a discutir o que é morrer
Não importa se por doença, acidente ou violência. Sua vida acaba quando o coração para. O sistema nervoso deixa então de receber oxigênio do sangue e entra em colapso. Após 5 minutos, os danos ao cérebro são considerados irreversíveis. Pouco depois você é declarado morto. Mas não devia ser assim. É o que dizem agora médicos e pesquisadores entusiastas de novas técnicas que têm trazido de volta à vida pacientes que ultrapassaram — e muito — o momento em que a medicina tradicionalmente considera alguém morto.
O entendimento de que após 5 minutos começa não valer mais a pena insistir na reanimação tem base nos chamados Critérios de Harvard, uma reunião de protocolos de 1968 que ainda é a principal referência para determinar a morte. Mas como seria possível explicar, com base nessa ideia, o caso do jogador de futebol Fabrice Muamba? Na tarde de 17 de março de 2012, o africano de 23 anos desmaiou no gramado do estádio White Hart Lane, em Londres, diante de 35 mil pessoas. Levado às pressas para o London Chest Hospital, seu coração ficou parado por 1 hora e 18 minutos. Ele sobreviveu, e sem nenhuma sequela. Milagre?
Nada disso. “A ciência trouxe Muamba de volta. Por todos os critérios médicos tradicionais, ele estava morto e agora está vivo”, afirma o pesquisador britânico Sam Parnia. Chefe da UTI do hospital da Universidade Stony Brook, em Nova York, Parnia acaba de lançar o livro Erasing Death (Apagando a morte, ainda sem tradução).
Muamba não é o único exemplo. Em junho de 2011, uma japonesa de 30 anos foi encontrada num bosque, morta por overdose de medicamentos — a temperatura do corpo, 20° C, indicava que estava há muito tempo sem batimentos. Depois de mais seis horas dentro do hospital, ela voltou a respirar. “Ela esteve morta por pelo menos dez horas. Mas recebeu o tratamento adequado e hoje está bem”, afirma Parnia, que entrevistou os médicos japoneses após eles terem publicado o caso num periódico científico. De acordo com o relato deles, mesmo tendo passado quase metade de um dia morta, a mulher se recuperou e até teve um bebê no ano passado.
Em agosto de 2009, o motorista americano Joe Tiralosi, de 57 anos, deu entrada no Hospital Presbiteriano de Nova York. Tinha sofrido um enfarte. Foi levado para uma mesa de cirurgia e, depois de 20 minutos de massagem cardíaca, com respiração artificial e injeções de adrenalina, nada de pulso. Tiralosi também poderia ter sido declarado morto, mas os médicos continuaram tentando por 40 minutos. Seu coração voltou a bater — só que, enquanto os médicos desentupiam as veias que haviam provocado o enfarte, morreu uma segunda vez, agora por 15 minutos. Foi ressuscitado novamente. Três semanas depois, estava de volta para sua família no Brooklin com saúde física e mental impecável. “Há dez anos, continuar tentando depois de tanto tempo seria considerado irresponsável. Acreditava-se que o paciente, se voltasse a respirar, viveria em estado vegetativo”, diz o médico americano Robert Neumar, pesquisador da Universidade de Michigan. “Hoje, sabemos que o cérebro é mais resistente do que isso.”


VIVER DE FRIO
O motorista, a mulher e o atleta só voltaram a viver porque os hospitais que os receberam usaram procedimentos de ponta, adotados paulatinamente nos últimos dez anos. E também porque tiveram a sorte de chegar em condições ideais para eles serem aplicados. Esses procedimentos acrescentam duas novas técnicas ao protocolo de emergência-padrão (aquele com o desfibrilador): manter a circulação de sangue no organismo por meio de um aparelho de oxigenação e, principalmente, resfriar o corpo (veja no fim da reportagem como isso funciona).
Quando usamos a geladeira para preservar carne é porque a temperatura baixa diminui a velocidade das reações químicas — logo, deixa mais lenta a decomposição celular. Para cada grau que o corpo é esfriado, a atividade metabólica é reduzida em 6%. “Se as 1.514 pessoas que morreram congeladas depois do acidente do Titanic dessem entrada em meu hospital hoje, boa parte sobreviveria”, diz Neumar. “Os corpos foram encontrados poucas horas depois e com a temperatura reduzida pelo oceano. Seus neurônios ainda podiam voltar.” Foi o que aconteceu com a japonesa ressuscitada, encontrada num ambiente gelado, o que provavelmente ajudou na preservação de seu corpo. Reduzir a temperatura funciona porque a morte, dizem os pesquisadores, é diferente da interpretação que a medicina dava a ela há dez anos — e que ainda é presente em centros médicos. Morrer não é um momento definitivo, e não se concretiza em poucos minutos sem batimento cardíaco. A morte agora é encarada como um processo complexo, mas, por muitos minutos, ou mesmo horas, reversível.
