sábado, 27 de junho de 2015

A questão da Justiça[1]


EDUARDO ALVES DE SÁ[2]

Foi um dos advogados portugueses de mais rija envergadura. Arguto e eloquente descobria modalidades e facetas novas à questão mais exausta. Recorria-se a ele sempre com a certeza prévia de se encontrar uma solução ao assunto mais intrincado.
Aqui nada nos passa despercebido; e, portanto não podia furtar-se a essa lei o convite, por duas vezes já feito, à minha manifestação.
Parece que é sobre leis que me queriam ouvir, visto ter sido homem de leis, e de leis ser quem me solicitou opinião. Pois apesar disso não tratarei das leis terrenas. Isso, aqui, tem tanto valor como um punhado de cascas d'alhos para um festim real; e bem farto fiquei delas aí para que, depois de me ter visto liberto de tão terrível pesadelo, volte a buscá-lo voluntariamente.
Quero dar conta de mim, mas para mais uma vez dizer o que pensei nos últimos tempos da minha estada nesse infecto planeta: que isto de leis e justiças é a consagração social do bandoleirismo e da desigualdade.
Apresenta-se a justiça com a máscara férrea da igualdade e da incorruptibilidade, mas não há quem viva nela, com ela e por ela, que não saiba que essa máscara a iguala a um mendigo mascarado de rei em uma cegada carnavalesca.
O estudo das leis equivale ao estudo dos pick­pockets ingleses para o furto. E' cada qual apurar a sua argúcia, a sua inteligência, a sua maneira, para melhor poder provar que o branco é preto e o preto é branco; e que onde está o A devia estar o Z do abecedário, e onde está o Z devia estar o A. Quem não tiver consciência nem bojo para dizer e fazer isso morre de fome e passa por uma nulidade desprezível.
Os meus principais triunfos, os principais louros por mim conquistados, que aureolaram o meu nome, raro representaram o triunfo da justiça. E é tão porco o ambiente que respiramos no convívio dos delinquentes, dos pulverulentos in-fólios, de sujos calhamaços de processos patifes, que inevitavelmente nos corrompemos, obliterando em nós a noção da justiça.
E' vulgar pormos todo o nosso empenho, todo o nosso mais feroz encarniçamento em procurar a absolvição de um patifão confesso e reconhecido, criatura que nem do nosso desprezo chega a ser digna; e quando o conseguimos, marcamos esse ato condenável sob o ponto de honestidade e justiça absoluta, como um notável triunfo da nossa carreira.
Não nos ensoberba nem nos vangloria levarmos a justiça à retidão de fazer justiça; o que nos envaidece é torcer as leis, subjugar os júris, enredarmos os juízes, esmagarmos os nossos colegas, e às vezes nossos amigos, com o poder da nossa argúcia, da nossa eloquência, e por vezes da nossa rabulice, afastando da vista de todos o que sob essa vista está, e fazendo-os ver só aquilo que queremos fazer ver.
Será uma pouca-vergonha! E', mas é o que a sociedade quer.
Ela, quando enverga o seu sujo trajo de matrona e de puritana, finge desaprovar esse modo de ser da justiça humana; mas, habitualmente, só enaltece aqueles que conseguem distinguir-se nesses processos de bandoleirismo legal.
Isso ai já me enojava, mas não podia deixar de viver disso. Era o hábito, era o vício, a paixão. Creio que os moços da limpeza municipal, nas suas horas de limpeza individual, se enojarão de carregar e limpar todos os detritos da matéria podre; mas é a sua vida.
Os advogados são os moços da limpeza social.
Carregam e limpam toda a porcaria moral.
São eles que veem o fundo da alma humana na Terra; são eles que veem, sem os poderem medir, os fundos e pavorosos abismos, negros e infectos, de muita consciência com que têm de lidar; como os pobres varredores municipais veem o fundo nauseabundo dos barris de lixo; e, conquanto lhes repugne o aspecto e o fedor, não podem alhear-se disso, porque é a sua vida.
A lei e a justiça, que deviam vestir de branco como a virgem na primeira comunhão, que deviam ser como a mulher de César, são isso que se vê.
E quem há de endireitar o carroção social, por modo que cada coisa se pusesse em seu eixo?
Ninguém. Não o endireitou o Cristo, ninguém o endireitará. E' assim. Porque tem de ser assim. Creio que o mundo, tal como é, representa os antigos juízos de Deus: quem estava inocente, podia pôr os pés nus sobre ferro candente, ou beijar um crucifixo em brasa, que se não queimaria, segundo era crença.
