segunda-feira, 8 de junho de 2015

Religião e religiosidade[1]



No caleidoscópio do comportamento humano há, quase sempre, uma grande preocupação por mais parecer do que ser, dando origem aos homens-espelhos, aqueles que, não tendo identidade própria, refletem os modismos, as imposições, as opiniões alheias. Eles se tornam o que agrada às pessoas com quem convivem, o ambiente que no seu comportamento neurótico se instala. Adota-se uma fórmula religiosa sem que se viva de forma equânime dentro dos cânones da religião. É a experiência da religião sem religiosidade, da aparência social sem o correspondente emocional que trabalha em favor da autorealização. O conceito de Deus se perde na complexidade das fórmulas vazias do culto externo, e a manifestação da fé íntima desaparece diante das expressões ruidosas, destituídas dos componentes espirituais da meditação, da reflexão, da entrega. Disso resulta uma vida esvaziada de esperança, sem convicção de profundidade, sem madureza espiritual.
A religião se destina ao conforto moral e à preservação dos valores espirituais do homem, demitizando a morte e abrindo-lhe as portas aparentemente indevassáveis à percepção humana. Desvelar os segredos da vida de ultratumba, demonstrar-lhe o prosseguimento das aspirações e valores humanos, ora noutra dimensão dentro da mesma realidade da vida, é a finalidade precípua da religião. Ao invés da proibição castradora e do dogmatismo irracional, agressivo à liberdade de pensamento e de opção, a religião deve favorecer a investigação em torno dos fundamentos existenciais, das origens do ser e do destino humano, ao lado dos equipamentos da ciência, igualmente interessada em aprofundar as sondas das pesquisas sobre o mundo, o homem e a vida.
A fim de que esse objetivo seja alcançado, faz-se indispensável a coragem de romper com a tradição — rebelar-se contra a mãe religião — libertando-se das fórmulas, para encontrar a forma da mais perfeita identificação com a própria consciência geradora de paz. Tornar-se autêntico é uma decisão definidora que precede a resolução de crescer para dar-se.
O desafio consiste na coragem da análise de conteúdo da religião, assim como da lógica, da racionalidade das suas teses e propostas. Somente, desta forma, haverá um relacionamento criativo entre o crente e a fé, a religiosidade emocional e a religião. Essa busca preserva a liberdade íntima do homem perante a vida, facultando-lhe um incessante crescimento, que lhe dará a capacidade para distinguir o em que acredita e por que em tal crê, sustentando as próprias forças na imensa satisfação dos seus descobrimentos e nas possibilidades que lhe surgem de ampliar essas conquistas.
Já não se torna, então, importante a religião, formal e circunspecta, fechada e sombria, mas a religiosidade interior que aproxima o indivíduo de Deus em toda a Sua plenitude: no homem, no animal, no vegetal, em a natureza, nas formas viventes ou não, através de um inter-relacionamento integrador que o plenifica e o liberta da ansiedade, da solidão, do medo. As suas aspirações não se fazem atormentadoras; não mais surge a solidão como abandono e desamor, e dilui-se o medo ante uma religiosidade que impregna a vida com esperança, alegria e fé. O germe divino cresce no interior do homem e expande-se, permitindo que se compreenda o conceito paulino, que ele já não vivia, “mas o Cristo” nele vivia.
A personalidade conflitante no jogo dos interesses da sociedade cede lugar à individualidade eterna e tranquila, não mais em disputa primária de ambições e sim em realizações nas quais se movimenta. Os outros camuflam a sua realidade e vivem conforme os padrões, às vezes detestados, que lhes são apresentados ou impostos pela sua sociedade. O grupo social, porém, rejeita-os, por sabê-los inautênticos, no entanto os aplaude, porque eles não incomodam os seus membros, fazendo-os mesmistas, iguais, despersonalizados, desestruturados. Por falta de uma consciência objetiva — conhecimento dos seus valores pessoais, controle