Quando as células do corpo começam a ficar sem sangue, as mitocôndrias, que usam oxigênio para gerar energia, ficam sem matéria-prima. Com isso, as células começam a produzir toxinas, como o ácido lático — a mesma substância responsável pela cãibra. O organismo recorre, então, a um plano B: tenta quebrar o ácido lático para gerar energia e ganhar algum tempo, à espera da volta da circulação. “É como se ligássemos um gerador pequeno de combustível inadequado, enquanto torcemos para que a eletricidade seja restabelecida logo”, afirma Scott Henderson, professor de ética médica da Luther Rice University. Se o gerador fica sem combustível, as células começam a devorar a si mesmas. “Cada tecido tem seu próprio tempo antes de morrer. E o dos neurônios, decisivos para que o organismo volte a funcionar, é bem mais longo do que pensávamos. Eles podem ser reativados horas depois que o cérebro é considerado morto”, afirma Henderson.
O corpo mais frio não só reduz a intensidade da degradação celular durante a parada cardíaca, mas também depois do retorno. É que, com o acúmulo de ácido lático no corpo, o oxigênio se torna nocivo. “Quando o organismo passa a funcionar com níveis muito baixos de oxigênio, uma volta rápida demais pode matar”, afirma Parnia. “Nas últimas décadas, muitas pessoas ressuscitadas morreram de vez, ou sofreram danos cerebrais porque foram envenenadas por oxigênio.”
Aí entra a segunda das técnicas inovadoras: o ECMO, um equipamento que filtra o sangue, oxigena e o bombeia de volta ao corpo. Funciona como um coração e um pulmão artificiais. Com o sangue circulando de novo e suprindo a carência de oxigênio, parte da degradação é revertida, dando tempo para que os médicos encontrem e resolvam a causa da parada. O ECMO também controla o retorno gradual da oxigenação do sangue, evitando o “envenenamento” por oxigênio.

REAVIVANDO A DISCUSSÃO
Tanto o ECMO quanto o resfriamento são usados em conjunto com procedimentos tradicionais de emergência, como a compressão do peito, desfibriladores e respiração artificial. A respiração boca a boca, popular até o começo da década passada, não é mais recomendável: sabe-se agora que, com exceção de casos de afogamento, o organismo em colapso ainda tem reservas de oxigênio por até 10 minutos.
Desde o estabelecimento dos Critérios de Harvard, em 1968, a compressão e a respiração forçada se aplicam a todo organismo sem batimento cardíaco, sem respiração, sem movimentos do corpo e sem atividade cerebral — é assim que se define a morte em termos médicos. De todos estes pré-requisitos, a morte cerebral é decisiva. “Nos últimos anos, descobrimos que a morte cerebral, da forma como a conhecemos, é uma ficção”, diz Henderson. Geralmente, ela é medida por um eletroencefalograma, que não capta todas as funções cerebrais.
Além disso, sabemos agora, um neurônio inativo pode voltar a funcionar.  É possível, por exemplo, multiplicar neurônios de corpos que ficaram mais de quatro horas sem atividade cerebral. Foi o que fizeram os pesquisadores do Instituto Salk, da Califórnia. Em 2001, eles conseguiram cultivar novos neurônios em laboratório, usando células do cérebro de recém-falecidos — isso mostra, dizem eles, que os neurônios ainda seriam viáveis.
As novas técnicas reavivaram o interesse pela ressuscitação, área marcada por poucos e lentos avanços (veja-os na linha do tempo). Apenas a partir dos anos 1960 é que a combinação de massagem cardíaca e respiradores com tubos na traqueia começou a se disseminar. “A ressuscitação cardiopulmonar foi uma revolução. Mas, desde então, a medicina parou”, diz Vinay Nadkarni, professor da Universidade da Pensilvânia.