O mundo é um lameiro onde as almas são arremessadas: quem for justo e puro sai dele níveo e limpo como um arcanjo. A lama não o sujará; mas quem não tiver em si a suficiente dose de bondade e de justiça pura, sairá escorrendo lodo e fedendo a pus.
E não há coisa pior na Terra, senhores, do que a justiça injusta.
Viva Deus, porém, que ainda encontrei justiça justa, também; mas essa era tímida, escondida, como que envergonhada da sua pureza; e não fazia carreira. Vegetava, desamparada e pobre, como enteada de madrasta ruim. E todos vós a conheceis.
Manifesta-se na toga ruça do juiz, nas botas cambadas do escrivão; na habitação modesta e nos calotes ao tendeiro e ao alfaiate de todas as criaturas que servem o templo da justiça, desde o beleguim honesto, até o conselheiro honesto do Supremo.
Caracteres de têmpera rija, consciência impoluta, juízo são, culto venerando pela verdade. Podem errar, porque a sua vista os atraiçoou, a sua inteligência claudicou, a sua ciência não chegou à apreciação plena da justiça; mas fazem-no crentes de que serviram a Deus e à justiça, e vão, de consciência serena e tranquila, comer as sopas magras e dormir o sono dos justos e inocentes.
Quem os não conhece? Quem não os aponta?
Nos outros, os voluntários da justiça, os servitas da lei, advogados e procuradores, também há disso, também há. Há até muitos que são honestos dentro da sua desonestidade. Mas ai daqueles que só aceitem causas justas e que só pleiteiem pela verdade santa!
Morrem de fome, e têm de concluir por vender os seus códigos aos alfarrabistas e ir procurar vida nova. Não lhes aparecem clientes. Um cliente, em regra geral, tem só a noção de que a justiça é aquilo que ele deseja; e se um advogado lhe põe em dúvida essa justiça, o menos que lhe sucede, além de lhe não entregar a causa, é chamar-lhe estúpido. E' de todos os dias. Toda a gente sabe que é assim; e sendo-o, como o é em verdade, quem não há de buscar nas torcedelas dos artigos e parágrafos da babilônica coleção de leis de qualquer pais, as tangentes por onde se faça valer a justiça que cada qual julgue possuir?
E' um ofício como o de deitar tombas ou fazer púcaros de barro. Ora, sendo a justiça um oficio, de que os instrumentos são os códigos e as leis, como há de ser servida com retidão?
Quem pode crer a justiça na justiça, senão esporadicamente, como amostra da fazenda para lhe conservar o nome?
E queriam que eu falasse de leis...
Aqui têm. Falei sem querer.
E' que eu reputaria a máxima covardia da minha consciência, se na primeira vez que, depois de daí ter vindo, posso escancarar a minha janela sobre esse atoleiro, não berrasse a plenos pulmões o que penso de tudo isso, agora que presumo ver de alto e mais claro.
E eu, que sempre soube dizer o que pensava e queria, mesmo quando as conveniências e as amizades exigiam o contrário, não podia deixar de fazê-lo, quando não há sentimento nenhum no meu ser que me não impila a fazê-lo.
E' a verdade, é o remorso e a justiça, que me obrigam a dizer, que isso de leis e de justiça na Terra, é, em regra geral, o que há de mais imoral, ilegal e injusto, sob o ponto de vista da moralidade, da legalidade e da justiça absolutas, como depois da morte, as vimos encontrar na esplendorosa irradiação da vontade de Deus.
Aos que amam e praticam a justiça na Terra, como em justiça deve ser, saúdo-os.
Aos que a mercadejam, ofendem e prostituem, desprezo-os; como me desprezo a mim próprio por todas as vezes que o fiz, se algumas o fiz conscientemente.



[1] Extraído do livro “Do Pais da Luz” Psicografia do médium português Fernando de Lacerda.
[2] Eduardo Dally Alves de Sá , doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, nasceu em Lisboa (1849-1906). Notável advogado, tomou parte nos processos mais célebre do seu tempo. Defendeu o contra-almirante Augusto de Castilho, quando respondeu em conselho de guerra por haver generosamente acolhido no navio do seu comando os oficiais e marinheiros revoltosos da Marinha brasileira (1894). Autor de: Dos Direitos da Igreja e do Estado; Comentários ao Código do Processo Civil; etc... - Lello Universal - Lello & Irmão - Porto

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