EDUARDO ALVES DE SÁ[2]
Foi um dos advogados portugueses de mais rija
envergadura. Arguto e eloquente descobria modalidades e facetas novas à questão
mais exausta. Recorria-se a ele sempre com a certeza prévia de se encontrar uma
solução ao assunto mais intrincado.
Aqui nada nos passa despercebido; e, portanto não
podia furtar-se a essa lei o convite, por duas vezes já feito, à minha
manifestação.
Parece que é sobre leis que me queriam ouvir, visto
ter sido homem de leis, e de leis ser quem me solicitou opinião. Pois apesar
disso não tratarei das leis terrenas. Isso, aqui, tem tanto valor como um
punhado de cascas d'alhos para um festim real; e bem farto fiquei delas aí para
que, depois de me ter visto liberto de tão terrível pesadelo, volte a buscá-lo
voluntariamente.
Quero dar conta de mim, mas para mais uma vez dizer o
que pensei nos últimos tempos da minha estada nesse infecto planeta: que isto
de leis e justiças é a consagração social do bandoleirismo e da desigualdade.
Apresenta-se a justiça com a máscara férrea da
igualdade e da incorruptibilidade, mas não há quem viva nela, com ela e por
ela, que não saiba que essa máscara a iguala a um mendigo mascarado de rei em
uma cegada carnavalesca.
O estudo das leis equivale ao estudo dos pickpockets
ingleses para o furto. E' cada qual apurar a sua argúcia, a sua inteligência, a
sua maneira, para melhor poder provar que o branco é preto e o preto é branco;
e que onde está o A devia estar o Z do abecedário, e onde está o Z devia estar
o A. Quem não tiver consciência nem bojo para dizer e fazer isso morre de fome
e passa por uma nulidade desprezível.
Os meus principais triunfos, os principais louros por
mim conquistados, que aureolaram o meu nome, raro representaram o triunfo da
justiça. E é tão porco o ambiente que respiramos no convívio dos delinquentes,
dos pulverulentos in-fólios, de sujos calhamaços de processos patifes, que
inevitavelmente nos corrompemos, obliterando em nós a noção da justiça.
E' vulgar pormos todo o nosso empenho, todo o nosso
mais feroz encarniçamento em procurar a absolvição de um patifão confesso e
reconhecido, criatura que nem do nosso desprezo chega a ser digna; e quando o
conseguimos, marcamos esse ato condenável sob o ponto de honestidade e justiça
absoluta, como um notável triunfo da nossa carreira.
Não nos ensoberba nem nos vangloria levarmos a justiça
à retidão de fazer justiça; o que nos envaidece é torcer as leis, subjugar os
júris, enredarmos os juízes, esmagarmos os nossos colegas, e às vezes nossos
amigos, com o poder da nossa argúcia, da nossa eloquência, e por vezes da nossa
rabulice, afastando da vista de todos o que sob essa vista está, e fazendo-os
ver só aquilo que queremos fazer ver.
Será uma pouca-vergonha! E', mas é o que a sociedade
quer.
Ela, quando enverga o seu sujo trajo de matrona e de
puritana, finge desaprovar esse modo de ser da justiça humana; mas, habitualmente,
só enaltece aqueles que conseguem distinguir-se nesses processos de
bandoleirismo legal.
Isso ai já me enojava, mas não podia deixar de viver
disso. Era o hábito, era o vício, a paixão. Creio que os moços da limpeza
municipal, nas suas horas de limpeza individual, se enojarão de carregar e
limpar todos os detritos da matéria podre; mas é a sua vida.
Os advogados são os moços da limpeza social.
Carregam e limpam toda a porcaria moral.
São eles que veem o fundo da alma humana na Terra; são
eles que veem, sem os poderem medir, os fundos e pavorosos abismos, negros e
infectos, de muita consciência com que têm de lidar; como os pobres varredores
municipais veem o fundo nauseabundo dos barris de lixo; e, conquanto lhes
repugne o aspecto e o fedor, não podem alhear-se disso, porque é a sua vida.
A lei e a justiça, que deviam vestir de branco como a
virgem na primeira comunhão, que deviam ser como a mulher de César, são isso
que se vê.
E quem há de endireitar o carroção social, por modo
que cada coisa se pusesse em seu eixo?
Ninguém. Não o endireitou o Cristo, ninguém o
endireitará. E' assim. Porque tem de ser assim. Creio que o mundo, tal como é,
representa os antigos juízos de Deus: quem estava inocente, podia pôr os pés
nus sobre ferro candente, ou beijar um crucifixo em brasa, que se não
queimaria, segundo era crença.