Os índices de ressuscitação bem-sucedida nos países desenvolvidos, em torno de 16%, não evoluíram nos últimos 25 anos. No hospital de Sam Parnia, em compensação, estão em 33% — mesmo índice de sucesso do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo, que também usa as técnicas. Desde agosto deste ano, aliás, o resfriamento do corpo é recomendado para todos os hospitais brasileiros pela Sociedade Brasileira de Cardiologia. A instituição agora pede que os pacientes de colapso cardíaco sejam mantidos entre 32° C e 34° C por 12 a 24 horas. De acordo com a entidade, um paciente ressuscitado que é submetido ao resfriamento corporal tem 33% mais chances de se recuperar sem sequelas.
As medidas foram adotadas no InCor há três anos. “A técnica é revolucionária e nos obriga a repensar nossa definição para a morte”, afirma o cardiologista Sergio Timerman, chefe do laboratório de pesquisa e treinamento em emergência do hospital, e responsável pelo primeiro treinamento das novas técnicas na América Latina — realizado em agosto para 30 profissionais da área de saúde. “Os resultados são espantosos. A oxigenação do organismo aumenta em 60% as chances de sobrevida.” As práticas em São Paulo já ajudaram a salvar, entre outras pessoas, Airton Inamime, que sofreu uma parada cardíaca em março de 2012 no Metrô e foi submetido ao resfriamento e ao ECMO. Depois de 12 minutos, voltou à vida sem sequelas.
A adoção das técnicas ainda é gradual, embora sejam indicadas desde 2003 pelo Comitê Internacional de Ressuscitação (Ilcor, na sigla em inglês). Em Nova York, a partir de 2008, a prefeitura obrigou todos os hospitais a manter equipamentos de resfriamento. A medida está sendo adotada principalmente em hospitais dos EUA, Inglaterra, Alemanha, Coreia do Sul e Japão. De acordo com as estimativas de Parnia, se fosse adotada em larga escala nos EUA, poderia salvar 40 mil vidas por ano. “Sozinho, o resfriamento é revolucionário. Permite adiar a morte e ganhar tempo para desentupir as veias que provocaram um enfarte”, diz Nadkarni, que também é membro do Ilcor.
O uso de respiradores e desfibriladores demorou mais de uma década para se disseminar. O mesmo está acontecendo agora com as novas técnicas de ressuscitação, dizem seus defensores. “Os profissionais de saúde já conhecem as novas técnicas, mas ainda não sabem como colocá-las em prática”, afirma Timerman.
Em outubro de 2012, um estudo publicado na renomada revista científica The Lancet reforçou a importância da nova abordagem perante a morte. O levantamento concluiu que gastar mais tempo nos esforços de ressuscitação pode aumentar a chance de sobrevivência e de alta para pacientes com parada cardíaca. Ao todo, foram pesquisados 64.339 pacientes em 435 hospitais nos Estados Unidos. Os hospitais cuja média de tempo de ressuscitação era mais alta (25 minutos) tiveram 12% mais chances de que seus pacientes voltassem à vida em relação aos hospitais com tempo médio mais baixo (16 minutos).

DILEMA ÉTICO
Uma das consequências destas novas medidas é que dão tempo aos médicos para que curem os danos que provocaram o ataque cardíaco. “Em geral, ninguém mais deveria morrer de enfarte”, diz Sam Parnia. Em situações de morte que não o enfarte, a ressuscitação apenas adiaria o inevitável por algumas horas, ou dias. No entanto, ao abrir possibilidades para sobreviver a paradas súbitas no hospital, os métodos alimentam o dilema ético sobre até quando uma pessoa deve ser mantida viva. Se um paciente de câncer em metástase fosse ressuscitado, por exemplo, seria apenas para aguardar um novo colapso de seu organismo. O mesmo vale para a vítima de um acidente automotivo cujos órgãos sofreram danos que não podem ser recuperados. Nestes casos, a esperança pode estar na criogenia — mas no futuro. Por enquanto, a técnica consegue apenas congelar as pessoas, mas não descongelar.
Até lá, a ressuscitação tende a se tornar uma ciência cada vez mais complexa — Robert Neumar está pesquisando formas de resfriar o corpo no nível celular, para ganhar ainda mais tempo de recuperar pacientes. E pesquisadores da Universidade da Pensilvânia estão estudando os processos fisiológicos dos animais que entram em hibernação, para reproduzir em pacientes humanos. “Daqui a 20 anos, seremos capazes de trazer de volta à vida pessoas que passaram mais de 24 horas sem atividade cardíaca ou cerebral”, afirma Parnia. “Nossos netos não vão ver a morte da mesma forma que nós.” 

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