das várias funções do seu organismo físico e emocional, definição positiva de atitudes perante a vida —, não têm a coragem ética de ser autênticos, padecendo conflitos a respeito do senso de responsabilidade e de liberdade, característico do amadurecimento, que se poderá denominar como uma virtude de longo curso. Não se trata da coragem de arrostar consequências pela própria temeridade, mas do valor para enfrentar-se a si mesmo, gerando um relacionamento saudável com as demais pessoas, repetindo com entusiasmo a experiência malsucedida, sem ataduras de remorso ou lamentação pelo fracasso. E saber retirar do insucesso os resultados positivos, que se podem transformar em alavancas para futuros empreendimentos, nos quais a decisão de insistir e realizar assumem altos níveis éticos, que se tornam desafios no curso do processo evolutivo.
Para que o ânimo robusto possa conduzir às lutas exteriores, faz-se necessária a autoconquista, que torna o indivíduo justo, equilibrado, sem a característica ansiedade neurótica, reveladora do medo do futuro, da solidão, das dificuldades que surgem.
É preciso que o homem se arrisque, se aventure, mesmo que esta decisão o faça ansioso quanto ao seu desempenho, aos resultados. Ninguém pode superar a ansiedade natural, que faz parte da realidade humana, desde que não extrapole os limites, passando a conflito neurótico.
Por atavismo ancestral o homem nasce vinculado a uma crença religiosa, cujas raízes se fixam no comportamento dos primitivos habitantes da Terra. Do medo decorrente das forças desorganizadas das eras primeiras da vida, surgiram as diferentes formas de apaziguar a fúria dos seus responsáveis, mediante os cultos que se transformariam em religiões com as suas variadas cerimônias, cada vez mais complexas e sofisticadas. Das manifestações primárias com sacrifícios humanos, até as expressões metafísicas, toda uma herança psicológica e sociológica se transferiu através das gerações, produzindo um natural sentimento religioso que permanece em a natureza humana.
Ao lado disso, considerando-se a origem espiritual do indivíduo e a Força Criadora do Universo, nele permanece o germe de religiosidade aguardando campo fecundo para desabrochar.
 Expressa-se, esse conteúdo intelectomoral, em forma de culto à arte, à ciência, à filosofia, à religião, numa busca de afirmação-integração da sua na Consciência Cósmica. A força primitiva e criadora, nele existente como uma fagulha, possui o potencial de uma estrela que se expandirá com as possibilidades que lhe sejam facultadas. Bem direcionada, sua luz vencerá toda a sombra e se transformará na energia vitalizadora para o crescimento dos seus valores intrínsecos, no desdobramento da sua fatalidade, que são a vitória sobre si mesmo, a relativa perfeição que ainda não tem capacidade de apreender.
Na execução do programa religioso, a maioria das pessoas age por convencionalismo e conveniência, sem a coragem de assumir as suas convicções, receosas da rejeição do grupo. Adotam fórmulas do agrado geral, que foram úteis em determinados períodos do processo histórico e evolutivo da sociedade e, não obstante descubram novas expressões de fé e consolação, receiam ser consideradas alienadas, caso assumam as propostas novas que lhes parecem corretas, mas não usuais, e sim de profundidade.
Afirmou um monge medieval que todo aquele que "vive morrendo, quando morre não morre”, porque o desapego, o despojar das paixões em cada morrer diário, liberta-o, desde já, até que, quando lhe advém a morte, ele se encontra perfeitamente livre, portanto, não morto, equivalente a vivo.
A religiosidade é uma conquista que ultrapassa a adoção de uma religião; uma realização interior lúcida, que independe do formalismo, mas que apenas se consegue através da coragem de o homem emergir da rotina e encontrar a própria identidade.





[1] O Homem Integral – Joanna de Ângelis/Divaldo Franco – Centro Espírita Caminho da Redenção – BA, 1990

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