O mundo é um lameiro onde as almas são arremessadas:
quem for justo e puro sai dele níveo e limpo como um arcanjo. A lama não o
sujará; mas quem não tiver em si a suficiente dose de bondade e de justiça
pura, sairá escorrendo lodo e fedendo a pus.
E não há coisa pior na Terra, senhores, do que a
justiça injusta.
Viva Deus, porém, que ainda encontrei justiça justa,
também; mas essa era tímida, escondida, como que envergonhada da sua pureza; e
não fazia carreira. Vegetava, desamparada e pobre, como enteada de madrasta
ruim. E todos vós a conheceis.
Manifesta-se na toga ruça do juiz, nas botas cambadas
do escrivão; na habitação modesta e nos calotes ao tendeiro e ao alfaiate de
todas as criaturas que servem o templo da justiça, desde o beleguim honesto,
até o conselheiro honesto do Supremo.
Caracteres de têmpera rija, consciência impoluta,
juízo são, culto venerando pela verdade. Podem errar, porque a sua vista os
atraiçoou, a sua inteligência claudicou, a sua ciência não chegou à apreciação
plena da justiça; mas fazem-no crentes de que serviram a Deus e à justiça, e
vão, de consciência serena e tranquila, comer as sopas magras e dormir o sono
dos justos e inocentes.
Quem os não conhece? Quem não os aponta?
Nos outros, os voluntários da justiça, os servitas da
lei, advogados e procuradores, também há disso, também há. Há até muitos que
são honestos dentro da sua desonestidade. Mas ai daqueles que só aceitem causas
justas e que só pleiteiem pela verdade santa!
Morrem de fome, e têm de concluir por vender os seus
códigos aos alfarrabistas e ir procurar vida nova. Não lhes aparecem clientes.
Um cliente, em regra geral, tem só a noção de que a justiça é aquilo que ele
deseja; e se um advogado lhe põe em dúvida essa justiça, o menos que lhe
sucede, além de lhe não entregar a causa, é chamar-lhe estúpido. E' de todos os
dias. Toda a gente sabe que é assim; e sendo-o, como o é em verdade, quem não há
de buscar nas torcedelas dos artigos e parágrafos da babilônica coleção de leis
de qualquer pais, as tangentes por onde se faça valer a justiça que cada qual
julgue possuir?
E' um ofício como o de deitar tombas ou fazer púcaros
de barro. Ora, sendo a justiça um oficio, de que os instrumentos são os códigos
e as leis, como há de ser servida com retidão?
Quem pode crer a justiça na justiça, senão esporadicamente,
como amostra da fazenda para lhe conservar o nome?
E queriam que eu falasse de leis...
Aqui têm. Falei sem querer.
E' que eu reputaria a máxima covardia da minha
consciência, se na primeira vez que, depois de daí ter vindo, posso escancarar
a minha janela sobre esse atoleiro, não berrasse a plenos pulmões o que penso
de tudo isso, agora que presumo ver de alto e mais claro.
E eu, que sempre soube dizer o que pensava e queria,
mesmo quando as conveniências e as amizades exigiam o contrário, não podia
deixar de fazê-lo, quando não há sentimento nenhum no meu ser que me não impila
a fazê-lo.
E' a verdade, é o remorso e a justiça, que me obrigam
a dizer, que isso de leis e de justiça na Terra, é, em regra geral, o que há de
mais imoral, ilegal e injusto, sob o ponto de vista da moralidade, da
legalidade e da justiça absolutas, como depois da morte, as vimos encontrar na
esplendorosa irradiação da vontade de Deus.
Aos que amam e praticam a justiça na Terra, como em
justiça deve ser, saúdo-os.
Aos que a mercadejam, ofendem e prostituem,
desprezo-os; como me desprezo a mim próprio por todas as vezes que o fiz, se
algumas o fiz conscientemente.
[1] Extraído do livro “Do Pais da Luz” Psicografia do
médium português Fernando de Lacerda.
[2] Eduardo Dally Alves de Sá , doutor em Direito pela
Universidade de Coimbra, nasceu em Lisboa (1849-1906). Notável advogado, tomou
parte nos processos mais célebre do seu tempo. Defendeu o contra-almirante
Augusto de Castilho, quando respondeu em conselho de guerra por haver
generosamente acolhido no navio do seu comando os oficiais e marinheiros
revoltosos da Marinha brasileira (1894). Autor de: Dos Direitos da Igreja e do
Estado; Comentários ao Código do Processo Civil; etc... - Lello Universal -
Lello & Irmão - Porto
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